quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Da visão e da luz

Escrito por Platão





«Demócrito e a maioria dos filósofos da natureza, que se ocupam da percepção, são culpados de um grande absurdo: pois reduzem ao tacto toda a percepção».

Aristóteles


«Leucipo, Demócrito e Epicuro dizem que a percepção e o pensamento surgem, quando entram imagens do exterior; pois nenhum deles ocorre a quem quer que seja sem a colisão de uma imagem».

Écio


«Demócrito explica a vista pela imagem visual, que ele descreve de uma maneira particular; a imagem visual não surge directamente na pupila, mas é o ar existente entre o olho e o objecto da visão que, ao ser contraído, é marcado pelo objecto visto e pelo observador; pois todas as coisas estão sempre a emitir uma espécie de eflúvios. Por isso, este ar que é sólido e de cores variegadas, aparece nos olhos que são húmidos (?); os olhos não admitem a parte densa, mas a húmida passa através deles...».

Teofrasto


«Eles atribuíram vista a certas imagens do mesmo formato que o objecto, que estavam continuamente a fluir dos objectos da visão e a colidir com os olhos. Esta era a opinião da escola de Leucipo e Demócrito...».

Alexandre


«Anaxímenes diz que os corpos celestes são de natureza ígnea, e que têm entre eles alguns corpos térreos, invisíveis, que giram juntamente com eles».

«Anaxímenes diz que os astros estão implantados, como pregos, no cristalino; mas alguns há que afirmam serem eles folhas ígneas como pinturas».

Écio


«Fílon – …o que eu quero ensinar-te é que o olho não só vê, mas também alumia primeiramente aquilo que vê. Assim, que em boa consequência, não creias que o Sol só ilumina, mas crê que também vê, porque de todos os sentidos só o da vista é estimado pelo Céu, porque está ali muito mais perfeitamente que no homem nem noutro animal.

Sofia – Como? Os céus vêem como nós?

Fílon – Segundo dizem, vêem melhor que nós.

Sofia – Têm olhos?




Fílon – E que melhores olhos que o Sol e as estrelas que são chamados olhos de Deus na Sagrada Escritura, dada a visão deles, chegando a dizer o profeta em relação aos sete planetas: Aqueles sete olhos de Deus que se estendem por toda a Terra? E outro profeta diz, quanto ao céu estrelado, que o seu corpo está cheio de olhos. E chamam olho ao Sol, e dizem olhos do Sol. Estes olhos celestiais também tanto alumiam quanto vêem. E mediante a visão compreendem e conhecem todas as coisas do mundo corpóreo e as mutações delas».

Leão Hebreu («Diálogos de Amor»).


«Através do ar, o olho transmite a sua própria imagem para todos os objectos que fita e também os recebe na sua própria superfície, de onde o sensus communis os retira e aprecia».

«Eu considero que os poderes invisíveis das imagens nos olhos se podem projectar para o objecto, bem como as imagens dos objectos nos olhos».

«Afirmo que o poder da visão se propaga através dos raios visuais para a superfície dos corpos não-transparentes, enquanto que o poder possuído pelos mesmos corpos se propaga ao poder da visão».

«Diz-se que as donzelas têm nos olhos poder para atrair, para si próprios, o amor dos homens».

Leonardo da Vinci




Da visão e da luz


(...) Mas tu, ó Sócrates, que afirmas que seja o bem: a ciência, o prazer, ou qualquer outra coisa e diferente?

- Que homem és, amigo! Há muito que tinhas tornado bem claro que não te darias por satisfeito com a opinião dos outros a este respeito.

- É que também não me parece razoável, ó Sócrates, que se seja capaz de expor as doutrinas dos outros, mas não as próprias, quando uma pessoa se ocupa destes assuntos há tanto tempo.

- Ora essa! - exclamei -. Parece-te razoável uma pessoa falar do que não se sabe, como se soubesse?

- Falar como se soubesse, não, mas consentir em falar como alguém que expõe o seu próprio pensamento, sim.


Sócrates


- Mas então! Não vês que as doutrinas divorciadas do saber fazem todas uma triste figura? As melhores dentre elas são cegas. Ou encontras alguma diferença apreciável, entre os cegos que caminham pela estrada certa e aqueles que sustentam qualquer opinião verdadeira sem a inteligirem?

- Não diferem nada.

Preferes então contemplar coisas vergonhosas, cegas, tortuosas, quando podes ouvir de outros o que é luminoso e claro?

- Por Zeus, ó Sócrates - interveio Gláucon - não pares, como se tivesses chegado ao fim! Ficaremos satisfeitos se nos explicares o que é o bem, tal como nos explicaste a justiça, a temperança e a outras virtudes.

- Também a mim, companheiro, me bastará e plenamente. Mas receio que isso supere as minhas forças e que o meu zelo desajeitado possa chegar a causar riso. Façamos melhor, abençoados homens, deixemos, por agora, a natureza do bem em si; ele parece-me demasiado alto para que o impulso que dá asas ao meu presente voo possa atingir por agora o meu pensamento acerca dele. O que desejo expor-vos, se também o desejardes, é o que parece ser filho do bem e muito semelhante a ele; caso contrário, deixemos a questão.

- Fala. Pagarás para outra vez a explicação que nos deves acerca do pai.

- Tomara eu ser capaz de a pagar e vós de a receber e, não apenas como agora, dar-vos só os juros. Recebei, pois, este juro, este filho do bem em si. Mas tende cuidado em que não vos engane sem o querer, entregando-vos falsos cálculos do juro.

- Teremos cuidado, tanto quanto pudermos. Mas fala então.

- Só depois de termos chegado a um acordo e de vos ter lembrado o que aqui dissemos, e que já em muitas outras ocasiões se afirmou.

- O quê? - perguntou.

- Que há um grande número de coisas belas, de coisas boas e um grande número de outras coisas da mesma espécie de que afirmamos a existência e que distinguimos pela linguagem.

- Sim, dissemos.

- E afirmamos, também, a existência do belo em si, do bom em si e, do mesmo modo, relativamente a todas as coisas que postulámos como múltiplas e, de modo inverso, declarámos que a cada uma delas corresponde uma ideia, que é única, e a que chamámos a sua essência.

- É isso.

- E diremos ainda que as coisas múltiplas podem ser visíveis mas não inteligíveis, ao passo que as ideias são inteligíveis mas não visíveis.


Academia de Platão: mosaico de Pompeia, no Museu Arqueológico Nacional (Nápoles).



- Exactamente.

- E por qual das nossas faculdades vemos o que é visível?

- Pela vista.

- E, de igual modo, não percebemos o que é audível por meio da audição e tudo o que é sensível pelos outros sentidos?

- Sem dúvida.

- E já alguma vez te deste conta como o demiurgo dos nossos sentidos modelou com muito mais prodigalidade a faculdade de ver e ser visto?

- Não.

- Repara. Não precisam a audição e a voz de uma outra coisa de espécie diferente, uma para ouvir e a outra para que se faça ouvir, de modo que, na ausência desse terceiro factor, a primeira não ouvirá e a segunda não será ouvida?

- Não precisam de nada.

- Julgo que muitas outras faculdades, para não dizer todas, não necessitam de tal coisa. Ou sabes de alguma?

- Eu não - respondeu.

- Mas, quanto à faculdade de ver e de ser visto, não tem ela necessidade disso?

- Como assim?

- Ainda que a visão exista nos olhos, e o seu possuidor se tente servir dela, e ainda que a cor esteja presente nas coisas, se não se lhes adicionar uma terceira espécie, criada especificamente para este feito, sabes que a vista nada verá e que as cores serão invisíveis.

- Que coisa é essa de que falas?

- É aquilo a que chamas luz.




- Dizes a verdade.

- Por conseguinte, o laço que une o sentido da vista e a faculdade de ser visto é de uma espécie bem mais preciosa do que o que une todos os outros, a menos que a luz seja algo desprezível.

- Verdade é que está bem longe de ser desprezível.

Qual é, quanto a ti, dentre os deuses do céu, o responsável por esta união, cuja luz faz com que vejamos tão perfeitamente quanto possível, e o que é visível seja visto?

- O mesmo a que tu e todas as pessoas se referem, o Sol, pois é evidente que a tua questão se lhe refere.

- E acaso a vista não se encontra para com o deus nesta relação?

- Qual?

- Nem a vista, nem a parte onde se forma a que chamamos olhos, é o Sol.

- Não, com efeito.

- Mas são, penso, de todos os orgãos dos sentidos, os mais semelhantes ao Sol.

- De longe.

- E o poder que possuem, não lhes é dispensado pelo Sol, como um influxo que ele lhes envia?

- Certamente.

- E não é também verdade que o Sol, que não é a vista, mas a sua causa, é contemplado por esta mesma vista?

- Assim é - respondeu.

- Compreende agora - prossegui - que é o Sol que eu considero ser o filho do bem, que o bem gerou à sua semelhança, bem que é, no mundo inteligível, em relação à inteligência e aos objectos inteligíveis, o mesmo que o sol no mundo visível em relação à vista e aos objectos visíveis.

- Como assim? explica-me melhor.

- Tu sabes - continuei . que quando os olhos se voltam para objectos cujas cores já não são alumiadas pela luz do dia, mas pelos clarões da noite, vêem mal e parecem quase cegos, como se tivessem perdido a clareza da sua visão.


Partenon (Atenas).


- Sim, de facto.

- Mas, quando se volta para objectos iluminados pelo Sol, presumo que vêem com clareza e a visão parece residir nesses mesmos olhos.

- Sem dúvida.

- Aplica esta comparação à alma deste modo: quando ela, de modo firme, se fixa num objecto iluminado pela verdade e pelo Ser, apreende-o, conhece-o e parece inteligente; mas, quando se inclina para aquela região na qual se misturam as trevas, o mundo do que nasce e morre, não tem senão opiniões, vê turvo, muda de opiniões de um extremo a outro e parece ter perdido toda a inteligência.

- Sim, parece.

- Ora, o que comunica a verdade aos objectos cognoscíveis e o poder de conhecer ao sujeito que conhece, é a ideia do bem. Deves concebê-la como sendo a causa do saber e da verdade, tanto quanto são conhecidas. Mas por belos que sejam o saber e a verdade, não te enganarás em pensar que há algo ainda de mais belo do que eles. E, tal como no mundo visível se tem razão em pensar que a luz e a visão são análogas ao Sol, mas já não é certo tomá-las pelo Sol, do mesmo modo, no mundo inteligível é correcto considerar que a ciência e a verdade são ambas semelhantes, ao bem, mas não é correcto tomá-las, a uma e a outra, pelo bem. Um ainda mais elevado conceito cabe à natureza do que seja o bem.

- Referes-te a uma beleza extraordinária, se é que ela é a fonte do saber e da verdade, e ainda os excede em beleza. Não é com certeza ao prazer que te estás a referir.

- Cala-te, para longe vá o agouro! Mas examina ainda melhor a imagem do bem.

- Como?

- Reconhecerás, segundo penso, que o Sol não só dá às coisas visíveis a faculdade de serem vistas, mas também a sua génese, crescimento e alimentação, se bem que ele mesmo não seja a génese.

- Não é, com efeito.

- De modo igual dirás que os objectos do conhecimento não recebem apenas da presença do bem a possibilidade de serem conhecidos, mas que as suas próprias existência e ser lhes são adicionadas por ele, apesar de o bem não ser uma essência, mas algo que lhe está acima e além, excedendo-a em dignidade e poder.

Gláucon, com ar jocoso, exclamou: - Valha-nos, Apolo, que divino excesso.




- A culpa é tua - respondi - porque me obrigas a exprimir o que penso sobre o assunto.

- Não desistas, de modo nenhum! E supondo que não queiras ir mais longe, ao menos trata da comparação com o Sol, a ver se há algo que omites.

- Sem dúvida, omito muitas coisas.

- Não deixes agora uma só de lado, por pequena que ela seja.

- Suponho que deixarei, e muitas, mas mesmo assim, até onde for possível nas presentes circunstâncias, nada omitirei por querer.

-Não o faças!

- Imagina - prosseguiu - que eles são dois, como dissemos, e que reinam, um na espécie e mundo inteligível, e o outro no mundo visível, não digo «no céu»: não vás pensar que quero expor o meu saber etimológico a propósito deste nome. Compreendes bem, estas duas espécies, o visível e o inteligível?

- Compreendi.

- Supõe uma linha cortada em duas secções desiguais; corta de novo cada secção segundo a mesma proporção, a da espécie visível e a da inteligível; e segundo o grau de clareza ou de obscuridade relativas das coisas, obterás no mundo visível uma primeira secção, a das imagens. Chamo imagens, em primeiro lugar, às sombras; de seguida, aos reflexos nas águas e aos que se formam na superfície dos corpos compactos, lisos e brilhantes, e tudo o mais do mesmo género, se me estás a entender.

- Sim, entendo.

- Supõe agora a outra secção, de que esta era imagem, a que nos compreende a nós, seres vivos, e a todas as plantas e espécie de objectos feitos pelo homem.

- Suponho.

- Acaso consentirias em admitir que o visível se divide no que é verdadeiro e no que não o é, e que a opinião está para o saber, como a imagem está para o modelo?

- Admito perfeitamente.

- Considera agora de que modo se deve cortar a secção do inteligível.

- Como?

- Assim: na primeira parte desta secção, a alma, servindo-se como se fossem imagens, dos objectos que então eram imitados, é forçada a investigar partindo de hipóteses, sem poder caminhar para o princípio, mas para a conclusão; ao passo que na outra secção, a alma parte da hipótese para o princípio absoluto e, sem fazer uso das imagens, como no caso precedente, faz o seu caminho só com o auxílio das ideias.

- Não compreendi bem o que acabaste de dizer.






- Tentemos de novo - disse - compreenderás melhor após o que vou dizer. Não ignoras, suponho, que aqueles que se ocupam da geometria, da aritmética e de outras ciências do mesmo género, admitem primeiro o par e o ímpar, as várias figuras, três espécies de ângulos e outras doutrinas aparentadas destas em cada ramo da ciência. Estas coisas tomam-nas por sabidas e, quando as usam como hipóteses, não acham que ainda tenham de prestar conta alguma disso, nem a si mesmos nem aos outros, tomando como garantido que são evidentes para todos. E, partindo daí, passando por todas as fases e tirando consequências, concluem a investigação que tinham começado.

- Sim, eu sei isso.

- Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e raciocinam sobre elas, sem contudo pensarem nelas, mas naquilo com que elas se assemelham. Por exemplo, é por causa do quadrado em si ou da diagonal em si que fazem os seus raciocínios, mas não daquela cuja imagem traçaram e, de igual modo, quanto às outras figuras. Todas estas figuras que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se delas como se fossem imagens, procurando ver aquelas realidades que não podem ser vistas senão pelo pensamento.

- O que afirmas é verdade.

- Eis o que eu entendia pela classe do inteligível, em que a alma ao procurar investigá-la, é compelida a servir-se de hipóteses, sem ir ao princípio, por ser incapaz de se elevar acima das hipóteses, utilizando como imagens os próprios objectos e produziam as sombras da secção inferior, objectos que consideravam mais claros que as sombras e que apreciavam como tais.

- Compreendo - disse - que te referes ao que se passa na geometria e ciências afins.

- Aprende agora o que entendo pela outra secção dos inteligíveis, aquela que o próprio raciocínio atinge pelo poder da dialéctica, fazendo das suas hipóteses não princípios, mas simples hipóteses, que são como que degraus e pontos de apoio para se elevar ao princípio de tudo, que não admite hipóteses. Atingido este princípio, desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem até chegar à conclusão, sem fazer uso algum de qualquer dado sensível, mas passando de uma ideia a outra, para terminar em ideia.

- Compreendo, mas não o suficiente, pois não é tarefa leve essa de que falas. Parece-me que queres determinar que o conhecimento do Ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica é mais claro que o que adquirimos pelas chamadas ciências, cujas hipóteses são assumidas como princípios. Sem dúvida que os que as estudam são forçados a fazê-lo pelo pensamento e não pelos sentidos; porque as examinam sem remontar ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses objectos, se bem que eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas ao modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas do mesmo género, entendimento e não inteligência, porque a dianóia é algo de intermédio entre a opinião e a inteligência.

Cariátides

- Aprendestes bem a questão - observei. E agora, aplica às nossas quatro secções, as quatro operações da alma: à mais elevada, a inteligência, à segunda, o entendimento; atribui a crença à terceira e à última a imaginação, e coloca-as por ordem, partindo da ideia de que, quanto mais os seus objectos participam da verdade, tanto mais participam da claridade.

- Compreendo - disse ele -; concordo e vou ordená-las como propões (in Politeia, Guimarães Editores, 2005, 506c-511e).


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