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quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Da visão e da luz

Escrito por Platão





«Demócrito e a maioria dos filósofos da natureza, que se ocupam da percepção, são culpados de um grande absurdo: pois reduzem ao tacto toda a percepção».

Aristóteles


«Leucipo, Demócrito e Epicuro dizem que a percepção e o pensamento surgem, quando entram imagens do exterior; pois nenhum deles ocorre a quem quer que seja sem a colisão de uma imagem».

Écio


«Demócrito explica a vista pela imagem visual, que ele descreve de uma maneira particular; a imagem visual não surge directamente na pupila, mas é o ar existente entre o olho e o objecto da visão que, ao ser contraído, é marcado pelo objecto visto e pelo observador; pois todas as coisas estão sempre a emitir uma espécie de eflúvios. Por isso, este ar que é sólido e de cores variegadas, aparece nos olhos que são húmidos (?); os olhos não admitem a parte densa, mas a húmida passa através deles...».

Teofrasto


«Eles atribuíram vista a certas imagens do mesmo formato que o objecto, que estavam continuamente a fluir dos objectos da visão e a colidir com os olhos. Esta era a opinião da escola de Leucipo e Demócrito...».

Alexandre


«Anaxímenes diz que os corpos celestes são de natureza ígnea, e que têm entre eles alguns corpos térreos, invisíveis, que giram juntamente com eles».

«Anaxímenes diz que os astros estão implantados, como pregos, no cristalino; mas alguns há que afirmam serem eles folhas ígneas como pinturas».

Écio


«Fílon – …o que eu quero ensinar-te é que o olho não só vê, mas também alumia primeiramente aquilo que vê. Assim, que em boa consequência, não creias que o Sol só ilumina, mas crê que também vê, porque de todos os sentidos só o da vista é estimado pelo Céu, porque está ali muito mais perfeitamente que no homem nem noutro animal.

Sofia – Como? Os céus vêem como nós?

Fílon – Segundo dizem, vêem melhor que nós.

Sofia – Têm olhos?




Fílon – E que melhores olhos que o Sol e as estrelas que são chamados olhos de Deus na Sagrada Escritura, dada a visão deles, chegando a dizer o profeta em relação aos sete planetas: Aqueles sete olhos de Deus que se estendem por toda a Terra? E outro profeta diz, quanto ao céu estrelado, que o seu corpo está cheio de olhos. E chamam olho ao Sol, e dizem olhos do Sol. Estes olhos celestiais também tanto alumiam quanto vêem. E mediante a visão compreendem e conhecem todas as coisas do mundo corpóreo e as mutações delas».

Leão Hebreu («Diálogos de Amor»).


«Através do ar, o olho transmite a sua própria imagem para todos os objectos que fita e também os recebe na sua própria superfície, de onde o sensus communis os retira e aprecia».

«Eu considero que os poderes invisíveis das imagens nos olhos se podem projectar para o objecto, bem como as imagens dos objectos nos olhos».

«Afirmo que o poder da visão se propaga através dos raios visuais para a superfície dos corpos não-transparentes, enquanto que o poder possuído pelos mesmos corpos se propaga ao poder da visão».

«Diz-se que as donzelas têm nos olhos poder para atrair, para si próprios, o amor dos homens».

Leonardo da Vinci




Da visão e da luz


(...) Mas tu, ó Sócrates, que afirmas que seja o bem: a ciência, o prazer, ou qualquer outra coisa e diferente?

- Que homem és, amigo! Há muito que tinhas tornado bem claro que não te darias por satisfeito com a opinião dos outros a este respeito.

- É que também não me parece razoável, ó Sócrates, que se seja capaz de expor as doutrinas dos outros, mas não as próprias, quando uma pessoa se ocupa destes assuntos há tanto tempo.

- Ora essa! - exclamei -. Parece-te razoável uma pessoa falar do que não se sabe, como se soubesse?

- Falar como se soubesse, não, mas consentir em falar como alguém que expõe o seu próprio pensamento, sim.


Sócrates


- Mas então! Não vês que as doutrinas divorciadas do saber fazem todas uma triste figura? As melhores dentre elas são cegas. Ou encontras alguma diferença apreciável, entre os cegos que caminham pela estrada certa e aqueles que sustentam qualquer opinião verdadeira sem a inteligirem?

- Não diferem nada.

Preferes então contemplar coisas vergonhosas, cegas, tortuosas, quando podes ouvir de outros o que é luminoso e claro?

- Por Zeus, ó Sócrates - interveio Gláucon - não pares, como se tivesses chegado ao fim! Ficaremos satisfeitos se nos explicares o que é o bem, tal como nos explicaste a justiça, a temperança e a outras virtudes.

- Também a mim, companheiro, me bastará e plenamente. Mas receio que isso supere as minhas forças e que o meu zelo desajeitado possa chegar a causar riso. Façamos melhor, abençoados homens, deixemos, por agora, a natureza do bem em si; ele parece-me demasiado alto para que o impulso que dá asas ao meu presente voo possa atingir por agora o meu pensamento acerca dele. O que desejo expor-vos, se também o desejardes, é o que parece ser filho do bem e muito semelhante a ele; caso contrário, deixemos a questão.

- Fala. Pagarás para outra vez a explicação que nos deves acerca do pai.

- Tomara eu ser capaz de a pagar e vós de a receber e, não apenas como agora, dar-vos só os juros. Recebei, pois, este juro, este filho do bem em si. Mas tende cuidado em que não vos engane sem o querer, entregando-vos falsos cálculos do juro.

- Teremos cuidado, tanto quanto pudermos. Mas fala então.

- Só depois de termos chegado a um acordo e de vos ter lembrado o que aqui dissemos, e que já em muitas outras ocasiões se afirmou.

- O quê? - perguntou.

- Que há um grande número de coisas belas, de coisas boas e um grande número de outras coisas da mesma espécie de que afirmamos a existência e que distinguimos pela linguagem.

- Sim, dissemos.

- E afirmamos, também, a existência do belo em si, do bom em si e, do mesmo modo, relativamente a todas as coisas que postulámos como múltiplas e, de modo inverso, declarámos que a cada uma delas corresponde uma ideia, que é única, e a que chamámos a sua essência.

- É isso.

- E diremos ainda que as coisas múltiplas podem ser visíveis mas não inteligíveis, ao passo que as ideias são inteligíveis mas não visíveis.


Academia de Platão: mosaico de Pompeia, no Museu Arqueológico Nacional (Nápoles).



- Exactamente.

- E por qual das nossas faculdades vemos o que é visível?

- Pela vista.

- E, de igual modo, não percebemos o que é audível por meio da audição e tudo o que é sensível pelos outros sentidos?

- Sem dúvida.

- E já alguma vez te deste conta como o demiurgo dos nossos sentidos modelou com muito mais prodigalidade a faculdade de ver e ser visto?

- Não.

- Repara. Não precisam a audição e a voz de uma outra coisa de espécie diferente, uma para ouvir e a outra para que se faça ouvir, de modo que, na ausência desse terceiro factor, a primeira não ouvirá e a segunda não será ouvida?

- Não precisam de nada.

- Julgo que muitas outras faculdades, para não dizer todas, não necessitam de tal coisa. Ou sabes de alguma?

- Eu não - respondeu.

- Mas, quanto à faculdade de ver e de ser visto, não tem ela necessidade disso?

- Como assim?

- Ainda que a visão exista nos olhos, e o seu possuidor se tente servir dela, e ainda que a cor esteja presente nas coisas, se não se lhes adicionar uma terceira espécie, criada especificamente para este feito, sabes que a vista nada verá e que as cores serão invisíveis.

- Que coisa é essa de que falas?

- É aquilo a que chamas luz.




- Dizes a verdade.

- Por conseguinte, o laço que une o sentido da vista e a faculdade de ser visto é de uma espécie bem mais preciosa do que o que une todos os outros, a menos que a luz seja algo desprezível.

- Verdade é que está bem longe de ser desprezível.

Qual é, quanto a ti, dentre os deuses do céu, o responsável por esta união, cuja luz faz com que vejamos tão perfeitamente quanto possível, e o que é visível seja visto?

- O mesmo a que tu e todas as pessoas se referem, o Sol, pois é evidente que a tua questão se lhe refere.

- E acaso a vista não se encontra para com o deus nesta relação?

- Qual?

- Nem a vista, nem a parte onde se forma a que chamamos olhos, é o Sol.

- Não, com efeito.

- Mas são, penso, de todos os orgãos dos sentidos, os mais semelhantes ao Sol.

- De longe.

- E o poder que possuem, não lhes é dispensado pelo Sol, como um influxo que ele lhes envia?

- Certamente.

- E não é também verdade que o Sol, que não é a vista, mas a sua causa, é contemplado por esta mesma vista?

- Assim é - respondeu.

- Compreende agora - prossegui - que é o Sol que eu considero ser o filho do bem, que o bem gerou à sua semelhança, bem que é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e aos objectos inteligíveis, o mesmo que o sol no mundo visível em relação à vista e aos objectos visíveis.

- Como assim? explica-me melhor.

- Tu sabes - continuei . que quando os olhos se voltam para objectos cujas cores já não são alumiadas pela luz do dia, mas pelos clarões da noite, vêem mal e parecem quase cegos, como se tivessem perdido a clareza da sua visão.


Partenon (Atenas).


- Sim, de facto.

- Mas, quando se volta para objectos iluminados pelo Sol, presumo que vêem com clareza e a visão parece residir nesses mesmos olhos.

- Sem dúvida.

- Aplica esta comparação à alma deste modo: quando ela, de modo firme, se fixa num objecto iluminado pela verdade e pelo Ser, apreende-o, conhece-o e parece inteligente; mas, quando se inclina para aquela região na qual se misturam as trevas, o mundo do que nasce e morre, não tem senão opiniões, vê turvo, muda de opiniões de um extremo a outro e parece ter perdido toda a inteligência.

- Sim, parece.

- Ora, o que comunica a verdade aos objectos cognoscíveis e o poder de conhecer ao sujeito que conhece, é a ideia do bem. Deves concebê-la como sendo a causa do saber e da verdade, tanto quanto são conhecidas. Mas por belos que sejam o saber e a verdade, não te enganarás em pensar que há algo ainda de mais belo do que eles. E, tal como no mundo visível se tem razão em pensar que a luz e a visão são análogas ao Sol, mas já não é certo tomá-las pelo Sol, do mesmo modo, no mundo inteligível é correcto considerar que a ciência e a verdade são ambas semelhantes, ao bem, mas não é correcto tomá-las, a uma e a outra, pelo bem. Um ainda mais elevado conceito cabe à natureza do que seja o bem.

- Referes-te a uma beleza extraordinária, se é que ela é a fonte do saber e da verdade, e ainda os excede em beleza. Não é com certeza ao prazer que te estás a referir.

- Cala-te, para longe vá o agouro! Mas examina ainda melhor a imagem do bem.

- Como?

- Reconhecerás, segundo penso, que o Sol não só dá às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, mas também a sua génese, crescimento e alimentação, se bem que ele mesmo não seja a génese.

- Não é, com efeito.

- De modo igual dirás que os objectos do conhecimento não recebem apenas da presença do bem a possibilidade de serem conhecidos, mas que as suas próprias existência e ser lhes são adicionadas por ele, apesar de o bem não ser uma essência, mas algo que lhe está acima e além, excedendo-a em dignidade e poder.

Gláucon, com ar jocoso, exclamou: - Valha-nos, Apolo, que divino excesso.




- A culpa é tua - respondi - porque me obrigas a exprimir o que penso sobre o assunto.

- Não desistas, de modo nenhum! E supondo que não queiras ir mais longe, ao menos trata da comparação com o Sol, a ver se há algo que omites.

- Sem dúvida, omito muitas coisas.

- Não deixes agora uma só de lado, por pequena que ela seja.

- Suponho que deixarei, e muitas, mas mesmo assim, até onde for possível nas presentes circunstâncias, nada omitirei por querer.

-Não o faças!

- Imagina - prosseguiu - que eles são dois, como dissemos, e que reinam, um na espécie e mundo inteligível, e o outro no mundo visível, não digo «no céu»: não vás pensar que quero expor o meu saber etimológico a propósito deste nome. Compreendes bem, estas duas espécies, o visível e o inteligível?

- Compreendi.

- Supõe uma linha cortada em duas secções desiguais; corta de novo cada secção segundo a mesma proporção, a da espécie visível e a da inteligível; e segundo o grau de clareza ou de obscuridade relativas das coisas, obterás no mundo visível uma primeira secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; de seguida, aos reflexos nas águas e aos que se formam na superfície dos corpos compactos, lisos e brilhantes, e tudo o mais do mesmo género, se me estás a entender.

- Sim, entendo.

- Supõe agora a outra secção, de que esta era imagem, a que nos compreende a nós, seres vivos, e a todas as plantas e espécie de objectos feitos pelo homem.

- Suponho.

- Acaso consentirias em admitir que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e que a opinião está para o saber, como a imagem está para o modelo?

- Admito perfeitamente.

- Considera agora de que modo se deve cortar a secção do inteligível.

- Como?

- Assim: na primeira parte desta secção, a alma, servindo-se como se fossem imagens, dos objectos que então eram imitados, é forçada a investigar partindo de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio, mas para a conclusão; ao passo que na outra secção, a alma parte da hipótese para o princípio absoluto e, sem fazer uso das imagens, como no caso precedente, faz o seu caminho só com o auxílio das ideias.

- Não compreendi bem o que acabaste de dizer.






- Tentemos de novo - disse - compreenderás melhor após o que vou dizer. Não ignoras, suponho, que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e de outras ciências do mesmo género, admitem primeiro o par e o ímpar, as várias figuras, três espécies de ângulos e outras doutrinas aparentadas destas em cada ramo da ciência. Estas coisas tomam-nas por sabidas e, quando as usam como hipóteses, não acham que ainda tenham de prestar conta alguma disso, nem a si mesmos nem aos outros, tomando como garantido que são evidentes para todos. E, partindo daí, passando por todas as fases e tirando consequências, concluem a investigação que tinham começado.

- Sim, eu sei isso.

- Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e raciocinam sobre elas, sem contudo pensarem nelas, mas naquilo com que elas se assemelham. Por exemplo, é por causa do quadrado em si ou da diagonal em si que fazem os seus raciocínios, mas não daquela cuja imagem traçaram e, de igual modo, quanto às outras figuras. Todas estas figuras que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se delas como se fossem imagens, procurando ver aquelas realidades que não podem ser vistas senão pelo pensamento.

- O que afirmas é verdade.

- Eis o que eu entendia pela classe do inteligível, em que a alma ao procurar investigá-la, é compelida a servir-se de hipóteses, sem ir ao princípio, por ser incapaz de se elevar acima das hipóteses, utilizando como imagens os próprios objectos e produziam as sombras da secção inferior, objectos que consideravam mais claros que as sombras e que apreciavam como tais.

- Compreendo - disse - que te referes ao que se passa na geometria e ciências afins.

- Aprende agora o que entendo pela outra secção dos inteligíveis, aquela que o próprio raciocínio atinge pelo poder da dialéctica, fazendo das suas hipóteses não princípios, mas simples hipóteses, que são como que degraus e pontos de apoio para se elevar ao princípio de tudo, que não admite hipóteses. Atingido este princípio, desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem até chegar à conclusão, sem fazer uso algum de qualquer dado sensível, mas passando de uma ideia a outra, para terminar em ideia.

- Compreendo, mas não o suficiente, pois não é tarefa leve essa de que falas. Parece-me que queres determinar que o conhecimento do Ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica é mais claro que o que adquirimos pelas chamadas ciências, cujas hipóteses são assumidas como princípios. Sem dúvida que os que as estudam são forçados a fazê-lo pelo pensamento e não pelos sentidos; porque as examinam sem remontar ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses objectos, se bem que eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas ao modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas do mesmo género, entendimento e não inteligência, porque a dianóia é algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.

Cariátides

- Aprendestes bem a questão - observei. E agora, aplica às nossas quatro secções, as quatro operações da alma: à mais elevada, a inteligência, à segunda, o entendimento; atribui a crença à terceira e à última a imaginação, e coloca-as por ordem, partindo da ideia de que, quanto mais os seus objectos participam da verdade, tanto mais participam da claridade.

- Compreendo - disse ele -; concordo e vou ordená-las como propões (in Politeia, Guimarães Editores, 2005, 506c-511e).


sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Fédon ou da imortalidade da alma (ii)

Escrito por Platão











«Os contrários podem ser claros porque são distantes, mas por isso mesmo diremos que não há mérito em reconhecer facilmente as relações de contrariedade. Mérito há, sim, em inteligir a mediação imperceptível e irrepresentável, em negar o vago, em desenhar o que outros não podem ou não querem ver, até ao momento da demonstração metafísica, científica ou técnica. A audácia de pensar por tríades caracteriza efectivamente a arte de filosofar.

É sabido que a doutrina aristotélica do movimento mediador entre contrários, doutrina oposta à da infinidade da rectilínea deslocação, resultou de um aprofundamento da lei de enantodromia, formulada por Heraclito. Assim em lógica, aquela relação, a que alguns regressivamente chamam juízo, terá de apelar para uma correlação que lhe garanta a característica racional. Duas relações formam uma correlação que a consciência há-de apreender na clareza dos quatro elementos, correlação que em matemática se designa por proporção.

A analogia, no significado de movimento intelectual para cima, para o logos, é correlação que pressupõe uma relação inferior e uma relação superior. Situar a interrogação ante a analogia, em vez de a situar perante a alternativa, representa já um grande progresso da razão e o modelo de ensino para os adolescentes. O pensamento científico, o movimento do pensamento científico, em grande parte depende das analogias.

Convém, todavia, exigir sempre que os dois termos de cada relação dual estejam ordenados de harmonia com a realidade, isto é, não confundir os contrários com os opostos, os opostos com os polares, etc. Ninguém dirá, por exemplo, que o Homem é o contrário da Mulher. A analogia tornar-se-á fecunda exactamente pela comparação de umas relações com outras relações, isto é, de comparação dos contrários com os opostos, dos opostos com os polares, etc., segundo uma doutrina de correspondências.

A sombra do positivo é sinal da luz do normativo. Os valores incitam o pensamento a reflectir, quer dizer, a comparar o real com o ideal. Toda a realidade está sempre a ser valorada pelo homem, segundo o seu grau de cultura, e difícil é separar os juízos de existência dos juízos de valor».

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).


«Observou Pitágoras, estudando a harmonia, que obedecidas certas relações, ela se verificava. Essas relações constituem os chamados "número de ouro", de um papel importante em todas as artes e em seus períodos superiores.

Dessa forma, é a harmonia o ideal máximo dos pitagóricos, a qual consiste em ajustar os elementos diversos da natureza».

Mário Ferreira dos Santos («Tratado de Simbólica»).







EQUÉCRATES - E também nós, que sem lá termos estado, o escutamos de ti. Mas que foi o que se disse de seguida?

FÉDON - Se bem me lembro, depois de se ter admitido e acordado também sobre a existência real das ideias, e que as demais coisas recebem a sua denominação por delas participarem, Sócrates perguntou: - Se tal é a tua doutrina, ao afirmares que Símias é maior que Sócrates e mais pequeno que Fédon, não dizes existir em Símias ao mesmo tempo a grandeza e a pequenez?

- Sim.

- Mas então concordas com certeza - prosseguiu Sócrates - que a afirmação Símias é maior do que Sócrates, não corresponde à verdade, literalmente? Porque Símias não é maior por natureza do que Sócrates, mas sim pela grandeza que nele se encontra; nem maior do que Sócrates, por Sócrates ser Sócrates, mas pela pequenez que Sócrates possui, relativamente à grandeza daquele.

- É verdade.

- Tão pouco é Símias excedido por Fédon, pelo facto de Fédon ser Fédon, mas porque Fédon possui grandeza em relação à pequenez de Símias.

- Assim é.

- Assim sendo, Símias estando no meio de ambos, recebe tanto o qualificativo de pequeno, enquanto a sua pequenez é superada pela altura de um, como de grande, enquanto a sua grandeza excede a pequenez do outro.

Sorrindo, Sócrates comentou:

- Pareço estar a falar como quem redige um contrato. Mas na verdade, a coisa é tal como eu digo.

Símias concordou.

 - Eu falo assim, porque desejo que partilhes da minha opinião. Com efeito, é evidente que não apenas a grandeza em si consente ser em simultâneo grande e pequena; também a grandeza que há em nós jamais acolherá a pequenez, ou deixa de existir na presença dela, mas não a receberá, nem admitirá, para se tornar algo de diferente do que antes era. Um exemplo: eu que uma vez recebi a pequenez, não posso ser grande, continuando a ser o que sou. Pelo contrário, a grandeza, sendo grande, não consente ser pequena. De igual modo, a pequenez existente entre nós, jamais admite ser grande, nem vir a sê-lo; nem algum outro contrário, continuando a ser o que era, admite ser ou vir a ser ao mesmo tempo, o seu contrário; ou se afasta ou perece nesse processo.




- Isso - afirmou Cebes - parece-me bastante evidente.

- Um dos presentes, objectou, então, quem foi já não me recordo:

- Pelos deuses! Não reconhecemos na nossa discussão anterior, exactamente o contrário do que se diz agora, que é do mais pequeno que nasce o maior e do maior o mais pequeno, e que os contrários são sempre gerados a partir dos seus contrários? Mas agora, parece-me que estamos a afirmar que tal jamais pode acontecer.

Sócrates, inclinou a cabeça e escutou:

- Falaste como um homem - disse - mas não atentaste à diferença entre o que se acabou de dizer e o que se disse antes. Dizíamos então que de uma coisa contrária nascia outra contrária; e agora que o contrário em si mesmo não pode tornar-se no seu contrário, considerado tanto em nós, como na natureza. Antes, meu amigo, falámos das coisas que contém contrários, designando-as com os nomes daqueles; agora referimo-nos aos contrários em si, por cuja presença as coisas designadas recebem o seu nome. E destes últimos afirmámos que jamais podem ser gerados uns dos outros.

Ao mesmo tempo fixou o olhar em Cebes e perguntou:

Acaso, Cebes, te perturbaram também as objecções do nosso amigo?

- Não - disse Cebes - não desta vez. O que não quer dizer que não haja muitos objectos que me perturbem.

- Concordamos portanto - tornou Sócrates - que o contrário jamais pode ser o contrário de si mesmo.

- Concordamos inteiramente - respondeu Cebes.

- Prossigamos pois, disse Sócrates: vê se concordas comigo também neste ponto. Há alguma coisa que designamos com os nomes de quente e de frio?

- Sim.

- Acaso, é o mesmo que denominas de neve e de fogo?





- Não, por Zeus!

- Mas então, o quente é algo distinto do fogo, e o frio é algo distinto da neve?

- É verdade.

- Creio então ser tua opinião, que jamais a neve como tal, após admitir o quente, como dizíamos anteriormente, jamais poderá continuar a ser o que era, ou seja, neve, e ao mesmo tempo, quente; mas ao aproximar-se o calor, ou lhe cederá o seu lugar, ou deixará de existir.

- É evidente.

- Por sua vez, também o fogo, ao aproximar-se-lhe o frio, se retirará ou deixará de existir, mas jamais após admitir o frio, poderá continuar a ser o que era, ou seja fogo, e ao mesmo tempo, frio.

- Isso é verdade - responde Cebes.

- É possível então - continuou - que em alguns exemplos análogos, suceda não só que a ideia em si se aproprie do seu próprio nome para sempre, mas que  haja ainda outra coisa que, diferente dela, possua todavia a forma dela, enquanto existir. Mas vejamos ainda exemplos, onde, quem sabe, se possa clarificar o que digo. Deve o ímpar ter sempre este nome ímpar, com que agora o designamos, ou não?

- Com certeza.

- E pergunto isto: acaso é esse nome exclusivo do ímpar, ou haverá também algum outro entre os seres, que não sendo o ímpar, deve ser contudo sempre designado com este nome, por a sua natureza ser tal, que nunca se aparta do ímpar? Refiro-me ao que sucede com a tríade, um exemplo entre outros. Examinando este número não te parece que o seu nome próprio deva sempre servir para o designar e também o de ímpar, ainda que ímpar não seja o mesmo que tríade? Desta mesma natureza do três é o 5 e a metade dos números que, ainda que não sejam o mesmo que ímpar, é sempre cada um deles ímpar. Por outro lado, 2, 4 e a totalidade da série, embora não sejam sinóminos de par, são todavia sempre pares. Concordas ou não?

- Sem dúvida, respondeu ele.



- Agora - prosseguiu Sócrates - atenta ao que tenho intenção de te mostrar. É o seguinte: parece que não só os contrários em si não se aceitam; mas há também tudo aquilo que, sem ser contrário, alberga sempre estes contrários, e que tampouco admitem a ideia contrária à que reside nelas; mas quando esta sobrevem, ou perecem ou se retiram. Ou não devemos nós dizer do 3, que perecerá ou sofrerá qualquer outra vicissitude, continuando a ser 3, preferentemente a tornar-se par.

- É indubitável - respondeu Cebes.

- E não é menos certo - continuou - que 2 não é o contrário de 3.

- Não, com efeito.

- Portanto, não só as ideias contrárias, não suportam a aproximação mútua, mas também há algumas outras coisas que não se sujeitam a tal aproximação.

- É muito certo o que dizes - conveio Cebes.

- Queres então - prosseguiu Sócrates - que na medida em que sejamos capazes, determinemos estes últimos contrários?

- Acaso podem ser eles, Cebes - disse ele - que forçam aquilo de que tomam posse, não só a albergar a ideia que lhe é própria, mas também a do seu contrário?

- O que queres dizer?

- O mesmo que há instantes. Sabes certamente, que as coisas em que a ideia do 3 se encontra, não podem apenas ser 3, mas também são ímpar.

- Por certo.

- Por conseguinte, dizemos, que essa realidade do 3, jamais pode admitir a ideia contrária à ideia que nela opera.

- Pois não.

- Mas o resultado não foi produzido pela ideia de ímpar?

- Sim.



Pitágoras de Samos (A Escola de Atenas).




- E o contrário desta ideia é o par?

- É óbvio.

- O 3 por conseguinte, jamais participará da ideia de par.

- Claro que não.

- Então a tríade não participa do par.

- Não participa.

- Portanto, a tríade não é o par.

- É claro.

- Agora proponho definir que espécie de coisas, não sendo em si contrárias, não aceitam todavia essa qualidade contrária, tal como a tríade que não sendo o contrário do par, não o aceita, pois leva em si sempre o contrário deste, do mesmo modo que a díade contém o contrário do ímpar, o fogo o contrário de frio, e assim muitos outros exemplos. Vê se aceitas esta definição: não só o contrário não aceita o seu contrário, mas também aquilo que sofre em si algo contrário a isso em que a ideia se apresenta, tão pouco admitirá a ideia contrária à que nele está implicada. Recordo-te outra vez, pois não é mau ouvi-lo repetidamente. O número 5 não aceitará a qualidade do par, nem o seu dobro, o 10, a do ímpar. Este, contrário ao outro, não acolherá todavia a qualidade do ímpar. Nem tampouco o um e meio e as demais fracções análogas, admitirão a do inteiro, o que também sucede com o terço e as demais fracções desta natureza - se é que me segues e estás de acordo comigo.

- Estou em acordo total e sigo-te - afirmou.

- De novo voltando ao princípio - continuou Sócrates - responde-me, sem empregar para responder, as mesmas palavras da minha pergunta, imitando-me somente. Falo-te deste modo, porque, à margem daquela resposta segura que primeiramente dei, à luz do que falámos agora, vejo uma outra segurança. Se pois me perguntares: Que é que existe no corpo que o torna quente?, não te darei aquela resposta segura e ignorante: é o calor, mas uma mais inteligente, de acordo com o que dissemos agora: é o fogo. E se de novo me perguntares: Que é que existe no corpo que faz com que adoeça?, não te responderei que é a doença, mas a febre; ou ainda: Que existe no número para o tornar ímpar?, não te diria que é a imparidade, mas: a unidade, e assim por diante. De modo que, vê se já compreendes suficientemente o que quero dizer.

- Muito suficientemente - respondeu Cebes.

- Responde-me então - prosseguiu Sócrates -. O que é que, existindo num corpo é a causa de ele estar vivo?

- A alma.

- E acaso sucede sempre assim?

- Sim disse ele.

- Então, entrando a alma num corpo, leva sempre consigo a vida?



Morte de Sócrates



- Sim, leva - respondeu.

- E existe algo oposto à vida, ou não?

- Sim, existe.

- O que é?

- A morte.

- Portanto, a alma jamais aceitará o contrário do que lhe está sempre inerente, segundo se reconheceu no que antes falámos.

- É com toda a razão evidente - respondeu Cebes.

- E então? Ao que não admite a ideia de par, como o chamávamos há momentos?

- Chamávamos-lhe ímpar - respondeu.

- E ao que não recebe em si o justo, nem a música?

- Injusto, um e Inculto, o outro - respondeu.

- Bom. E ao que não acolhe em si a morte, como o denominamos?

- Imortal - respondeu Cebes.

- E a alma não acolhe em si a morte?

- Não.

- Portanto a alma é imortal.

- Sim, é imortal.



Eros e Psique




- Seja - disse ele -. Podemos assim dizer que isso fica demonstrado?

- Seja - disse ele e de modo satisfatório Sócrates.

- E então Cebes? Se o ímpar lhe fosse necessário ser imperecível, poderia não ser imperecível o número 3?

- Sem dúvida.

- E se o não quente fosse necessariamente imperecível, quando da neve aproximassem o calor, não escaparia, ficando sã e salva e sem se fundir? De certeza não deixaria de existir, nem aceitaria o calor.

- Isso é bem verdade - respondeu.

- Do mesmo modo, penso que se o não-frio fosse imperecível, sempre que algo frio se aproximasse do fogo, jamais se apagaria nem aqueceria, mas continuaria não-quente.

- É necessário - disse.

- Acaso então - prosseguiu Sócrates - não é forçoso também assim a respeito do que é imortal? Sendo este também imperecível, é impossível que quando a morte se abate sobre a alma, ela pereça; porque, e é uma consequência do que antes dissemos, a alma, não aceitará a morte nem pode estar morta, assim como o 3 não será, dizíamos, par, nem tampouco o ímpar, nem o fogo se fará frio, nem o calor que existe no fogo. Porém que impede - poderia alguém objectar - que o ímpar não se torne par, pela aproximação do par, como reconhecemos, mas que ao perecer surja em seu lugar o par? A quem tal objectasse, não poderíamos ripostar que não perece, visto o não-par não ser imperecível. Se porém tivéssemos reconhecido isso, facilmente responderíamos que, perante a proximidade do par, o ímpar e o 3 para longe se afastam. E do mesmo modo argumentaríamos a respeito do fogo e do calor e dos demais contrários. Ou não?

- Com toda a certeza.

- Logo, se acerca do imortal, reconhecemos que é  imperecível. a alma será, além de imperecível, imortal, caso contrário seriam necessários outros argumentos.

- Mas não há necessidade de outra, pelo menos quanto a este ponto - respondeu Cebes - já que dificilmente alguma outra coisa não admitiria a destruição, se o que é imortal e eterno, a acolhesse.

- Pelo menos, a divindade - disse Sócrates - e a própria ideia da vida, bem como tudo o que seja imortal, ficaria reconhecido por todos, que jamais perecem.

- Todos, por Zeus! - afirmou Cebes -. Pelos homens e ainda com mais forte razão, segundo creio, pelos deuses.



Zeus



- E sendo o imortal imperecível, a alma, se é que é efectivamente imortal, como poderá não ser imperecível?

- É de todo necessário.

- Quando, portanto, a morte sobrevem ao homem, segundo parece, é o que há de mortal nele que morre, mas a parte imortal subtrai-se à morte e afasta-se a salvo e indestrutível, retirando-se da morte.

- É evidente.

- Portanto, Cebes - concluiu - a nossa alma é imortal e imperecível; e de verdade subsistirão as nossas almas algures noutro mundo... (in ob. cit., pp. 139-150).


terça-feira, 30 de julho de 2013

Fédon ou da imortalidade da alma (i)

Escrito por Platão 





Oráculo de Delfos



«Todos os chamados acusmata se dividem em três categorias: uns indicam o que uma coisa é, outros o que é o mais importante, outros o que se deve ou não fazer. Exemplos da categoria "o que é" são: O que são as Ilhas dos Bem-Aventurados? O Sol e a Lua. O que é o oráculo de Delfos? A tetractys: que é a harmonia em que cantam as sereias. Exemplo da categoria "O que é o mais importante?" são: Qual a coisa mais justa? Fazer um sacrifício. O que é mais sábio? O número; mas, em segundo lugar, o homem que deu nomes às coisas. Entre nós, qual é a coisa mais sábia? A medicina. Qual a mais bela? A harmonia. Qual é a mais poderosa? O conhecimento. Qual a melhor? A felicidade. Que de mais verdadeiro há no que se diz? Que os homens são perversos».

Iâmblico (Vita Pythagorae).


«A maioria dos historiadores e filósofos modernos não têm notado que, na Grécia, foram raras as perseguições aos filósofos e que elas jamais saíram dos templos e sim dos meios políticos. A civilização helénica não conheceu a guerra entre os sacerdotes e os filósofos, a qual tem desempenhado um grande papel na nossa, desde a destruição do esoterismo cristão, no segundo século da nossa era. Tales pôde ensinar, tranquilamente, que o mundo provém da água. Heraclito dizia que o mundo sai do fogo. Anaxágoras afirmava que o Sol é massa de fogo incandescente. Demócrito pretendia que tudo vem dos átomos. Nenhum templo se inquietou com essas afirmativas. Nos templos, os sacerdotes sabiam disso e de mais alguma coisa. Sabiam que os negadores dos deuses não podiam destruí-los na consciência nacional. Os verdadeiros filósofos acreditavam nos deuses, à maneira dos iniciados, e viam neles os símbolos das grandes categorias da hierarquia espiritual, do divino que penetra toda a Natureza, do invisível governando o visível. A doutrina esotérica servia de laço entre a verdadeira filosofia e a verdadeira religião. Esse era o facto profundo, primordial, afinal, que explica o secreto entendimento entre ambas na civilização helénica».

Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).


«É sabido, disse eu [Sócrates], que assim como os olhos foram moldados para a astronomia, assim também os ouvidos foram formados para a harmonia, e que estas ciências são irmãs, tal como afirmam os Pitagóricos e nós, ó Gláucon, com eles concordamos».

Platão («Politeia» 530d).


«Anaxágoras de Clazómenas, filho de Hegesibulo, sustentava que os primeiros princípios das coisas eram as homeomerias. Pois parecia-lhe completamente impossível que alguma coisa se originasse a partir do não-existente ou nele se dissolvesse. De qualquer forma, nós tomamos alimentos que são simples e homogéneos, tais como pão ou água, e com estes se alimentam os cabelos, as veias, as artérias, a carne, os tendões, os ossos e todas as outras partes do corpo. Sendo assim, temos que concordar que tudo o que existe está nos alimentos que tomamos, e nesses alimentos algumas partes que produzem o sangue, outras os tendões, outras os ossos, etc. - partes que só a razão pode apreender. Pois não há necessidade de referir à percepção dos sentidos o facto de o pão e a água produzirem todas estas coisas; antes, existem no pão e na água partes que só a razão pode apreender».

Écio (in G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).






«Estes dois, porém, diferem entre si, no que Empédocles imagina ser um ciclo de tais mudanças, e Anaxágoras uma única série. Além disso, Anaxágoras postulava uma infinidade de princípios, nomeadamente, as substâncias homeoméricas e, conjuntamente, os contrários, ao passo que Empédocles postula apenas os chamados "elementos". A teoria de Anaxágoras, de que os princípios são em número infinito, foi provavelmente devida à sua aceitação da opinião comum dos físicos, de que nada nasce do não-ser. Pois esta é a razão pela qual eles usam a frase "todas as coisas estavam juntas", e porque o nascimento desta ou daquela espécie de coisas se reduz a uma mudança de qualidade, ao passo que, outros falam de combinação e separação. Além disso, o facto de os contrários provirem uns dos outros levou-os à mesma conclusão. Um, raciocinavam eles, deve ter existido no outro; pois, uma vez que tudo o que nasce deve surgir quer do que é quer do que não é (neste ponto todos os físicos estão de acordo), eles pensavam que se seguia necessariamente a verdade da alternativa, nomeadamente, que as coisas nascem a partir de coisas que existem, isto é, de coisas já presentes, mas imperceptíveis para os nossos sentidos em virtude da pequenez do seu tamanho. Assim, afirmam eles que todas as coisas estão misturadas em tudo, porque viam que tudo procedia de tudo. Mas as coisas, como eles dizem, parecem diferentes umas das outras e recebem nomes diferentes, consoante a natureza da coisa que é numericamente predominante entre os inúmeros constituintes da matéria. Pois nada, afirmam eles, é pura e inteiramente branco ou preto ou doce ou carne ou osso, mas consideravam que a natureza de uma coisa é a daquilo que ela contém em maior quantidade».

Aristóteles (Physis).


«Dos que escreveram um único livro, fazem parte Melisso, Parménides e Anaxágoras».

Diógenes Laércio (in G. S. Kirk, J. E. Raven e M. Schofield, «Os Filósofos Pré-Socráticos»).





Fédon ou da imortalidade da alma


Sócrates - (...) Quando eu era jovem sentia um extraordinário desejo de conhecer aquela ciência que dá pelo nome de investigação da história da natureza. Pensava ser excelente conhecer as causas de todas as coisas, porque é que elas nascem, perecem e subsistem! E muitas vezes divagava a minha mente examinando questões como esta: É em virtude de uma espécie de putrefacção, na qual participam o quente e o frio, que como alguns afirmam, se formam os seres vivos? E por meio do sangue que pensamos, ou devido ao ar ou ao fogo? Ou não será por intermédio destes factores, mas é sim o cérebro que produz as sensações auditivas, visuais e olfactivas, das quais resultariam a memória e a imaginação, e destas, depois de consolidadas, a ciência? Além do mais, examinava também as causas da corrupção e os fenómenos do céu e da terra, até que acabei por considerar-me totalmente inapto para um tal estudo. Dar-te-ei uma prova que te bastará. Havia conhecimentos que antes possuía de modo seguro, ou que pelo menos a mim e a outros assim parecia. Em consequência desta investigação, tornei-me tão cego que desaprendi até quanto julgava saber, em particular, a causa do crescimento humano. Pensava antes que a resposta era óbvia, que a causa é o comer e o beber. Porque juntando-se através dos alimentos, carnes a carnes, ossos a ossos e, na mesma proporção, as demais substâncias às suas conaturais, resultava que uma massa pouco volumosa se tornava logo maior; assim um homem fazia-se grande. Assim pensava eu. Não te parece razoável?

- Sim -, respondeu Cebes.

- Escuta ainda mais este facto. Eu pensava estar certo, quando, na presença de um homem alto junto de outro baixo, aquele me parecia ser maior que este, pela altura da cabeça, e o mesmo de um cavalo em relação a outro. Mais claramente: 10 parecia-me mais do que 8, por a 8 terem adicionado 2; e dois côvados, mais do que um côvado, porque o excede em metade da sua extensão.






- E agora - indagou Cebes - que pensas tu sobre isso?

- Por Zeus - respondeu - estou longe de supor que conheço as causas dessas coisas, pois nem me atrevo a dizer, quando a uma unidade adicionamos outra, se é a unidade, a que a outra se adicionou que se tornou em 2, ou se é a unidade adicionada e aquela a que se adicionou, que consequentemente se tornaram em 2. Fico com efeito surpreendido: quando ambas existiam separadas, cada uma era unidade e não 2; mas após se terem aproximado, a justaposição foi a causa que as fez passar ao 2, quer dizer a junção resultante da sua mútua aproximação. E tão pouco me posso persuadir, que quando se fracciona uma unidade, seja esse fraccionamento a causa de haver 2; pois a causa que antes produzia 2 resulta contrária à anterior. No primeiro caso, a razão era a proximidade e adição de duas unidades e agora, o seu afastamento e separação uma da outra. Quanto a saber qual a causa da produção da unidade, estou longe da convicção de a saber, nem em suma, alguma outra coisa, porque aparece, desaparece ou existe, de acordo com este método; mas há outro método de investigação que busco sem orientação, já que de modo algum sigo o anterior.

Ouvindo, em certa ocasião, ler um livro, segundo me disseram, de Anaxágoras, onde se atribuía ao espírito a ordenação e a causa de todas as coisas, regozijei-me por isso e pareceu-me que, de certo modo era vantajoso ser o espírito a causa de tudo. Sendo assim, pensava eu, o espírito ordenador há-de ter disposto cada coisa no lugar mais conveniente. E se alguém quiser encontrar, para cada coisa, a causa porque nasce, perece, ou subsiste, deve investigar, acerca dela, o seu modo de existir, de ser paciente ou agente. Portanto, segundo este argumento, nada de mais interessante deve um homem investigar, a este respeito, a não ser o que é mais perfeito e excelente. E assim é forçoso que conheça também o pior, pois são ambos objecto do mesmo conhecimento. Estas reflexões foram para mim um motivo de júbilo, convicto de ter descoberto em Anaxágoras um mestre, como convinha ao meu espírito, capaz de me ensinar, sobre a causa dos seres, e que me faria compreender primeiro, se a terra é plana ou redonda; de seguida, expor-me-ia a causa e a necessidade da sua forma, declarando-me qual a preferível e porque era melhor que ela fosse de tal ou tal forma. E se afirmasse que estava no centro, explicar-me-ia a vantagem disso. Se me demonstrasse tudo isto, estava disposto a não buscar outro género de causa. E também estava disposto a informar-me do sol, da lua e demais astros, de suas relativas velocidades, revoluções e demais fenómenos, investigando as vantagens de cada um produzir ou padecer essas vicissitudes, do modo como as produz ou padece. Jamais teria suposto que, afirmando que tudo isso havia sido ordenado pelo espírito, lhes atribuísse outra causa, que não a de o melhor modo de elas serem, é serem como são. Julgava que ao atribuir tal causa a cada um desses seres e a todos em geral, explicaria o que é melhor para cada um em particular e o bem comum a todos. Não abandonando essa esperança, com que ardor, devorei o livro o mais depressa que pude, a fim de conhecer, com a máxima brevidade, o melhor e o pior.

Porém, da minha sedutora esperança, meu amigo, saí defraudado, quando, ao avançar na leitura, via diante de mim um homem que não se importava com o espírito, nem lhe atribuía a causa da ordem das coisas, alegando pelo contrário, o ar, o éter, a água e outras causas absurdas. Pareceu-me o seu caso semelhante ao de quem asseverasse que Sócrates executa todas as acções com o seu espírito, de seguida explicando as causas dos meus actos, nos seguintes termos: que estou aqui sentado, porque o meu corpo se compõe de ossos e de músculos; que os ossos são sólidos e separados uns dos outros por articulações, enquanto os músculos, cuja propriedade é a de se contraírem e distenderem, rodeiam os ossos com a carne e a pele que mantém o conjunto. É assim que, ao moverem-se os ossos nas suas articulações, a distensão e contracção dos músculos, tornam-me capaz de dobrar os membros, razão pela qual estou aqui sentado com os joelhos dobrados. Caso se tratasse da nossa conversa, alegaria causas análogas: os sons, o ar, o ouvido e milhares de coisas deste género, descurando a verdadeira causa, ou seja, que uma vez que aos Atenienses lhes pareceu melhor condenarem-me, por essa razão, me pareceu melhor e mais justo ficar aqui sentado, aguardando a execução da pena que me infligiram. Porque, pelo Cão, se não me engano, há já muito tempo que estes músculos e ossos estariam em Mégara, ou na Beócia, transportados pela ideia do melhor, se não estivesse convicto de ser mais justo e excelente, preferir à fuga e à evasão, a aceitação da pena imposta pela Cidade. Chamar, portanto, causas a semelhantes coisas é um claro absurdo. Se alguém afirmasse que eu não seria capaz de realizar os meus desígnios, sem possuir ossos, músculos e o que de mais possuo, falaria verdade. Mas afirmar que é por essa causa, que pratico os meus actos e que, o faço com o meu espírito, mas não pela eleição do que é melhor, seria um enorme abuso de linguagem. Isso traduz, em suma, a incapacidade de distinguir a verdadeira causa, daquela sem a qual a causa jamais poderia ser causa, ao que o vulgo, às apalpadelas, denomina impropriamente como sendo uma causa real. Em consequência, um turbilhão envolve a Terra, quer seja o céu a mantê-la; outro, coloca-lhe por debaixo o ar, como base e suporte, como a uma enorme gamela. Mas quanto ao poder, em virtude do qual estas coisas se encontram agora dispostas do melhor modo para elas, não o buscam, nem lhe atribuem uma força divina; julgam antes poder descobrir um novo Atlas mais poderoso e imortal, que melhor suporte todas as coisas, não pensando que é de verdade o bem e o dever o que as une e mantém coesas entre si. Eu, com muita alegria me tornaria discípulo de quem quer que me instruísse acerca de tal causa. Visto, porém, terem a este respeito falhado as minhas diligências, e não ter sido capaz de a encontrar nem de a aprender de outrem, desejas Cebes, que te faça uma descrição da minha segunda viagem em busca dessa causa?






- Desejo-o com todo o meu coração - respondeu Cebes.

- Depois disto - retomou ele - e uma vez que me tinha desiludido da investigação dos seres, decidi que devia acautelar-me, para que não me sucedesse o mesmo que aos que contemplam e observam um eclipse do sol, pois alguns chegam a perder a vista, a não ser que na água ou em algum outro meio semelhante observem a sua imagem.  Pensava em qualquer coisa desta natureza, com medo de ficar completamente cego da alma, por olhar directamente as coisas com os olhos e tentar percebê-las pelos sentidos. Pareceu-me então que me devia refugiar nas ideias, e ver nelas a verdadeira essência dos seres. Talvez seja verdade que a minha comparação, em certo aspecto, não seja exacta, pois não sem reserva, admiro que quem vê os seres nas ideias, os contempla mais em imagens, do que os examina nos factos do dia a dia. Lancei-me pois por esta via, e tomando cada vez por base, a ideia que julgava mais segura, tudo o que se me afigurava consonante com ela, quer causa, quer tudo o mais, considerava verdadeiro; tudo em que faltava esta consonância, entendia como falso. Porém, quero expor-te com mais clareza o meu pensamento, pois creio que ainda o não compreendes.

- Não, por Zeus - afirmou Cebes - não de todo.

- Todavia - continuou Sócrates - nada digo de novo, mas apenas o que na argumentação de há pouco, não deixei de dizer. Vou então tentar explicar-te a espécie de causa que procurei com afã, voltando às asserções tantas vezes repetidas, tomando como ponto de partida e base, a existência do belo em si e por si, do bom, do grande, e de tudo o mais. Se me concedes e admites a existência disto, espero a partir delas, mostrar-te qual seja a causa, que prova que a alma é imortal.

- Está bem - afirmou Cebes - concedo-to, não vaciles em prosseguir.

- Verifica então comigo - continuou Sócrates - se partilhas do próximo passo. É com efeito para mim evidente, que se alguma coisa bela existe além do belo em si, não será bela por nenhum outro motivo, senão porque participa desse belo. E o mesmo digo das demais qualidades. Admites esta espécie de causa?

- Admito - afirmou.

- Então - prosseguiu Sócrates - aqueloutras causas sábias, não compreendo nem posso reconhecer; se alguém me disser que uma coisa é bela, por virtude do brilho da sua cor, da sua forma, ou qualquer outro aspecto análogo, ponho de parte todas essas explicações, que me causam confusão, e agarro-me com uma simplicidade talvez ingénua, à ideia de que nada mais a torna bela senão o belo em si, por presença ou participação, seja por qualquer outro meio (sobre o modo como tal sucede, ainda não posso precisar, a não ser que todas as coisas belas recebem do belo a sua beleza). Penso que esta é a resposta mais segura, que me posso dar e aos outros; e fincando-me  neste princípio, creio que jamais arriscarei passos em falso e que poderei assegurar a toda a gente, que é graças ao belo que são belas as coisas belas! Não te parece o mesmo?

- Sim, parece-me.

- Ora, não concordas que as coisas grandes são grandes e as maiores, por causa da grandeza, assim como pela pequenez as mais pequenas, são mais pequenas?

- Concordo.

- Logo, não admitirias que alguém dissesse que tal homem é mais alto que outro pela sua cabeça, ou menor pela mesma razão, mas manterias o teu testemunho de que não afirmas nada mais que, toda a coisa maior do que outra, o é somente pela grandeza, e que de facto é maior por essa causa; e que o que é menor, por nenhuma outra coisa o é, a não ser pela pequenez, a que deve ser mais pequena. E creio, se sustentasses que alguém é maior ou mais pequeno por causa da cabeça, não deixarias de recear objecções como: primeiro, pelo mesmo motivo seja o maior, maior e o menor, menor; depois, que é graças à cabeça, ainda que pequena, que um homem maior é maior, - o que seria prodigioso que alguém pudesse ser grande, por algo tão pequeno. Não temerias tal objecção?



- Cebes, rindo, retorquiu:

- Eu sim.

- Não recearias também dizer - prosseguiu Sócrates - que 10 tem 2 a mais que 8, e que por esta razão o ultrapassa, e não por causa e por meio da quantidade? E também que o duplo côvado exceda pela metade um côvado, e não na e por causa da grandeza? Pois o caso é idêntico.

- É indubitável - respondeu Cebes.

- E então? Não te guardarias de dizer que, na adição de uma unidade a outra, a adição era a causa da produção do 2, ou que era a divisão, no caso de a dividirmos? E não proclamarias em altos brados, que desconheces outra causa da existência de cada coisa, a não ser por participação da própria essência de cada realidade, da qual deve participar? E que nestes casos não encontras outra causa para alegar o aparecimento do 2, senão a participação na dualidade, da qual necessariamente participa o que deve ser 2, bem como pela participação na unidade o que deve ser 1? Quanto às divisões, adições e demais subtilezas, deixá-las-ia para homens mais sábios que tu. Tu, temeroso, segundo o que foi dito, da tua própria sombra e incompetência, agarrando-te à segurança deste princípio, darias uma resposta semelhante. E se alguém o atacasse, lhe darias atenção e não lhe responderias até teres examinado se as consequências derivadas deste, concordavam ou discordavam entre si; e quando te fosse necessário dar razão do princípio, fá-lo-ias do mesmo modo, tomando como princípio básico um outro - até chegares a um resultado satisfatório. Entretanto, não confundirias, como os sofistas, discorrendo acerca do princípio e das suas consequências, se pretendes descobrir a realidade das coisas. Eles são tão inteligentes, que não têm provavelmente a esse respeito, qualquer pensamento ou preocupação, sentindo-se felizes com essa sabedoria que tudo mistura, com isso se contentando consigo mesmos. Mas, tu, se de verdade és filósofo, creio que deixarás de proceder como digo.

- É certíssimo o que dizes - afirmaram em simultâneo Símias e Cebes.

EQUÉCRATES - Por Zeus, Fédon, certamente, eles tinham razão. Parece com efeito, que Sócrates fez uma exposição de maravilhosa clareza, mesmo para um espírito medíocre.

FÉDON - É verdade Equécrates, foi também o que pensaram todos os que lá estiveram (in Fédon, Guimarães Editores, 2003, pp. 125-138).

Continua


domingo, 9 de setembro de 2012

Apologia de Sócrates (ii)

Escrito por Platão 





«Sócrates - Nunca fui mestre de ninguém, e se alguém, jovem ou velho, pretende ouvir-me falar e observar o que faço, nunca a tal me opus, nem nunca dialoguei a soldo, nem deixei de dialogar por não me pagarem; antes pelo contrário, estou disponível tanto para o rico como para o pobre; interrogo, e seja quem for pode responder e ouvir quanto digo. Se algum destes segue o bom ou o mau caminho, não é justo que a responsabilidade recaia sobre mim, dado que nunca prometi instruir, nem nunca instruí fosse quem fosse. Se houver alguém que afirme ter aprendido, ou ter-me ouvido em particular algo diferente do que digo em público, ficai certos de que não diz a verdade.

Nesse caso, por que razão há tantos a quem agrada conversar demoradamente comigo? Já ouviste a razão, cidadãos de Atenas, e disse-vos a pura verdade: - é que os diverte o verem confundidos os que se julgam sábios e, todavia, não o são. Ora, isto não deixa de ser divertido. Em todo o caso, e assim o creio, este dever foi-me ordenado pelo deus através de oráculos e de sonhos, e por todas as vias através das quais o poder divino comunica aos homens os seus desígnios.

(...) Se aqueles que, dentre vós, passam por ser superiores, já em sabedoria, já em coragem, já noutra virtude qualquer, se comportassem desse modo [implorar pela absolvição], dir-se-ia uma vergonha. Porque tenho visto algumas vezes homens com reputação procedendo da forma mais surpreendente, quando sob a alçada do Tribunal, como se temessem sofrer algo de horrível caso fossem condenados à morte, como se, não sendo mortos, se tornassem imortais. Em minha opinião, esses tais desonram a cidade e procedem de tal forma, que um estangeiro julgaria que os Atenienses mais excelentes em virtude, aqueles que os cidadãos colocam antes deles mesmos, com honras e magistraturas, não diferem das mulheres. Eis porque, Atenienses, pois que somos tidos na conta de gente de virtude, não devemos assim proceder e porque, se assim procedermos, deveis não o permitir, mostrando, bem pelo contrário, que sois mais severos de juízo para os que encenam tão lamentáveis comédias, chamando o ridículo sobre a cidade, do que para os que mantêm uma atitude serena.

(...) Alguém poderá dizer-me - "Uma vez fora de Atenas, Sócrates, não serias capaz de viver quieto e calado?" Aí está o que acho mais difícil de vos fazer compreender. Se dissesse que esse procedimento constituiria uma desobediência ao deus e que, além disso, não posso estar quieto, pensaríeis que zombo, e não me acreditaríeis; se, por outro lado, afirmar que o falar todo o dia da virtude e de outras coisas que tantas vezes me ouvistes tratar, estudando-me a mim e aos outros é o maior bem de cada homem, e que uma vida sem isto não é digna de ser vivida, ainda menos me acreditaríeis.


Ruínas do tolo de Delfos










(...) Se houvesseis tido a paciência de esperar um pouco, o que desejais teria vindo ao vosso encontro: vêdes como sou velho, como a minha idade é avançada e quão próxima está a morte. Não digo isto para todos, mas apenas para aqueles que votaram a favor da minha morte. E a esses ainda tenho mais para dizer: julgais decerto, cidadãos, que fui condenado por falta de argumentos com que vos poderia persuadir, se achasse correcto fazer e dizer tudo o que fosse necessário para obter a absolvição. Estais enganados. Fui condenado, não por falta de argumentos, sim por falta de audácia e impudência, por não ter vontade de dizer o que teríeis escutado com gozo. Gostaríeis de me ter ouvido gemer e chorar, fazer e dizer muitas outras coisas que reputo indignas de mim - essas que estais acostumados a ouvir de outros réus.

(...) Antes de mais, juízes, - e ao chamar-vos juízes dou-vos o nome de que sois dignos - aconteceu-me algo de maravilhoso. Até ao dia de hoje, aquela voz profética do meu demónio sempre falou comigo, contrariando-me até em assuntos de somenos valor, sempre que eu estava prestes a fazer algo que não devia; mas agora, como podeis ver, acaba de me suceder o que poderia reputar-se, e de facto se reputa, como o pior de todo o mal, o sinal divino não me contrariou, nem quando saí de casa, de manhã, nem quando vinha para este dicastério, nem em nenhum momento da minha defesa. E quantas e quantas vezes, em outras circunstâncias, me interrompeu em pleno discurso! Mas agora, neste caso, não opôs qualquer objecção ao que eu fazia ou dizia. Como explicar este facto? É o que vos direi.

O que acaba de me suceder é, sem dúvida, um bem, e os que entre nós pensarem que a morte é um mal estão enganados. Foi-me dada uma prova convincente, porque o sinal habitual se teria com certeza oposto a mim, se eu não estivesse destinado a ir ao encontro de algo de bom.

(...) Quando meus filhos forem homens, cavalheiros, puni-os como eu vos punia, na caso de eles cuidarem mais do dinheiro e de coisas semelhantes do que da virtude; e se porventura julgarem valer alguma coisa, sem nada valerem, repreendei-os tal como eu vos reeprendi, para que não cuidem do que não devem, e não se arroguem valer o que não valem. Se assim o fizerdes, tereis sido justos para mim e para meus filhos.

Chegado é o tempo de partirmos. Eu para a morte, vós para a vida. Qual dos destinos é o melhor, a não ser o deus, ninguém o sabe».

Platão («Apologia de Sócrates»).






6. Atentai agora na razão por que vos falo disto - explicar-vos a proveniência do preconceito contra mim. Quando tive notícia da resposta do oráculo, interroguei-me a mim mesmo: - «que significa o oráculo do deus, que sentido oculto há nas suas palavras? Por mim estou cônscio de que não sou sábio, nem muito nem pouco. Que pretende ele significar, ao afirmar que sou o mais sábio? Ele certamente não pode mentir, isso não lhe é possível». E durante muito tempo fiquei perplexo, sem atinar com o significado do oráculo. Por fim e com grande relutância, decidi-me a investigá-lo, da seguinte maneira:

Comecei por ir a casa de um desses homens com fama de sábio, persuadido de que aí, melhor do que algures, poderia verificar o significado do oráculo, se este era ou não fundado, de forma a poder retorquir ao deus: «Eis, afinal, um homem que é mais sábio do que eu, quando tu dizias que eu era o mais sábio». Examinando este homem, - cujo nome não necessito de aqui declarar, bastando dizer Atenienses, que era um dos nossos políticos, esse com quem tive esta espécie de experiência, e conversando com ele, esse homem pareceu-me sábio aos olhos de muita gente e principalmente aos seus próprios olhos, embora de modo algum o fosse. Então, procurei demonstrar-lhe que, embora se julgasse sábio, tal não era. Resultado: tornei-me odioso a esse homem e a muitos dos que se achavam presentes, e, ao sair, ia dizendo para mim mesmo: «Sou decerto mais sábio do que este homem. É possível que nenhum de nós saiba algo de belo e de bom, mas ele julga que sabe quando nada sabe, enquanto eu, que nada sei, não julgo que sei. Enfim, parece-me, por conseguinte, que sou um pouco mais sábio do que ele, pelo menos nisto: em não julgar saber o que na verdade não sei». Em seguida procurei um outro, que tinha a fama de ser ainda mais sábio do que aquele, e obtive idêntica impressão, de onde também passei a ser odiado, por ele, e por muitos outros.

7. Depois deste, prossegui de um para outro, verificando sempre, com pesar e apreensão, que me tornava cada vez mais odioso, mas, não obstante, pensava que devia a maior consideração ao serviço da divindade e, para estudar o significado do oráculo, tinha de ir ao encontro de todos quantos gozavam de fama de saber. E, pelo cão!, cidadãos de Atenas - porque vos sou devedor da verdade - a impressão que me ficou foi esta: os que gozavam de maior fama foram os que me pareceram, quando os examinava, guiado pela intenção do deus, os mais deficientes, enquanto outros, tidos e havidos como inferiores, me pareceram bem superiores em saber. É necessário, por isso, que vos relate as minhas inquirições, como suportei fadigas, para obter a certeza de que o oráculo era irrefutável.

Cariátides







Depois dos políticos, procurei os poetas trágicos, os ditirâmbicos e os outros, pensando que, aí, eu não poderia deixar de ser o de menor saber entre todos. Tomando, de entre os poemas desses homens, os que me pareceram de mais perfeita elaboração, pedia aos seus autores que me explicassem o que eles significavam, por forma a ver se aprendia neles alguma coisa. Sinto vergonha, agora, cidadãos, de vos dizer a verdade, mas tem de ser dita: quase todos os circunstantes eram mais hábeis na explicação dos poemas do que os seus autores. Por isso, ainda quanto aos poetas, ocorreu-me que o que eles compõem não o compõem em virtude do saber, mas em virtude da natureza, e porque estavam inspirados, ao modo dos profetas e dos adivinhos. Também estes proferem ditos muito belos, sem ciência do que dizem. Pareceu-me evidente que também os poetas experimentavam algo de semelhante. Ao mesmo tempo compreendi que eles, em virtude do seu génio poético, se julgavam os mais sábios dos homens mesmo em outros assuntos, todavia não o sendo. Abandonei assim os poetas, persuadido de possuir em relação a eles o mesmo ascendente que verificara possuir em relação aos políticos.

8. Por último, procurei os artistas. Estava ciente de não saber coisa alguma e de encontrar entre eles homens sabedores de muitas coisas belas. E neste juízo não me enganei: eles sabiam o que eu ignorava e deste modo eram mais sábios do que eu. Todavia, Atenienses, esses bons artesãos também me pareceram com o mesmo defeito dos poetas, porque, sendo embora exímios na sua arte, cada um deles julgava-se muito sábio noutros assuntos importantes, e esta ilusão ofuscava o seu real saber, de modo que, quando me interroguei a mim próprio, para justificar o oráculo, preferia ser o que sou, nem sábio na sua sabedoria, nem tolo na ilusão desses homens, ou, pelo contrário, possuir como eles o saber e a ignorância, respondi a mim mesmo que o melhor seria continuar a ser o que sou.

9. Tal foi, Atenienses, a inquirição que suscitou contra mim tantas inimizades tão funestas e tão graves, que delas me provieram muitas calúnias, a par da fama de sábio. De facto, em cada ocasião, os que se acham presentes julgam que sou sábio naqueles assuntos cuja ignorância confuto nos outros. Penso, no entanto, Atenienses, que o verdadeiramente sábio é o deus, que, em seu oráculo, significou o seguinte: «A sabedoria humana é de pouco ou de nenhum valor». E julgo que não queria referir-se exactamente a Sócrates, mas que se valeu do meu nome a título de exemplo, como se dissesse: «Ó homens, o mais sábio de vós é aquele que, como Sócrates, sabe que, afinal de contas, o seu saber é nulo». Prossigo assim esta indagação, segundo o desígnio do deus, continuando a interrogar quem, cidadão ou forasteiro, me pareça sábio. E, quando se me afigura que não é sábio, dou uma ajuda ao deus, e demonstro que não é sábio.






Por causa desta ocupação não tenho tido vagar para me ocupar com seriedade de qualquer tarefa, já pública, já privada, e, assim, por bem servir o deus é que vivo, como se vê, na maior pobreza.

10. Acrescentai a isto que os jovens com disponibilidade para o fazer, por serem das famílias mais ricas, se me dedicam espontaneamente, divertindo-se a ouvir-me a pôr os homens à prova. Por vezes querem imitar-me, e tentam, por sua conta, interrogar os outros. É-lhes fácil encontrar muita gente que julga saber mas que, na verdade, pouco ou nada sabe. Em virtude disso, todos os que se sujeitam a este tipo de exame ficam indignados comigo, em vez de ficarem indignados com os rapazes, e afirmam que «é um tal Sócrates, um maltrapilho que corrompe a juventude».

Quando se lhes pergunta «o que faz ele, ou ensina ele?» nada têm a dizer, pois não sabem, e, para não se desmancharem, proferem acusações que se repetem contra todos os filósofos, dizendo «as coisas do céu e de sob a terra» e «não crê nos deuses», e «fazer prevalecer as ideias nocivas sobre as boas». Compreende-se que não queiram dizer a verdade, ou seja, que não se atrevam a afirmar que estão convencidos de saber, quando na verdade nada sabem. Ora, como são ciosos da sua honra, e violentos, e numerosos, e se referem a mim em uníssono e de forma convincente, encheram-vos os ouvidos de há muito repetidas e agora veementes calúnias. Dentre eles saíram, para me atacar, Meleto, Ânito e Lícon, Meleto em nome dos poetas, e Ânito por conta dos artistas e dos políticos, e Lícon dos oradores. Por isso mesmo, como afirmei no princípio, seria muito estranho se eu conseguisse destruir, em tempo tão curto, uma calúnia quando ela se avolumou tanto. Eis aí a pura verdade, ó homens de Atenas. Falou-vos sem nada vos esconder, sem dissimular seja o que for. E no entanto estou certo de que me tornarei ainda mais odioso com este meu procedimento que, afinal, é uma prova de que falo a verdade, e de que a calúnia erguida contra mim, bem como as suas causas, são tal como as expliquei. Se investigardes, hoje ou noutra ocasião, vereis que assim é...  (in ob. cit., pp. 40-48).