sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Fédon ou da imortalidade da alma (ii)

Escrito por Platão











«Os contrários podem ser claros porque são distantes, mas por isso mesmo diremos que não há mérito em reconhecer facilmente as relações de contrariedade. Mérito há, sim, em inteligir a mediação imperceptível e irrepresentável, em negar o vago, em desenhar o que outros não podem ou não querem ver, até ao momento da demonstração metafísica, científica ou técnica. A audácia de pensar por tríades caracteriza efectivamente a arte de filosofar.

É sabido que a doutrina aristotélica do movimento mediador entre contrários, doutrina oposta à da infinidade da rectilínea deslocação, resultou de um aprofundamento da lei de enantodromia, formulada por Heraclito. Assim em lógica, aquela relação, a que alguns regressivamente chamam juízo, terá de apelar para uma correlação que lhe garanta a característica racional. Duas relações formam uma correlação que a consciência há-de apreender na clareza dos quatro elementos, correlação que em matemática se designa por proporção.

A analogia, no significado de movimento intelectual para cima, para o logos, é correlação que pressupõe uma relação inferior e uma relação superior. Situar a interrogação ante a analogia, em vez de a situar perante a alternativa, representa já um grande progresso da razão e o modelo de ensino para os adolescentes. O pensamento científico, o movimento do pensamento científico, em grande parte depende das analogias.

Convém, todavia, exigir sempre que os dois termos de cada relação dual estejam ordenados de harmonia com a realidade, isto é, não confundir os contrários com os opostos, os opostos com os polares, etc. Ninguém dirá, por exemplo, que o Homem é o contrário da Mulher. A analogia tornar-se-á fecunda exactamente pela comparação de umas relações com outras relações, isto é, de comparação dos contrários com os opostos, dos opostos com os polares, etc., segundo uma doutrina de correspondências.

A sombra do positivo é sinal da luz do normativo. Os valores incitam o pensamento a reflectir, quer dizer, a comparar o real com o ideal. Toda a realidade está sempre a ser valorada pelo homem, segundo o seu grau de cultura, e difícil é separar os juízos de existência dos juízos de valor».

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


«Observou Pitágoras, estudando a harmonia, que obedecidas certas relações, ela se verificava. Essas relações constituem os chamados "número de ouro", de um papel importante em todas as artes e em seus períodos superiores.

Dessa forma, é a harmonia o ideal máximo dos pitagóricos, a qual consiste em ajustar os elementos diversos da natureza».

Mário Ferreira dos Santos («Tratado de Simbólica»).







EQUÉCRATES - E também nós, que sem lá termos estado, o escutamos de ti. Mas que foi o que se disse de seguida?

FÉDON - Se bem me lembro, depois de se ter admitido e acordado também sobre a existência real das ideias, e que as demais coisas recebem a sua denominação por delas participarem, Sócrates perguntou: - Se tal é a tua doutrina, ao afirmares que Símias é maior que Sócrates e mais pequeno que Fédon, não dizes existir em Símias ao mesmo tempo a grandeza e a pequenez?

- Sim.

- Mas então concordas com certeza - prosseguiu Sócrates - que a afirmação Símias é maior do que Sócrates, não corresponde à verdade, literalmente? Porque Símias não é maior por natureza do que Sócrates, mas sim pela grandeza que nele se encontra; nem maior do que Sócrates, por Sócrates ser Sócrates, mas pela pequenez que Sócrates possui, relativamente à grandeza daquele.

- É verdade.

- Tão pouco é Símias excedido por Fédon, pelo facto de Fédon ser Fédon, mas porque Fédon possui grandeza em relação à pequenez de Símias.

- Assim é.

- Assim sendo, Símias estando no meio de ambos, recebe tanto o qualificativo de pequeno, enquanto a sua pequenez é superada pela altura de um, como de grande, enquanto a sua grandeza excede a pequenez do outro.

Sorrindo, Sócrates comentou:

- Pareço estar a falar como quem redige um contrato. Mas na verdade, a coisa é tal como eu digo.

Símias concordou.

 - Eu falo assim, porque desejo que partilhes da minha opinião. Com efeito, é evidente que não apenas a grandeza em si consente ser em simultâneo grande e pequena; também a grandeza que há em nós jamais acolherá a pequenez, ou deixa de existir na presença dela, mas não a receberá, nem admitirá, para se tornar algo de diferente do que antes era. Um exemplo: eu que uma vez recebi a pequenez, não posso ser grande, continuando a ser o que sou. Pelo contrário, a grandeza, sendo grande, não consente ser pequena. De igual modo, a pequenez existente entre nós, jamais admite ser grande, nem vir a sê-lo; nem algum outro contrário, continuando a ser o que era, admite ser ou vir a ser ao mesmo tempo, o seu contrário; ou se afasta ou perece nesse processo.




- Isso - afirmou Cebes - parece-me bastante evidente.

- Um dos presentes, objectou, então, quem foi já não me recordo:

- Pelos deuses! Não reconhecemos na nossa discussão anterior, exactamente o contrário do que se diz agora, que é do mais pequeno que nasce o maior e do maior o mais pequeno, e que os contrários são sempre gerados a partir dos seus contrários? Mas agora, parece-me que estamos a afirmar que tal jamais pode acontecer.

Sócrates, inclinou a cabeça e escutou:

- Falaste como um homem - disse - mas não atentaste à diferença entre o que se acabou de dizer e o que se disse antes. Dizíamos então que de uma coisa contrária nascia outra contrária; e agora que o contrário em si mesmo não pode tornar-se no seu contrário, considerado tanto em nós, como na natureza. Antes, meu amigo, falámos das coisas que contém contrários, designando-as com os nomes daqueles; agora referimo-nos aos contrários em si, por cuja presença as coisas designadas recebem o seu nome. E destes últimos afirmámos que jamais podem ser gerados uns dos outros.

Ao mesmo tempo fixou o olhar em Cebes e perguntou:

Acaso, Cebes, te perturbaram também as objecções do nosso amigo?

- Não - disse Cebes - não desta vez. O que não quer dizer que não haja muitos objectos que me perturbem.

- Concordamos portanto - tornou Sócrates - que o contrário jamais pode ser o contrário de si mesmo.

- Concordamos inteiramente - respondeu Cebes.

- Prossigamos pois, disse Sócrates: vê se concordas comigo também neste ponto. Há alguma coisa que designamos com os nomes de quente e de frio?

- Sim.

- Acaso, é o mesmo que denominas de neve e de fogo?





- Não, por Zeus!

- Mas então, o quente é algo distinto do fogo, e o frio é algo distinto da neve?

- É verdade.

- Creio então ser tua opinião, que jamais a neve como tal, após admitir o quente, como dizíamos anteriormente, jamais poderá continuar a ser o que era, ou seja, neve, e ao mesmo tempo, quente; mas ao aproximar-se o calor, ou lhe cederá o seu lugar, ou deixará de existir.

- É evidente.

- Por sua vez, também o fogo, ao aproximar-se-lhe o frio, se retirará ou deixará de existir, mas jamais após admitir o frio, poderá continuar a ser o que era, ou seja fogo, e ao mesmo tempo, frio.

- Isso é verdade - responde Cebes.

- É possível então - continuou - que em alguns exemplos análogos, suceda não só que a ideia em si se aproprie do seu próprio nome para sempre, mas que  haja ainda outra coisa que, diferente dela, possua todavia a forma dela, enquanto existir. Mas vejamos ainda exemplos, onde, quem sabe, se possa clarificar o que digo. Deve o ímpar ter sempre este nome ímpar, com que agora o designamos, ou não?

- Com certeza.

- E pergunto isto: acaso é esse nome exclusivo do ímpar, ou haverá também algum outro entre os seres, que não sendo o ímpar, deve ser contudo sempre designado com este nome, por a sua natureza ser tal, que nunca se aparta do ímpar? Refiro-me ao que sucede com a tríade, um exemplo entre outros. Examinando este número não te parece que o seu nome próprio deva sempre servir para o designar e também o de ímpar, ainda que ímpar não seja o mesmo que tríade? Desta mesma natureza do três é o 5 e a metade dos números que, ainda que não sejam o mesmo que ímpar, é sempre cada um deles ímpar. Por outro lado, 2, 4 e a totalidade da série, embora não sejam sinóminos de par, são todavia sempre pares. Concordas ou não?

- Sem dúvida, respondeu ele.



- Agora - prosseguiu Sócrates - atenta ao que tenho intenção de te mostrar. É o seguinte: parece que não só os contrários em si não se aceitam; mas há também tudo aquilo que, sem ser contrário, alberga sempre estes contrários, e que tampouco admitem a ideia contrária à que reside nelas; mas quando esta sobrevem, ou perecem ou se retiram. Ou não devemos nós dizer do 3, que perecerá ou sofrerá qualquer outra vicissitude, continuando a ser 3, preferentemente a tornar-se par.

- É indubitável - respondeu Cebes.

- E não é menos certo - continuou - que 2 não é o contrário de 3.

- Não, com efeito.

- Portanto, não só as ideias contrárias, não suportam a aproximação mútua, mas também há algumas outras coisas que não se sujeitam a tal aproximação.

- É muito certo o que dizes - conveio Cebes.

- Queres então - prosseguiu Sócrates - que na medida em que sejamos capazes, determinemos estes últimos contrários?

- Acaso podem ser eles, Cebes - disse ele - que forçam aquilo de que tomam posse, não só a albergar a ideia que lhe é própria, mas também a do seu contrário?

- O que queres dizer?

- O mesmo que há instantes. Sabes certamente, que as coisas em que a ideia do 3 se encontra, não podem apenas ser 3, mas também são ímpar.

- Por certo.

- Por conseguinte, dizemos, que essa realidade do 3, jamais pode admitir a ideia contrária à ideia que nela opera.

- Pois não.

- Mas o resultado não foi produzido pela ideia de ímpar?

- Sim.



Pitágoras de Samos (A Escola de Atenas).




- E o contrário desta ideia é o par?

- É óbvio.

- O 3 por conseguinte, jamais participará da ideia de par.

- Claro que não.

- Então a tríade não participa do par.

- Não participa.

- Portanto, a tríade não é o par.

- É claro.

- Agora proponho definir que espécie de coisas, não sendo em si contrárias, não aceitam todavia essa qualidade contrária, tal como a tríade que não sendo o contrário do par, não o aceita, pois leva em si sempre o contrário deste, do mesmo modo que a díade contém o contrário do ímpar, o fogo o contrário de frio, e assim muitos outros exemplos. Vê se aceitas esta definição: não só o contrário não aceita o seu contrário, mas também aquilo que sofre em si algo contrário a isso em que a ideia se apresenta, tão pouco admitirá a ideia contrária à que nele está implicada. Recordo-te outra vez, pois não é mau ouvi-lo repetidamente. O número 5 não aceitará a qualidade do par, nem o seu dobro, o 10, a do ímpar. Este, contrário ao outro, não acolherá todavia a qualidade do ímpar. Nem tampouco o um e meio e as demais fracções análogas, admitirão a do inteiro, o que também sucede com o terço e as demais fracções desta natureza - se é que me segues e estás de acordo comigo.

- Estou em acordo total e sigo-te - afirmou.

- De novo voltando ao princípio - continuou Sócrates - responde-me, sem empregar para responder, as mesmas palavras da minha pergunta, imitando-me somente. Falo-te deste modo, porque, à margem daquela resposta segura que primeiramente dei, à luz do que falámos agora, vejo uma outra segurança. Se pois me perguntares: Que é que existe no corpo que o torna quente?, não te darei aquela resposta segura e ignorante: é o calor, mas uma mais inteligente, de acordo com o que dissemos agora: é o fogo. E se de novo me perguntares: Que é que existe no corpo que faz com que adoeça?, não te responderei que é a doença, mas a febre; ou ainda: Que existe no número para o tornar ímpar?, não te diria que é a imparidade, mas: a unidade, e assim por diante. De modo que, vê se já compreendes suficientemente o que quero dizer.

- Muito suficientemente - respondeu Cebes.

- Responde-me então - prosseguiu Sócrates -. O que é que, existindo num corpo é a causa de ele estar vivo?

- A alma.

- E acaso sucede sempre assim?

- Sim disse ele.

- Então, entrando a alma num corpo, leva sempre consigo a vida?



Morte de Sócrates



- Sim, leva - respondeu.

- E existe algo oposto à vida, ou não?

- Sim, existe.

- O que é?

- A morte.

- Portanto, a alma jamais aceitará o contrário do que lhe está sempre inerente, segundo se reconheceu no que antes falámos.

- É com toda a razão evidente - respondeu Cebes.

- E então? Ao que não admite a ideia de par, como o chamávamos há momentos?

- Chamávamos-lhe ímpar - respondeu.

- E ao que não recebe em si o justo, nem a música?

- Injusto, um e Inculto, o outro - respondeu.

- Bom. E ao que não acolhe em si a morte, como o denominamos?

- Imortal - respondeu Cebes.

- E a alma não acolhe em si a morte?

- Não.

- Portanto a alma é imortal.

- Sim, é imortal.



Eros e Psique




- Seja - disse ele -. Podemos assim dizer que isso fica demonstrado?

- Seja - disse ele e de modo satisfatório Sócrates.

- E então Cebes? Se o ímpar lhe fosse necessário ser imperecível, poderia não ser imperecível o número 3?

- Sem dúvida.

- E se o não quente fosse necessariamente imperecível, quando da neve aproximassem o calor, não escaparia, ficando sã e salva e sem se fundir? De certeza não deixaria de existir, nem aceitaria o calor.

- Isso é bem verdade - respondeu.

- Do mesmo modo, penso que se o não-frio fosse imperecível, sempre que algo frio se aproximasse do fogo, jamais se apagaria nem aqueceria, mas continuaria não-quente.

- É necessário - disse.

- Acaso então - prosseguiu Sócrates - não é forçoso também assim a respeito do que é imortal? Sendo este também imperecível, é impossível que quando a morte se abate sobre a alma, ela pereça; porque, e é uma consequência do que antes dissemos, a alma, não aceitará a morte nem pode estar morta, assim como o 3 não será, dizíamos, par, nem tampouco o ímpar, nem o fogo se fará frio, nem o calor que existe no fogo. Porém que impede - poderia alguém objectar - que o ímpar não se torne par, pela aproximação do par, como reconhecemos, mas que ao perecer surja em seu lugar o par? A quem tal objectasse, não poderíamos ripostar que não perece, visto o não-par não ser imperecível. Se porém tivéssemos reconhecido isso, facilmente responderíamos que, perante a proximidade do par, o ímpar e o 3 para longe se afastam. E do mesmo modo argumentaríamos a respeito do fogo e do calor e dos demais contrários. Ou não?

- Com toda a certeza.

- Logo, se acerca do imortal, reconhecemos que é  imperecível. a alma será, além de imperecível, imortal, caso contrário seriam necessários outros argumentos.

- Mas não há necessidade de outra, pelo menos quanto a este ponto - respondeu Cebes - já que dificilmente alguma outra coisa não admitiria a destruição, se o que é imortal e eterno, a acolhesse.

- Pelo menos, a divindade - disse Sócrates - e a própria ideia da vida, bem como tudo o que seja imortal, ficaria reconhecido por todos, que jamais perecem.

- Todos, por Zeus! - afirmou Cebes -. Pelos homens e ainda com mais forte razão, segundo creio, pelos deuses.



Zeus



- E sendo o imortal imperecível, a alma, se é que é efectivamente imortal, como poderá não ser imperecível?

- É de todo necessário.

- Quando, portanto, a morte sobrevem ao homem, segundo parece, é o que há de mortal nele que morre, mas a parte imortal subtrai-se à morte e afasta-se a salvo e indestrutível, retirando-se da morte.

- É evidente.

- Portanto, Cebes - concluiu - a nossa alma é imortal e imperecível; e de verdade subsistirão as nossas almas algures noutro mundo... (in ob. cit., pp. 139-150).


Nenhum comentário:

Postar um comentário