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domingo, 11 de junho de 2023

Camões e a Fisionomia da Pátria

Da autoria de Leonardo Coimbra


Real Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça


Túmulo de D. Pedro


Túmulo de D. Inês de Castro

«(...) o que aparece como modelo político a partir de Dom Afonso IV, e com realizações cada vez mais nítidas, é uma doutrina política que vem directa de Roma, daquela Roma que podemos ainda ligar não à Idade do Filho mas à do Pai. Surge então essa doutrina contra a política republicana e democrática, digamos assim, do povo e das instituições portuguesas. O rei começa a ser diferente. Marco do princípio disso, podia ser antes, mas assinalo-o quando Dom Afonso IV manda matar Inês de Castro por uma razão de Estado. A razão de Estado torna-se nítida em Portugal com esse assassínio, com essa execução, porque se achava que o país estava em perigo e preferiu-se que o estado perdurasse a que perdurasse o amor de Dom Pedro e Dona Inês.

E se formos a ver, o que verificamos é que a partir logo do primeiro rei houve cada vez mais a influência do Direito Romano. Gente que partia de Portugal para frequentar universidades, por exemplo a Universidade de Bolonha, que ali tomava conhecimento do Direito Romano e ia substituindo todo o direito que tentava ser um Direito cristão por aquele que finalmente triunfou e fez com que as instituições políticas propriamente portuguesas fossem abatidas por uma receita vinda de fora. E a coisa foi avançando mesmo com aqueles reis que, muitas vezes, em Portugal são considerados os melhores, um Dom João I, um Dom João II, um Dom Manuel, até acabar no século XVIII, já nos seus finais, por aquilo a que se chama o absolutismo real, que depois foi abatido com as lutas liberais, mas que nunca saiu do ânimo dos dirigentes portugueses. Os liberais portugueses, no fundo, eram absolutistas, tratava-se de mandar, a liberdade era para eles, a de mandarem, a de não ser só um ou os outros a mandarem, mas também eles. Agora quanto à liberdade dos mandados, pouca atenção se prestou a isso. E com a proclamação da República passou-se o mesmo. De maneira que, com as devidas diferenças e com uma liberdade geral muito maior do que a que havia de facto, a tendência que tem proliferado em Portugal tem sido essa de mandar nos outros. O que explica certas coisas e torna a história desse ponto muito interessante.»

Agostinho da Silva (in «Vida Conversável», organização e prefácio de Henryk Siewierski, 1998).


«Os argonautas do Mistério são os sábios, os poetas e os santos. Debrucemo-nos com eles no arco da velha ponte e vejamos o mundo que passa.

O Universo passa, o tempo corre e nas suas águas precipitam-se as flores marginais, correm reflectidos os mundos e os sóis.

O Poeta ouve o murmúrio que transita, fixa o instante fugitivo, e como em chapa de aço candente as águas que recebe no peito são asas de névoa, ascensão e fulgor, caindo no Mar transcendente da Memória em perfeito e luminoso corpo de eternidade.

E assim, o Poeta eterniza o instante... e assim o Poeta ergue à Consciência os mais incoercíveis movimentos da alma, e assim o Poeta filtra no episódio a sua parte de eternidade, eleva sobre os indivíduos transitórios a fisionomia espiritual das Pátrias, da Humanidade e Deus.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).


«Sob o aspecto religioso, é evidente que o que aparece em Portugal é uma gente completamente subordinada ao que o cristianismo se tornou depois da Contra-Reforma e que poderíamos talvez definir assim: um cristianismo completamente ocidentalizado, perdendo tudo quanto tinha de oriental, com mais um ponto extremamente curioso, que é este: a primeira transformação que o cristianismo sofre na Europa, ainda na Idade Média, é a de passar de um neoplatonismo de pensamento para um aristotelismo de pensamento, isto é, quando os cristãos tiveram de explicar a um grego o que era o cristianismo, fizeram-no em termos filosóficos para que ele o entendesse. Se o cristão não tivesse por objectivo converter ninguém, era escusado explicar, dizia o que era, no que acreditava e não tinha de dar mais nenhuma explicação. Mas como a sua ideia era também converter o pagão, converter o grego, ele tinha de explicar o cristianismo de maneira que o grego pudesse entender. Ora, das filosofias que havia à disposição, aquela que estava mais próxima do cristianismo era realmente o platonismo, mas já não na forma antiga de Platão, que não era muito conveniente para o cristianismo. Porque Platão teve duas épocas nítidas na sua vida, uma quando jovem, poeta, dramaturgo, em que andava à procura de temas para o teatro, que estava ensaiando e que de repente encontrou uma figura mais cómica e mais trágica ao mesmo tempo do que qualquer outra figura do teatro grego, no qual os poetas ou tinham de escolher as figuras trágicas como, por exemplo, Édipo, ou de inventar comédias. Mas ele encontrou uma figura grega viva, sua contemporânea, que era ao mesmo tempo fácil para a comédia e para a tragédia. Quando viu Sócrates meter a ridículo os sacerdotes, os generais ou os filósofos perante os meninos que se riam da figura que os outros faziam, ele tinha ali um assunto de comédia como nunca houve; e ao mesmo tempo as acusações e a morte de Sócrates deram-lhe um assunto de tragédia como, provavelmente, só depois a de Cristo deu a outros. Excluídas as diferenças, naturalmente, de que Cristo se apresentou sempre como enviado, um filho de Deus e Sócrates não ousou tanto, mas andou muito perto, porque quando tomava resoluções depois de ouvir o seu deus interior, ele estava muito perto do conceito cristão de ser o homem filho de Deus. De qualquer maneira, no platonismo, o mais interessante para Platão terminou quando fundou uma Academia. Quer dizer, Platão tinha recebido de Sócrates a lição suprema de que a filosofia não é para ensinar, mas sim para provocar, para fazer aos outros perguntas que os embarace e os leve, depois, pelo pensamento a desembaraçarem-se tanto quanto possível.


Quando Platão se pôs a ensinar na Academia acabou com isso, ele fundou na Academia todas as academias do mundo no que elas têm de pior, com alguma coisa útil que pudessem ter. Então muitos dos seus discípulos afastaram-se da primeira parte de Platão, porque não tinham o génio teatral dele, mas ao mesmo tempo afastavam-se também da segunda, porque não estavam para se meter no que era já uma Universidade, no que era já uma Academia com todos os seus defeitos e preferiam estar à parte em pequenos grupos ou, individualmente, entrarem naquilo que se chamou neoplatonismo.

Então a Igreja o que encontrou mais perto de Cristo, dos Evangelhos, para pregar ao pagão foi exactamente o neoplatonismo. Mas o platonismo, mesmo no neoplatonismo, é muito difícil de entrar na cabeça do homem vulgar, do homem comum cuja vida se não faz meditando nessas coisas metafísicas, mas no físico da vida. E, de facto, a Igreja estava em crise perante as populações, quando foi salva pela invasão muçulmana da Península. Paradoxalmente, o que salvou o cristianismo nessa altura foi os muçulmanos terem invadido a Espanha e trazido com eles Aristóteles, que tinha uma filosofia muito mais compreensível para o homem vulgar, ao passo que Platão a ideia que dava era a da filosofia do abstracto, do inexistente, do sonhado. Aristóteles dava a filosofia do concreto, eram as coisas que se passavam na Terra, era aquilo que toda a gente podia compreender e lhes dava até com a lógica um instrumento de trabalho extremamente simples: o silogismo foi a chave para abrir muita porta, que para outros estava fechada.

Por isso a Igreja passa do platonismo para o aristotelismo e é essa Igreja fortemente aristotélica que vem aparecer em Portugal, que por natureza não era aristotélico ou que era as duas coisas ao mesmo tempo. Aí talvez se pudesse dizer que o português – e é o exemplo de Camões – era um homem fadado para entender ao mesmo tempo as coisas do concreto e para poder levar uma vida de tal maneira que parecia que não podia atingir senão outra coisa além do concreto, do sensível, do facilmente apreensível pelos sentidos. De repente, esse homem alçava-se para outras coisas, pairava por outras regiões, como no começo, que parecia incompatível no mesmo indivíduo. Isto é, assim como Joaquim de Flora tinha talvez pensado que em Deus havia, simultaneamente, o tempo e a eternidade, o português achava que eram simultâneos e com a mesma importância, o mundo do abstracto, o mundo do divino, digamos, e o mundo do concreto, o mundo humano. E coisa curiosa, é isso exactamente que vamos encontrar na Ilha dos Amores de Camões. Quando Camões ali pinta, descreve o verdadeiro lugar que se descobre, a epopeia – continuo a achar – não canta o descobrimento do caminho marítimo para a Índia, aproveita a narrativa para dizer que o importante a descobrir não é o lugar de onde vem a pimenta e aonde se pode vender o veludo, que o ponto importante que os portugueses têm de descobrir é o tipo de vida que permita a um tempo mantê-los no abstracto e não descuidarem em nada o concreto, que aqui o português tem obrigação de ser duplo, não a obrigação de ser uno, e que talvez nessa duplicidade – veja-se como curiosamente a palavra duplicidade tomou o sentido pejorativo e nós achamos que aquele que tem duplicidade é o hipócrita, é um sujeito em que não se pode confiar, quando provavelmente duplicidade é a possibilidade de estar em dois terrenos ao mesmo tempo – é que podia estar um ideal para todo o homem.»

Agostinho da Silva (in «Vida Conversável», organização e prefácio de Henryk Siewierski, 1998).


«A tragédia grega é a luta do homem com a Fatalidade, isto é, das forças de vida contra todos os resíduos da evolução amalgamados e condensados num único bloco de Fatalidade.

Por baixo do mais fácil e gracioso politeísmo corre e flutua um pandemonismo informe, recebendo todas as precipitações residuais do alto.

Hesíodo e Ésquilo passeiam entre as sombras; Sócrates e Platão entre as frescas claridades duma manhã de Abril.

Mas Platão sabe que essas claridades podem ser as sombras duma outra luz e a alegoria da caverna vive a chamar a atenção do homem...

A Divina Comédia é o sonho de Jacob em plena vigília, é a onda iniciada num estremecimento da alma do Poeta e alargando e subindo, penetrando em todos os planos da vida espiritual.

Argonautas do Mistério que elevam a consciência a eternas visões da realidade.

Mas o mais insignificante poeta é ainda capaz de fixar qualquer fugitivo estremecimento e chamá-lo para a vida no próprio instante em que silenciosamente se ia fenecendo.»

Leonardo Coimbra («Camões e a Fisionomia da Pátria»).



Camões e a Fisionomia da Pátria

 

(...) A arte é um formidável fenómeno de osmose: a alma de artista ressoa de todos os estremecimentos da natureza e a natureza é pintada com as tintas da sua alma.

O Universo é convívio, por isso o artista retribui, e em excesso, todas as dádivas que recebeu.

O Mar, o mar dos portugueses entrou pelas órbitas do Poeta e saiu cantando as oitavas d’Os Lusíadas.

E tão íntimo foi o abraço, tão perfeita a transfusão que o marulho longínquo do oceano é esta própria fala:

 

Bramindo o negro mar, de longe brada

Como se desse em vão nalgum rochedo.

 

Portugal encapela-se em ondas, a sua vida comunica-se e de praia em praia é um abraço cingindo o planeta.

A vida do planeta é convivência no Infinito, a alma de Camões ligou, pelos fios invisíveis da Memória, o Mar e a Pátria à vida espiritual do Universo.

As oitavas d’Os Lusíadas, ondas do mar salgado, são eternos estremecimentos de Memória esculpindo no Infinito a fisionomia espiritual da Pátria.

O homem pertence a vários planos de vida espiritual: é cidadão da sua pátria, membro da sua religião, parcela consciente no Universo.

E cada plano é atravessado pelo esforço do homem-consciência para a conservação e para a Memória.

É por isso que em cada plano há névoa e sonho e o homem estremece duma nostalgia inquietante.

O homem é o desterrado de Soares do Reis...

Se o universo desde o sábio ao Poeta (e sem que prejulgue o problema Mal) é convívio, a consciência do homem há-de procurar as relações cósmicas na companhia das consciências mais próximas.

Eis porque o homem, consciência no Infinito, é cidadão na sua Pátria e une a sua voz à voz de seus irmãos para erguer em coro a própria voz da Pátria. E, como as almas só crescem pelo sacrifício dos desejos de separatividade que as forças da Morte nelas insinuaram, o amor da Pátria é a primeira e a mais concreta experiência religiosa das almas.

Mal vai, no entanto, às pátrias que, vítimas dum orgulhoso isolamento demoníaco, não prolongam o sacrifício das almas, não alargam os seus estremecimentos de amor até à vida cósmica e infinita.

Se Deus é a própria consciência social, para que esta não pese e adormeça as almas necessário é que cresça e se ilimite em consciência social do Universo.

O amor da Pátria será o amor dos homens e das coisas, encerrando-se em eterno e renovado amor de Deus.

A voz dos Portugueses, espessada, avolumando em ampliativos e excedentes abraços, será a epopeia da Pátria levando no seu canto o mar e a paisagem, os homens e o céu.


Curso do rio Mondego


As oitavas d’Os Lusíadas são as ondas do mar levando em espuma as bandeiras das batalhas, trapejando ao vendaval dos heroísmos, os sonhos da raça, o amor, Coimbra e o Mondego, os montes, campos e boninas...

A crítica mais ou menos boticária entreviu n’Os Lusíadas uma mistura do maravilhoso pagão e do maravilhoso cristão.

É tempo de acabar com tanta incompreensão, de dizer bem alto que uma obra de arte é um ser vivo, uma viva consciência salvando para a Memória o fluxo que transita. Jamais será a mistura de mortes e quimeras.

Há n’Os Lusíadas, como em toda a labareda, uma parte incombustível que a chama não incendeia e tomba em inerte poeira de cinzas.

Incombustível, quando o coração do Poeta não arde em tão alto fogo devorador que tudo queima.

É a erudição do Poeta que fornece o alimento à chama, e, se o fogo do pensamento é génio, tudo arde em vivo lume de beleza e eternidade.

Por vezes, sim, por vezes o calor do pensamento não basta a reiqueimar essa erudição, e então na fluidez das oitavas boiam estátuas mutiladas de deuses mortos e ausentes.

Mas esse é o fumo que faz toda a labareda humana, é o sinal de origem que, marcando a imperfeição do homem, sublinha a divindade do Poeta.

O pensamento vulgar, não subindo acima das mais próximas realidades, ignora a natureza e o valor do simbolismo, chegando a supor que os símbolos poéticos são artifícios decorativos com que o Poeta procura deleitar-nos a sensibilidade.

Daí a ideia dum maravilhoso que, como as decorações dos arraiais minhotos, passa de poeta em poeta.

Se conhecer é relacionar, é sempre uma atenuada ou viva analogia a alma do próprio conhecimento, que da ciência à arte é sempre, embora diferentemente, um simbolismo.

O simbolismo pagão é a grande concepção estética da Natureza e da Vida. As contradições entre o homem e a Natureza resumem-se ainda às relações de silêncio e convívio, que o homem encontra e harmoniza na quase tangibilidade dos deuses mal escondidos ainda no seio duma Natureza amiga.

O murmúrio da floresta é quase o sopro, repousado e possante, duma respiração imensa: a tremulina de luz, que percorre o ribeiro quando um ruído se ergue do estremecimento do canavial, é o próprio corpo de Frescura a caminhar; o bulício das selvas, multiplicando e fecundando a vida, é a própria Vida espalhada e vagabunda juntando-se para crescer; o silêncio pontiluzente, meditativo e severo, da noite estrelada é a própria serenidade da distância a olhar: sátiros, ninfas, hamadríadas, nereidas, faunos e deuses passeiam por entre os homens...


As Nereidas, por Gaston Bussière (1902).


Fauno

O mundo é a convivência ingénua, mas já os dragões e as serpentes de novo assustam e repelem a sensibilidade do homem.

Ele terá de reencontrar a companhia adentro de si mesmo...

Se o corpo de Vénus é feito de espuma do mar, a Virgem Maria é a mais alta e translúcida espuma da Alma.

Um paganismo simples e gracioso aprendeu na vida universal as mesmas forças, tendências e elementares vontades, que trabalham silenciosamente nas profundezas do ser humano; mas já as lutas titânicas revelam na Natureza vontades inimigas, que nos assediam e oprimem.

Um titanismo vitorioso, coberto de glória e feridas, pode voltar a ressentir a beleza ingénua, a inocência e o bem; na forma da aragem que embala as florinhas, na frescura humilde do arroio, na sombra acolhedora da árvore, no sonho que trespassa a grande voz dos elementos.

Eis porque não há maravilhoso nem misturas de maravilhoso, há sim uma voz humana que é contemporaneamente estremecimento da alma e do ar, que fulgura, no éter interior e no éter envolvente, a mesma luminosa geometria. N’Os Lusíadas há alegria campesina, boninas, mas há também águas que são já lágrimas de amor saudoso, há montes e ervinhas que andam a aprender no peito de Inês.

E a paisagem de Coimbra ainda hoje vive a repetir essas lições; na Quinta das Lágrimas ainda hoje da fonte correm sem descanso, ressoando em eco, os versos desta oitava:

 

As filhas do Mondego a morte escura

Longo tempo chorando memoraram;

E por memória eterna, em fonte pura

As lágrimas choradas transformaram:

O nome lhe puseram, que inda dura,

Dos amores de Inês, que ali passaram

Vede que fresca fonte rega as flores

Que lágrimas são a água e o nome amores.

 

A natureza não existe fora da convivência do homem. Ora simples, silenciosa e profunda, duma inocente religiosidade, ora destroçada e perdida se a não socorre a memória.

Fonte que é o simples murmúrio da gratidão das sedes, leito de frescura da ninfa adormecida, translúcida neblina das rendas que a vestem; fonte que discorre em lágrimas as saudades dum amor distante...

É esta Natureza que o Poeta tem de conquistar para a alma, é esta Natureza que a Pátria tem de desvendar para o mundo.

Viajar é compreender: por ignotos rumos procurar e levar companhia aos seres e às coisas da distância, alargar, dilatar a alma para além dos horizontes, ampliando o convívio, contactando por maior superfície a grande zona do Mistério.




Ao partir para a viagem, acorrem todas as vozes da tranquilidade doméstica, demovendo e comovendo, tentando prender o homem à firmeza das ligações criadas, temendo a deslealdade e o esquecimento.

Há vozes de egoísmo e de preguiça, mas há também vozes proféticas que acusam a nossa vontade pecaminosa de não ir em busca de novas amizades, mas de ambições e maiores egoísmos.

Uma noite, era eu ainda colegial, senti, olhando da sala de estudo o côncavo firmamento estrelado, a atracção dum astro distante, e a minha alma infantil partiu subitamente ao chamamento da distância; de repente um frio de isolamento, de abandono, me fez regressar instantaneamente ao calor e ao abrigo dos homens, que, embora pouco carinhoso, me falava, era meu, era convívio, conhecimento, mútuo amparo.

Jamais se apagou da minha memória essa sensação única, que hoje suponho o primeiro e mais perfeito contacto do meu ser com o Mistério.

Também, ao partir, o Velho do Restelo virá... E à despedida, há-de dizer egoísmos, mas há-de também prevenir os egoísmos e as cobiças para que não aumentem com o tamanho dos mundos que lhes vão ser dados.

E o Velho sabe que a Viagem, a Epopeia, é uma obra prometaica, de «fogo de altos desejos que a movera».

O homem Prometeu é o homem dando o Infinito aos seus desejos, partindo para além dos deuses familiares, correndo o risco de ficar só e às escuras no Espaço sem fim, onde só um novo Deus de infinito amor poderá ser companhia.

Esse homem Prometeu, perdido e vagabundo, encontrou a mão de Jesus reconduzindo-o a Deus; mas quantos ainda hoje passeiam num Infinito mudo a desolada estátua de sua solidão e tristeza?

A Epopeia vai fazer-se: os Portugueses partem ligando os mundos, e, ao dobrar da África, o Velho do Restelo é o Prometeu português, o Adamastor petrificado, prevenindo de novo as almas das duras consequências da audácia, das dores companheiras de toda a criação.

O Velho desejara que o fogo dos altos desejos prometaicos não tivera ardido, e profetizara com uma voz tão sábia e prevenida que bem parece ser a própria voz dum doloroso saber de experiências.

O Velho acompanha a frota e, de novo, maior, imenso e tormentoso, quer vedar o Mistério, conter as forças de bem e de mal que os navegadores estão prestes a libertar.

Profetiza a ameaça, mas, quando interrogado em palavras lusíadas, conta aos Portugueses, ao mar e às nuvens a tragédia esquiliana da sua aventura.

O irmão Prometeu roubara o fogo aos deuses, ele quisera furtar-lhes o amor.

A luz prometaica iluminara os mundos, mas o Espaço regelado não fora comovido por essa fria luz da inteligência: a candeia cristã vai purificar e aquecer e será o Amor a Grande Presença Universal, dadivosa e inesgotável.

Eis porque o Prometeu português tem um Cáucaso – é o término do mundo conhecido, aprisionado em contacto com as primeiras ondas do mundo misterioso!


Tétis mostra a Vasco da Gama a Máquina do Mundo. Ver aqui


Eis porque o Adamastor tem um abutre – os próprios braços do amor, regaço ondulado de Tétis, fazendo estremecer infinitamente a bruteza penhascosa do seu corpo.

 

Converte-se-me a carne em terra dura,

Em penedos os ossos se fizeram;

Estes membros que vês, e esta figura

Por estas longas águas se estenderam:

Enfim, minha gravíssima estatura

Neste remoto cabo converteram

Os deuses; e por mais dobradas mágoas,

Me anda Tétis cercando destas águas.

 

O seu corpo é beijado pelas mil bocas do amor que o devora e, abraçado à névoa do corpo amado, sobe liberto o seu desejo, penetrando em lágrimas as funduras oceânicas em que se abisma.

E chora, chove, desfaz-se a nuvem negra e de novo o Sol reaquece mais desejos.

Alma sedenta da Pátria, inextinguível fome de imortalidade, com o amor cravado da Pátria traçada a fogo no próprio coração do Infinito!

E lá vai Vasco da Gama num Mar, que não é do planeta, levando a raça numa Viagem sem termo a ouvir e libertar adamastores, correndo num pacífico oceano de Memória a sua eterna aventura religiosa.

E, cantando com o Poeta, todos nós somos já espectros duma outra vida, formas duma luz transcendente penetrando o planeta dos estremecimentos do Infinito.

É a grande Viagem: o Gama ao leme, o Poeta fazendo do seu canto o próprio oceano em que vogamos, e nós, reconciliados com ele, em êxtase cantando a beleza profunda e eterna das almas...

Faça cada Português as suas pazes com Camões e, de novo, no Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há-de sorrir...

(In Leonardo Coimbra, Dispersos, I, Poesia Portuguesa, Editorial Verbo, Porto, 1984, pp. 213-219).



Vasco da Gama chega à Índia.

sábado, 5 de novembro de 2022

"O Mistério é feminino, tratai-o como Mulher"

Escrito por Leonardo Coimbra





 


«Não se deteve Leonardo Coimbra a meditar na fórmula evangélica: Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Estas três expressões bíblicas significam três rumos, e não três termos que limitem as virtudes teologais. O mistério da encarnação é solidário do mistério da redenção.

No livro intitulado Jesus, o nosso pensador, utilizando a equivalência evangélica de Cristo com o Verbo, escreveu comovidamente: “Cristo é a Verdade, a Beleza e a Bondade”. Tal cristologia encerra, assim, a evolução de todos os valores, e portanto opõe-se ao progresso da filosofia. A imagem da crucificação representa, para Leonardo Coimbra, adequada relação entre o tempo e a eternidade.

A dificuldade da doutrina cristã não consiste no enunciado de cada mistério que é proposto à fé. Separadamente, nenhum dos mistérios repugna à razão, logo que de algum modo se admita a distinção entre o que é natural e o que sobrenatural. A dificuldade consiste em conciliar os mistérios de molde a apresentar à cultura actual uma satisfatória sistematização da teologia.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).


«Muita gente ignora que a palavra meiga se formou por evolução popular da palavra mágica. Como se explica em etimologia, o g intervocálico caiu e o c sonorizou-se em g. Deu-se ao mesmo tempo uma leve alteração do ditongo. Tudo por este teor: magicam-maica-maiga-meiga.

Meiga é a mulher, que é como quem diz mágica. É ela quem seduz o homem que escolheu entre outros homens, mas finge que foi ela a seduzida, jogando admiravelmente com a nossa vaidade. Nós, quando apaixonados, julgamos sê-lo por deliberação própria; não nos apercebemos que fomos enfeitiçados. A mulher tem naturalmente o segredo das ciências ocultas. É mestra na arte de conhecer as naturezas e as intenções pela fisionomia.

Se a fisionomia é, como ensina Álvaro Ribeiro e ensina Ibn’Arabî, a mais alta das ciências, temos de reconhecer que a mulher é, enquanto ser espiritual, de longe superior ao homem.

Basta observar o grau de profundidade do olhar num e noutro sexo. O homem tem uns olhos sem mistério, a superficialidade mental está neles bem manifesta. Tem qualquer coisa de opaco. Os olhos das mulheres, cuja visão lateral tem mais amplitude, vêem num relance o que se passa à sua volta, mas há neles um brilho nocturno semelhante ao das estrelas. Exprimem a misteriosidade da alma, como as estrelas a profundidade de onde emergem.»

António Telmo («Congeminações de um Neopitagórico»).


«A mulher despreza o homem medíocre, o homem que não se distingue, o homem incapaz de heroísmo. Dir-se-ia que anseia pelo superhomem. É imensa a literatura que narra os episódios dramáticos da luta por este modo de liberdade, e também imensa a literatura demonstrativa de que nem sempre a mulher ficou vencida. A imaginação feminina, de atracção e repulsão, de motivos e quietivos, é como que a magia da carne. Mais natural do que o homem, a mulher situa o seu afecto na carne da sua carne, dá prioridade afectiva às relações de consanguinidade, ignorando talvez as relações espirituais com o amor.»

Álvaro Ribeiro («Escola Formal»).




 

    "O Mistério é feminino, tratai-o como Mulher"


Penetrar o Mistério, que sublime Alegria!

Mas sedes prudentes.

O Mistério é feminino, tratai-o como Mulher.

Um fino tacto, uma comovida e enleada delicadeza e muito enternecimento vos são precisos.

O Mistério não permite violências. Se tentais violentá-lo, morre da violência.

Quando, colegial, numa verde cidade provinciana, saía aos domingos a passeio e acontecia atravessar as ruas da cidade, era um rumor de asas, que, dentro em mim, se abriam ao olhar os afastados vultos femininos, recortando a luz das janelas. Eram primaveras de ignorados mundos a lançarem sobre mim misteriosos perfumes, tépidos segredos, orgias inocentes, bacanais castíssimas; e o corpo, em jeitos de alma, evocava castelos à beira-rio, jardins sobre terraços ao crepúsculo, ânforas de água carregando pajens, brancos jasmins esparsos, todo um mundo de brandura, enlevo, afago, devoções, renovados encantos de novas harmonias.

A Mulher era o Mistério.

Mistério próximo e todavia inabordável se nos falta a firmeza, se, dos nossos sentidos e jeitos, é ausente a humildade atenciosa.

Brutalizai uma Mulher e sereis um Moisés Satã, invertendo o milagre de Horeb.

A água volve-se rocha; a lira, que a todos os ventos ressoava, dizendo ocultas e nunca ouvidas faltas, vai imediatamente calar-se. Nada mais será que um efeito do vosso mal, uma caricatura da vossa violência.

O Universo é na vossa frente; virginal e sedutor, tenta-vos. Conquistai-o: mas que fique sempre virgem. Só assim vos continuará a seduzir.

O Mistério é uma Mulher...

(In Leonardo Coimbra, A Alegria, a Dor e a Graça, Livraria Tavares Martins/Porto, 1956, pp. 48-49).


quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Dois humanismos – duas liberdades

Escrito por Leonardo Coimbra

 

«Nada mais objectivo que a ciência moderna, diz-se.

Se objectivo é coincidência da representação com o objecto, pode dizer-se com muitas restrições ainda; mas se objectivo é acordo de todo o saber com toda a realidade, nada menos objectivo que a ciência.»

Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Se (...) a doutrina das categorias perdura na filosofia moderna, temos de reconhecer que tal perduração pouco ou nada tem a ver, em rigor, com o pensamento categorial. Ainda admitiríamos que representasse uma involuntária homenagem à filosofia clássica se ela não se explicasse pela desesperada verificação de que as ciências modernas não possuem fundamento, nem razão de si, nem finalidade positiva. E desde o seu já remoto início, a filosofia que lhes deu origem sofre essa desesperada verificação. O que as caracteriza é a recusa do real como uma totalidade incindível, dividindo-o em tantos sectores quantas as ciências que de cada um deles fazem seu objecto. Ora as categorias residem no ponto de encontro de todo o real com todo o pensamento, entendendo por todo o real que nada é real se não o implicar, e por todo o pensamento que nada é pensamento se não o implicar. O que a filosofia moderna pretendeu foi que cada ciência e respectivo sector da realidade sejam o que são sem implicarem a totalidade do pensamento e do real e, apesar disso, lhes correspondam suas próprias e exclusivas categorias. Pretendeu escapar à primeira conclusão extraída da necessidade das categorias que há pouco enunciámos: a de que não há predicados exclusivos de um único ser ou coisa. O derradeiro filósofo moderno, M. Heidegger, ainda defendeu esta pretensão. Disse ele: “As ciências particulares estudam diversos campos objectivos (...). Em nosso entender, reconhece-se que cada um destes campos objectivos pertence a determinados sectores da realidade. A estes correspondem, segundo a sua objectividade, uma estrutura e uma constituição determinadas. Vemo-nos assim perante uma tarefa que geralmente se designa pelo nome de doutrina das categorias” (M. Heidegger, “Traité des Catégories et de la Signification chez Duns Scott”, trad. Francesa, ed. Gallimard, Paris, 1970, p. 42).

Mais adiante, percorrida a descrição desta tarefa, Heidegger conclui: “Uma conclusão necessária nos parece: as dez categorias aristotélicas e uma doutrina que nelas se fundamente, revelam-se, não só incompletas, mas também hesitantes nas suas determinações e inexactas porque lhes escapa a consciência de uma distinção entre os sectores da realidade”.

Esta tarefa de encontrar categorias próprias de cada ciência, e só dela, que Heidegger faz remontar a Duns Escoto, no início da filosofia moderna, não tem lugar na filosofia clássica. O que não significa que, aí, as ciências que dela derivaram, ou tal como dela derivaram, se não distingam entre si. Distinguem-se, sem dúvida, mas mantendo-se em cada uma, incindível, a totalidade do real, pois todas estão igualmente suspensas da categorias lógicas, lugares de encontro de todo o real e todo o pensamento. E quando, na filosofia clássica, se fala das categorias próprias de cada ciência, do que se fala é das modalidades das categorias lógicas que convêm ao distinto conhecimento e à distinta manifestação da totalidade do real próprios de cada ciência. É o caso da ciência económica. Suas categorias dizemos serem a propriedade, o mercado e o dinheiro. Não figuram elas entre as dez categorias lógicas mas são modalidades de três dessas categorias: a propriedade é um modo da substância, o mercado um modo da acção, o dinheiro um modo da relação 

Orlando Vitorino («Exaltação da Filosofia Derrotada»).

 


«A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre é o mais significativo dos escritos extensos do período da transmutação. Obra vária e por vezes complexa, não é sempre fácil seguir através dela o essencial pensamento. A primeira parte é, especulativamente, do mais alto interesse; consiste a segunda numa aplicação e comentário da primeira.

“A tragédia do homem – começa o autor – está na ignorância de si e do Universo em que vive, ou antes, convive. A sua vida é uma relação, antes, um sistema de relações com esse Universo. A felicidade seria o acordo e a harmonia dessas relações, de modo que ao crescimento do homem em conhecimento e amor correspondesse o alargamento totalizante dessas relações e o seu aprofundamento significativo.”

Todas as formas de pensamento pelas quais o homem pretende conhecer-se e estabelecer ligações com o Universo, podem receber a designação de “humanismo”, visto que, antes de alguma coisa exprimirem, exprimem ao próprio homem e à sua situação cósmica e religiosa. O autor classifica as várias formas de humanismo sob as seguintes designações: humanismo idealista; humanismo cristão, humanismo antropolátrico, humanismo exaustivo.

O primeiro, que com Platão e Aristóteles precede o humanismo cristão, é apresentado no seu alto valor especulativo, mas também nos seus limites para a redenção eficaz e total. O humanismo antropolátrico e o humanismo exaustivo são apresentados, respectivamente, como consequência do cristianismo e como sua degenerescência.

O humanismo exaustivo é o último estádio do antropolátrico, estádio que o homem europeu está actualmente atingindo. Nele se encontram ténues e quase obliteradas as relações entre Deus e o homem e, consequentemente, entre o homem e a autêntica natureza. Já o filósofo não vê nesta, como via na forma anterior, o homem em suas profundas relações, deificando-se a si mesmo e aos seus mais altos atributos, mas exaurindo suas relações cósmicas e religiosas, deificando a mais extrínseca forma do seu ser, da sua acção e das suas obras. “Este humanismo de conquista, exaustivo de tudo o que não é homem ou humano serviço, é a forma de vontade do cientismo técnico, como o foi do homem essencialmente mágico”.

A segunda parte do livro, mais complexa, apresenta-nos a Rússia contemporânea como extrema e apocalíptica realização do humanismo exaustivo com suas titânicas seduções. Para esta realização se encontrava a Rússia mais predisposta por virtude de uma concepção transcendentalista vaga e pouco eficaz da religião. – O estudo do pensamento e da literatura profética russa vem a seguir como confirmativo da visão anterior. Profundamente atento às implicações metafísicas e religiosas que sempre a política supõe, Leonardo Coimbra mostra como a pequena influência da religião cristã na visão e no conceito de natureza, como também no direito e nas instituições sociais da Rússia, condiciona a dessacratização da natureza e do homem da estepe, sobre os quais, em sua desqualificada nudez, vai agir, com ingenuidade heróica e sombria, a técnica política cujo originário condicionalismo, por um grandioso paradoxo, como já dissera no livro sobre S. Francisco de Assis, Visão Franciscana da Vida, fora ainda o amor cristão.

O autor conclui, mostrando que as minoradas virtudes do homem social e o cientismo técnico jamais poderão constituir substituto eficaz da “caridade, que é o verdadeiro coração da justiça” e que o unanimismo social e a estatolatria jamais poderão constituir um final para o homem.»

José Marinho («O Pensamento Filosófico de Leonardo Coimbra»).



«Leonardo Coimbra efectivamente abusa da pontuação, surpreendendo inesperadamente o leitor com a colocação de pontos finais. Muitas da suas frases, que parecem complementares e subordinadas às outras, mais bem ficariam ligadas por outros sinais de pontuação. Esta forçada separação representa, contudo, que a frase que nos parece dividida não foi apreendida em pura iluminação de receptividade interior mas por tentativas, num adejar especulativo, até à formulação completa. A intuição mística, que se atinge pela tripla via, pelo trivial, e que se transforma em ciência pelo quadrivial, ainda estava distante.»

Álvaro Ribeiro («A Arte de Filosofar»).

 

Dois humanismos – duas liberdades 

O que é o humanismo?

Não interessa saber o que seja sob o ponto de vista histórico o humanismo, pois isso nada resolveria a não ser que a noção de humanismo assim exposta fosse inequívoca e bem determinada.

Ora, claro está, que a noção genética de humanismo será a referência a uma certa forma de cultura dum certo agrupamento humano.

No nosso caso histórica era a referência à cultura clássica, uma concepção da vida de origem greco-latina.

Ora não só há impossibilidade de fusão real entre o grego e o latino, mas entre as interpretações gregas encontramos marcadas as mais diversas tendências de pensamento. E, sobretudo, a consciência intelectual aparece em vários níveis de aprofundamento, mais ou menos livre e mais ou menos consciente da directriz e essência da sua actividade.

Deixemos, pois, a referência histórica do humanismo para o estudarmos no campo das suas possibilidades como síntese interpretativa da experiência.

O humanismo é uma referência ao homem.

Se o homem é tomado como uma realidade bem definida e, permita-se a expressão, como realidade planificável, não é difícil encontrar no homem o sistema de referência a que terá de obedecer toda a realidade.

Mas, se o homem é ele mesmo contradição e luta, terá de haver uma valorização das suas possibilidades para referir o negativo ao positivo, o menos ao mais, o insignificante ou pouco significativo à significação que caracteriza e é norma.

Ou o homem é o solitário do Universo ou ele é, pela consciência intelectual, moral e religiosa, o próprio centro do Universo, onde passam os fios de luz da sua significação, ondem batem frementes as palpitações cardíacas da vida universal.

Os dois pólos extremos do humanismo: um humanismo de conquista, servindo o Universo escravo à vontade omnipotente do homem; um humanismo de amor, fazendo da consciência humana o lar onde adquirem luminoso verbo as taciturnas ansiedades das coisas e dos seres, lar onde a luz e o calor são a libertação alada, a recordação saudosa do beijo originário da Criação.



Pólos extremos, dinamizando correntes opostas, cujas águas, no entanto, se misturam na experiência humana, que é um turbilhão dos seus choques, separações e reencontros, mais que a pureza das polarizações originárias.

Como exemplos extremos teríamos, dum lado, o mecanismo tecnológico das divagações do purismo bolchevique, de outro lado, o puro cristianismo de certas almas capazes de todo o amor compreensivo, de todo o aprofundamento intelectual da vida e das cousas até à alma que as anima ou à ideia que as informa. 

O humanismo conquistador 

O homem é tudo, o resto nada mais que matéria oferecida à sua ambição e conquista.

(...) Apresentamos os aspectos mais extremistas deste pensamento, que olha o Universo como um curso do Acaso, onde só tem significado a consciência e a vontade do homem.

Este extremismo é, com efeito, a máscara do cientismo contemporâneo, chamando cientismo ao conhecimento exterior da ciência pelo seu conteúdo já constituído ou, menos ainda, pelas maravilhas do seu poder de aplicação.

Como o pensamento científico é, mesmo quando desinteressado, voltado para a acção material, claro está que uma degradação utilitarista deste pensamento, como é o cientismo, será sempre a epopeia do domínio universal do homem.

É a contraposição ocidentalista ao recolhimento de certas formas do negativismo oriental.

O que no orientalizado Schopenhauer é a descoberta da consciência crítica, é, nestes humanistas, a formação da consciência técnica.

A ciência dá ao homem o poder de humanizar o Universo, de insculpir o seu autógrafo no grande Acaso da existência; para Schopenhauer, Kant deu aos homens a consciência crítica capaz de lhes revelar a fantasmagoria que é o Universo dos fenómenos.

Os primeiros modelam o Universo pelas normas do seu querer; os segundos negam em si mesmo esse querer e o Universo, que é um simples fantasma desse querer, apaga-se como no anteparo a imagem a que de repente faltou a luz projectora.

Tese e antítese, expressão do mesmo humanismo absorvente, fazendo do ser um simples comentário, insignificante acompanhamento da autêntica realidade humana: nos técnicos o homem fenómeno, em Schopenhauer o homem numenal; mas sempre o homem e só o homem.

Um incendeia o Universo para nele acender a luz única do humanismo; outro apaga o Universo para adormecer no silêncio dessa noite a solitária consciência do homem.

E a passagem do homem fenómeno para o homem númeno é ainda um simples progresso do humanismo, a simples transposição da consciência espontânea para a consciência crítica.

É ainda o homem o único ser significativo do Universo, unicamente se mudou o sentido do seu esforço: da vigília para o sono, da acção heróica que unifica os plurais pela assimilação conquistadora, para o repouso das conquistas realizadas sem a emergência de novas pluralizações a conquistar.

O homem fenómeno canta a epopeia do trabalho da realização do universal Império do Homem; o homem númeno vê a inutilidade desse trabalho pois o Império é realizado pela objectivação duma Vontade, que se exerceria sem fim e sem destino, só por se exercer.

O primeiro projecta a luz do seu esforço num remoto além e vai-se contente a olhar a esteira do caminho; o segundo engloba caminho, anteparo e projector na mesma realidade, que é a sua consciência negadora da vontade.

Arthur Schopenhauer

Kant tinha guardado a pessoa espiritual da terrificante fusão panteísta nos abismos da matéria; mas Schopenhauer entrega essa mesma pessoa à dissolução universal, de onde apenas poderá salvar-se não um espírito possuindo-se na reflexão unificante da verdade e do amor, mas uma Energia, una, invisível, informe, anterior às suas ilusórias objectivações pluralizantes.

Kant preserva ainda a pessoa moral da sua idolatria cientista, Schopenhauer navega, por ambivalência, em plena idolatria científica, limitando-se a apor um sinal algébrico negativo às valorizações da ciência e à vontade que as anima.

A afirmação muda-se em negação, e, por uma estranha ironia, o filósofo vibra em dialéctica hegeliana no ritmo tese-antítese, mostrando mais uma vez que o ódio também une e que o seu inimigo Hegel apreendeu bem o processo do movimento pendular das opiniões de superfície.

Kant é um filósofo do Espírito, Schopenhauer é um filósofo da Natureza: o pessimismo do primeiro resulta das dificuldades de inserção do Espírito nos fenómenos, pode acabar na heróica afirmação dum reino dos fins; o pessimismo do segundo é o reconhecimento da guerra universal da natureza e acaba no optimismo da dissolução dessa natureza no grande sono do não-querer.

Para um e outro é, no entanto, a ciência um conhecimento certo, um absoluto que vai pesar sobre toda a valorização da realidade.

Para Kant o seu absoluto é meramente formal e fora das suas formas podem ficar outras realidades, como, por exemplo, a da vida espiritual.

Para Schopenhauer reincidindo no cientismo, a crítica de Kant serve para mostrar que o formalismo científico é um puro construtivismo duma actividade mais profunda, que, por intuição, encontramos na vontade.

O cientismo vulgar parte dessa vontade de domínio de que os determinismos científicos são instrumentos de acção.

Essa vontade espalha-se sobre toda a natureza, invade todo o real até à integral humanização.

Para Schopenhauer esses determinismos são malhas ilusórias dum ilusório tecido, que é o fenómeno.

A realidade é, já e de pronto, aquela mesma vontade que parte à conquista; mas aqui a conquista é inglória, porque as terras conquistadas são sonhos, fantasmas da própria ambição conquistadora.

Por isso não interessa a conquista, não vale espalhar a vontade, corporizar os sonhos, pois o Universo é já conquistado, como fantasia da vontade criadora.

Recolhe-se a vontade, viva da ilusão universal, e nada mais fica que o repouso dessa mesma vontade adormecida...

Kant olha o magnífico desenvolvimento da ciência moderna das eminências da física de Newton.

É o problema da existência de tal maravilha que ele se propõe resolver.

Encontra a solução numa separação do real em representado ou representável e incognoscível, ou cousa para nós e cousa em si.

De resto este subjectivismo de representação é um novo aspecto do prolongamento do subjectivismo das qualidades segundas, claramente afirmado por Leonardo da Vinci e já alargado por Berkeley até às qualidades primeiras.


Kant pressupõe, no entanto, na cousa em si articulações oferecidas à presa das formas da representação.

O mundo da ciência é, por este pressuposto, um mundo real.

O universo moral da liberdade, responsabilidade e mérito fica possível pois que a cousa em si pode exceder a cousa para nós e é real pois que, embora o não apreendamos na representação, o apreendemos no imperativo da lei moral.

Fenómeno e númeno, cousa e espírito são em Kant as formas em que se revela a dualidade que a ciência newtoniana implicava: o universo silencioso das cousas inertes, a actividade do espírito que desarticulando os complexos do conhecimento percepcional, atinge e apreende as linhas estruturais daquelas mesmas cousas.

Schopenhauer que não é um homem de ciência sofre o conhecimento científico que lhe expõe um Cosmos incolor e emudecido.

Para este Cosmos desvalorizado encontra Kant um significado dando-o com[o] um produto da Representação.

Mas Schopenhauer, que esquece o pressuposto kantista das articulações da cousa em si oferecendo-se à informação do nosso conhecimento, vê toda a Representação como uma pura fantasmagoria de lendários contos de Fada.

O Universo físico oferecido à vontade conquistadora dos cientistas materialistas aparece a Schopenhauer como inútil fantasia duma produtividade criadora. Mas uma vez desvalorizado este mecânico Universo na inércia surge a voz da actividade produtora desta fantasia uivando a ferocidade da sua fome.

E o espectáculo da inércia muda-se na guerra sem tréguas dos seres vivos devorando-se uns aos outros.

O pessimismo byroniano é agora a visão duma natureza de perpétua guerra, destruição e morte.

A vida, que já em Kant se apresentara como uma complicação da matéria e um prenúncio simbólico da finalidade moral, canta alto as ilíadas da mútua chacina e dos seres, as odisseias das suas insídias e manhosas torpezas.

E a vida reintroduz a realidade, que a ciência apagara na inércia, pois que as aparências deixam de ser puras criações da Representação desinteressada para serem objectivações da cousa em si, que é a Vontade apreendida em nós antes da deformação da representatividade.

Por uma reversão romântica a realidade faz-se movimento, animação e vida.

Mas este movimento é choque de mundos nas órbitas, cruzamento feroz de mandíbulas, sulco sangrento de garra; mas esta vida é guerra de todos contra todos, cego sacrifício do indivíduo ao doloso génio da espécie...

Nem podia deixar de ser, visto que a harmonia do espírito que unifica e a liberdade do amor que une são impossíveis num Universo físico, mera representação duma Vontade sem luz, feita apenas duma insaciável fome de querer.

Em relação às tendências cientistas do humanismo de conquista fez-se o salto da tese à antítese: da inércia patente dum Universo planificado à magia e ocultismo dum pluralismo de seres, digesta membra[1] duma universal Vontade.



Quintus Horatius Flaccus, por Anton von Verner


Tese e antítese, aliás no mesmo plano de puros humanismos de conquista.

Os determinismos da ciência servidos a uma vontade de domínio ou o poder mágico duma vontade absorvente obrigando tudo o que existe às exigências últimas do seu querer de afirmação ou de negação.

A magia e o cientismo são assim dois aspectos da mesma ambição de tudo reduzir ao humano: espalhando a face humana nos longes de todos os mundos, absorvendo a vastidão do ser no seu centro criador, que é a vontade humana.

O cientismo pinta todo o Universo com as cores humanas, o magismo escraviza todas as vontades à vontade do homem.

Quando todas as vontades são apenas múltiplas na sua objectivação pluralizante e em si uma e só vontade, claro é que todas as manifestações da vontade se devem subsumir na direcção da vontade humana, consciente de si e do universal ludíbrio.

O ocultismo é realmente em Schopenhauer tão claramente como em seus cultores de hoje uma expansão da universal vontade do humanismo conquistador.

O espiritismo contemporâneo ocupa um lugar intermédio entre o ocultismo mágico da vontade conquistadora de instrumentação anticientista e a vontade de conquista de instrumentação de mecanicismo cientista.

A teosofia faz apelo a uma ascética naturalista do querer, dinamizando a vontade como uma energia vitalizante. O esforço do pensamento garante-se pela energia fluídica do próprio pensamento, criando elementais, forças-pensamentos, que actuam de fora, com a relativa independência de seres quase autonomizados.

Os sábios orientais, os misteriosos magos do Tibete, dirigem as forças planetárias por meio de correntes de pensamentos e, no Ocidente, qualquer de nós tem recebido cadeias da sorte, geradoras, pela força-pensamento, que acumulam, do bem ou do mal, conforme as apoiamos do nosso bem-querer energético ou lhe subtraímos a energia cortando-lhe o curso da sorte pela recusa da força do nosso concordante pensamento.

O espiritismo, por vezes aliado do ocultismo teosófico, tende, nas correntes científicas que estudam a fenomenologia, para as explicações de humanismo de conquista de moldes cientistas, como já vimos nos sonhos um pouco ridículos dos que seriam amanhã os agentes da Ressurreição pela consolidação das fugazes manifestações ectoplásmicas do medianismo moderno.

"Nascer, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei", inscrição traduzida do francês no túmulo de Allan Kardec. Ver aqui


Cemitério de Père-Lachaise, em Paris.



In «DISPERSOS, IV - FILOSOFIA E RELIGIÃO», Editorial VERBO, 1991, pp. 34-41.


[1] Deve ser disjecta membra. Cf. Horácio, Sátiras, I, 4, 42. [Nota do Padre Dias de Magalhães].