«Toda a sociedade terá de passar a ser um único escritório e uma única fábrica, com igualdade de trabalho e igualdade de pagamento».
V. I. Lenine, 1917
«Num país onde o único patrão é o Estado, a oposição significa morrer lentamente de fome. O velho princípio: quem não trabalha não come, é substituído por este outro: quem não obedece não come».
L. Trotsky, 1937
Tal como a espúria «liberdade económica», e com mais razão, também a segurança económica é muitas vezes apresentada como condição indispensável da verdadeira liberdade, o que, em certo sentido, é não só verdadeiro mas também importante. Naqueles que não podem estar seguros de conseguir triunfar na vida graças ao seu próprio esforço, é raro encontrar a independência de espírito e a força de carácter. Contudo, a ideia de «segurança económica» não é menos vaga e ambígua do que muitas outras expressões empregadas neste domínio; e em consequência dessa ambiguidade, a aprovação geral que a ambição de segurança obtém, pode transformar-se num perigo para a liberdade. Com efeito, quando se estende a segurança num sentido demasiado absoluto, a luta que se trava por ela, longe de aumentar as hipóteses de liberdade, antes se torna a sua maior ameaça.
Não há razão para que, numa sociedade que atingiu o nível geral de riqueza que a nossa sociedade alcançou, não se garanta a todos, e sem qualquer perigo para a liberdade, a primeira espécie de segurança. Há, decerto, problemas de difícil solução, como sejam o nível mínimo que deve ser assegurado a cada um ou como, muito particularmente, o de saber se aqueles que se limitam a confiar na comunidade que lhes garante esse nível mínimo deverão gozar indefinidamente as mesmas liberdades que os outros (16). Um tratamento precipitado destas questões poderia ter sérias e até perigosas consequências políticas; mas não pode haver dúvidas de que é possível assegurar a toda a gente um mínimo de alimentação, habitação e vestuário bastante para preservar a saúde e a capacidade de trabalhar. E acontece efectivamente que uma parte considerável da população inglesa já alcançou há muito essa espécie de segurança.
Nem há também qualquer razão para que o Estado não deva auxiliar as pessoas que os infelizes acasos da sorte encontram desprevenidas. A existência de uma organização de previdência não faz diminuir a vontade das pessoas em evitar os casos de doença e acidente nem enfraquece os esforços que elas fazem para superar as suas consequências; são, portanto, casos que pertencem a um domínio autenticamente inseguro e o Estado deve encarar para ele a organização de um esquema global de segurança. Há muitos aspectos de pormenor nos esquemas deste tipo que põem em desacordo os que desejam manter um sistema de concorrência e os que preferem substituí-lo por um sistema diferente; e sob a designação de «segurança social» é possível infiltrar medidas destinadas a sabotar ou tornar ineficaz o sistema de concorrência. Mas, em princípio, não há qualquer incompatibilidade entre o Estado estabelecer deste modo uma maior segurança para os indivíduos e as garantias da liberdade individual. A esta mesma espécie de segurança pertence a assistência do Estado às vítimas das «cóleras de Deus», como tremores de terra e inundações. Sempre que a intervenção comunitária é susceptível de mitigar desgraças perante as quais o indivíduo está indefeso e de cujas consequências se não pode precaver, essa intervenção deve ser empreendida.
Há, finalmente, o problema extremamente importante do combate às flutuações da actividade económica e às consequentes vagas do desemprego em larga escala que as acompanham. Trata-se, sem dúvida, de um dos problemas mais graves e mais prementes do nosso tempo. Mas embora a sua solução requeira um grande planeamento (no bom sentido), não exige, ou não precisa de exigir aquele tipo de planificação que segundo os seus defensores, irá substituir o mercado.
Muitos economistas esperam encontrar no domínio da política monetária o remédio eficaz, que nada tenha de incompatível com o liberalismo do século XIX. Outros, porém, crêem que a verdadeira solução só se pode esperar de uma hábil programação das obras públicas empreendidas em larga escala. Mas esta solução poderá implicar restrições muito sérias na esfera da concorrência de modo que, ao escolher-se esse caminho, torna-se imprescindível observar com todo o cuidado cada passo que se dê a fim de evitar que a actividade económica vá ficando cada vez mais dependente da orientação dos governos e do volume dos orçamentos do Estado. Não é este, porém, o único caminho a seguir nem é ele, em minha opinião, o mais prometedor para enfrentar a mais grave das ameaças à segurança económica. Em qualquer caso, até os esforços necessários para assegurar a protecção contra as flutuações da economia não conduzem ao tipo de planificação que constitui uma ameaça à nossa liberdade.
É de outro tipo o planeamento da segurança que põe em risco a liberdade. É, esse, o planeamento concebido para proteger os indivíduos e os grupos contra as diminuições dos seus rendimentos (diminuições que nada fez merecer mas que ocorrem diariamente numa sociedade de concorrência), contra as perdas que impõem severas privações e que, não tendo nenhuma justificação moral, são inerentes ao sistema de concorrência. A exigência de segurança aparece, então, como uma outra forma de exigência de remuneração justa, da remuneração estabelecida de acordo com os méritos subjectivos e não com os resultados objectivos da actividade de cada homem. Este tipo de segurança ou de justiça afigura-se incompatível com a liberdade de escolher emprego.
Os homens distribuem-se pelas várias actividades e negócios que existem, e em qualquer sistema, no qual essa distribuição é confiada à escolha que cada um faz do seu emprego, é necessário que a remuneração corresponda à utilidade que cada um tenha para os outros membros da sociedade mesmo que essa correspondência nenhuma relação tenha com os méritos subjectivos. Se é certo que, muitas vezes, os resultados úteis obtidos equivalem aos esforços empregados para os obter, tal equivalência não se pode sempre verificar qualquer que seja a forma da sociedade. Não se verificará, muito especialmente, naqueles numerosos casos em que a utilidade de um negócio ou de um ofício se vê alterada por circunstâncias que ninguém podia prever. Todos sabemos como é trágica a situação de um homem com larga experiência e possuidor de uma especialização arduamente obtida, que vê perder-se subitamente toda a sua utilidade e valor em virtude de uma invenção qualquer que vem beneficiar grandemente o resto da sociedade. A história dos últimos cem anos está cheia de exemplos deste género e alguns deles afectaram centenas de milhares de pessoas ao mesmo tempo.
É sem dúvida ofensivo para o nosso sentimento de justiça que alguém possa sofrer uma diminuição considerável do seu rendimento e a amarga destruição de todas as suas esperanças sem que nada tenha feito para o merecer e apesar do trabalho árduo que sempre exerceu e das excepcionais capacidades que possui. As reivindicações dos que passam por tais sofrimentos para que o Estado interfira a seu favor salvaguardando as suas legítimas esperanças, encontrarão decerto a compreensão e o apoio populares. E com a aprovação geral, em toda a parte os governos têm actuado, não só para proteger as pessoas assim ameaçadas de suas privações e dolorosas dificuldades, como para lhes assegurar a perduração dos seus rendimentos e as defender das vicissitudes do mercado (17).
Frederico Hayek |
(...) O conflito que estamos a considerar é, na verdade, fundamental. Trava-se entre dois tipos inconciliáveis de organização social que, considerando as suas formas mais características, têm sido muitas vezes descritos como o tipo da sociedade comercial e o tipo da sociedade militar. Esta analogia foi talvez infeliz porque desvia a atenção para o que não é essencial e dificulta a compreensão de que estamos perante uma verdadeira alternativa pois, fora dela, não existe uma terceira hipótese. Ou ao indivíduo pertence a escolha e o risco, ou o indivíduo fica sem uma nem o outro. O exército constitui efectivamente, e de muitas maneiras, a organização mais aproximada que conhecemos do segundo tipo de sociedade pois, nele, tanto o trabalho como o trabalhador são determinados superiormente e, caso os recursos sejam escassos, toda a gente é igualmente posta na penúria. É o único sistema que garante ao indivíduo uma total segurança económica que, alargada como está a toda a sociedade, faz que dela participem todos os seus membros. É, todavia, uma segurança inseparável das restrições à liberdade e da ordem hierárquica da vida militar, é a segurança das casernas (in ob. cit., pp. 195-200 e 204).
Notas:
(16) Há também sérios problemas de relações internacionais que surgem se a cidadania de um país confere um nível mínimo mais elevado do que outros, problemas que não podem ser levianamente postos de lado.
(17) Sugestões muito interessantes sobre a maneira de mitigar esta espécie de privações numa sociedade liberal foram recentemente expostas pelo Prof. W. H. Hutt num livro que merece um estudo cuidadoso: Plan for Reconstruction, 1943.
Continua
Nenhum comentário:
Postar um comentário