quarta-feira, 10 de março de 2010

O Caminho para a Servidão (iii)

Escrito por Frederico Hayek





Friedrich Hoelderlin




«O que sempre tem feito do Estado um inferno na terra tem sido precisamente procurar o homem fazer dele o seu paraíso».

F. Hoelderlin


Que o socialismo tenha tirado ao liberalismo o lugar de doutrina defendida pela maioria dos progressistas, não resultou apenas de as pessoas terem esquecido as advertências dos grandes pensadores liberais quanto às consequências do colectivismo. Resultou também de as pessoas terem sido convencidas pelas ideias opostas às que aqueles pensadores haviam defendido. É deveras espantoso que o socialismo - facilmente identificado como a ameaça mais grave à liberdade e que abertamente se apresentou como uma reacção contra o liberalismo da Revolução Francesa - tenha conquistado uma aceitação geral sob a bandeira da liberdade. Raramente se recorda hoje que o socialismo, nos seus começos, foi francamente autoritarista. Os escritores franceses que lançaram as bases do socialismo moderno tinham a certeza de que só um governo fortemente ditatorial poderia pôr em prática as suas doutrinas. Para eles, o socialismo constituía uma tentativa para «acabar com a revolução» através de uma deliberada re-organização da sociedade segundo as linhas hierárquicas e com a imposição de um «poder espiritual» repressivo. Quanto à liberdade, os fundadores do socialismo não escondiam as suas intenções. Consideravam a liberdade de pensamento como a erva ruim da sociedade do século XIX, e Saint-Simon, o pioneiro dos modernos planificadores, preconizou até que todos os que não aceitassem as limitações do planeamento proposto fossem «tratados como gado».

Só quando foi vencido pela influência das fortes correntes democráticas que precederam a revolução de 1848 é que o socialismo se começou a aliar a forças libertadoras. E não tardou muito tempo que este novo «socialismo democrático» se descomprometesse das suspeitas que os seus antecedentes lhe criaram. Ninguém viu com maior clareza do que Tocqueville que a democracia, como sistema essencialmente individualista, estava em conflito irredutível com o socialismo:

«A democracia alarga a esfera da liberdade individual, o socialismo restringe-a. A democracia atribui o máximo valor a cada homem, o socialismo faz de cada homem um simples agente, um número. A democracia e o comunismo nada têm de comum, excepto uma palavra: igualdade. Mas note-se a diferença: enquanto a democracia estabelece a igualdade em liberdade, o socialismo procura a igualdade em repressão e servidão» (7).

Para atenuar estas suspeitas e fazer seu o mais poderoso de todos os motivos políticos, o desejo de liberdade, o socialismo começou, com frequência cada vez maior, a acenar com a promessa de uma «nova liberdade». Quando fosse instituído, o socialismo realizaria o salto do reino da necessidade para o reino da liberdade. Traria a todos a «liberdade económica» sem a qual a liberdade política já conquistada «nada valia». Só o socialismo seria capaz de levar a bom termo a longa luta do homem pela liberdade, de que a liberdade política terá sido apenas um primeiro passo.






É importante atender à subtil modificação que foi dada ao significado da liberdade para que esta argumentação pudesse ter verosimilhança. Para os grandes lutadores da liberdade política, a palavra significa «libertar de toda a coerção», libertar cada homem do poder arbitrário de outros homens, quebrar as cadeias que não deixavam ao indivíduo outra hipótese se não obedecer às ordens do superior a quem estava ligado.

A «nova liberdade», agora prometida, era estar o homem liberto da necessidade, liberto da pressão das circunstâncias que sempre, inevitavelmente, limitam as possibilidades de escolha de todos nós, embora mais a uns do que a outros. Para o homem poder ser verdadeiramente livre, seria preciso quebrar «o despotismo das necessidades físicas» e «alargar os freios do sistema económico».

Neste sentido, a liberdade é apenas um outro nome para designar o «poder» (8) ou a riqueza. As promessas desta nova liberdade são em geral acompanhadas de irresponsáveis promessas de um grande aumento da riqueza na sociedade socialista. Mas não é da conquista absoluta dos tesouros que a natureza guarda que se espera obter essa «liberdade económica». As promessas consistem, efectivamente, em afirmar que com o socialismo desaparecerão as grandes desigualdades de possibilidade de escolha que existem entre as diferentes pessoas. A busca de uma nova liberdade apenas é, deste modo, um novo nome dado à antiquíssima busca de uma igual distribuição da riqueza. Mas, com este novo nome, os socialistas puderam ter, de comum com os liberais, uma palavra essencial, e exploraram esse facto até ao fundo. E se a palavra é empregada em sentido diferente pelos dois grupos, poucas pessoas o sabem distinguir e mais raras ainda são aquelas que se interrogam sobre a real possibilidade de combinar duas espécies tão diversas da liberdade prometida.

Não há qualquer dúvida de que a promessa de maior liberdade veio a ser uma das armas mais eficazes da propaganda socialista, e de que foi autêntica e sincera a convicção que se criou de que o socialismo traria consigo a liberdade. Tal convicção só aumentaria a tragédia quando se provasse que a Estrada da Liberdade assim prometida constituía na realidade a Auto-Estrada da Servidão. Principal e incontestável responsável da atracção exercida em inúmeros liberais pelo socialismo, a promessa da nova liberdade não os deixou ver o irredutível conflito que existe entre os princípios do socialismo e os do liberalismo e tornou possível que os socialistas usurpassem até o próprio nome da velho partido da liberdade. A maior parte da «inteligentzia» aderiu ao socialismo como aparente sucessor da tradição liberal e não podemos, portanto, estranhar que se lhe afigure inconcebível que o socialismo conduza ao contrário da liberdade (ob. cit., pp. 55-59).


Notas:

(7) «Discours prononcé à l'Assemblée Constituante le 12 Septembre 1848 sur la Question du Droit au Travail», Oeuvres Complètes de Tocqueville, vol. IX, 1866, p. 546.

(8) A confusão característica entre liberdade e poder, que várias vezes encontraremos ao longo deste ensaio, é assunto que exige um tratamento demasiado extenso para o podermos fazer aqui. Tão velha como o próprio socialismo, esta confusão está-lhe ligada tão estreitamente que, há quase setenta anos, um erudito francês, ao discutir as suas origens saint-simonistas, foi levado a concluir que tal teoria da liberdade «est à elle seule tout le socialisme» - P. Janet, Saint-Simon et le Socialisme, 1878, p. 26, nota. O defensor mais explícito daquela confusão é, significativamente, o mais importante filósofo do esquerdismo norte-americano, John Dewey; segundo ele «a liberdade é o poder efectivo de fazer coisas específicas» de tal modo que «a procura da liberdade é a procura do poder» (Liberty and Social Control, The Social Frontier, November, 1935, p. 41).















Continua


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