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domingo, 20 de janeiro de 2019

Na Assembleia Nacional também se combate

Escrito por Ernesto Palma







1. Organograma dos deputados 


Na Assembleia Nacional, os 144 deputados que representam os 10 milhões de deputantes que todos nós passamos por ser, agrupam-se em diversas ou conversas correntes de opinião que não chegam a ser ideologias nem a constituir partidos, mas que dia após dia, um tanto graças a discursos, intervenções e votos que vão fazendo e distribuindo naquela Assembleia, outro tanto por virtude da opinião que, cá fora, se vai formando das opiniões dos deputados, vai adquirindo a forma de quadros de um organograma.

Agrupam-se, num dos quadros, aqueles deputados que, nas conversas cá de fora, se designam por ultras. Acontece, porém, que salvo uma única excepção, ninguém lá dentro como cá fora, se deixa designar por ultra. A excepção que, por única, é corajosa e franca, é o deputado Casal Ribeiro. Foi ele quem, referindo-se à enigmática SEDES, afirmou que nada se sabe desse agrupamento que se diz puramente economista mas se regulamenta segundo determinações políticas e, aprovado pelo Governo, constitui um factor de confusão. Ora ele, pelo contrário, diz bem alto aquilo que é, e, portanto, quando de si se trata todos podem saber o que há a contar. As duas observações são lógicas e verdadeiras.

No lado contrário ao dos ultras, ninguém se situa ou afirma situar-se. Na Assembleia, claro. Porque, cá fora, assim como ninguém é ultra, assim toda a gente é contra os ultras. E resta, então, a populosa gama dos medianeiros, dos do centro, topografia paradoxal pois, definindo-se o centro e o meio como o que fica entre dois extremos, ao extremismo que lá está não corresponde senão o vazio no lugar onde deveria estar o extremismo contrário.

Nesta gama, pois, de paradoxais medianeiros, procura-se distinguir sucessivamente:

1. Os que se mantêm fiéis a um salazarismo que entendem dever continuar sem evoluir são muito poucos, esses mesmos, com o receio de poderem ser confundidos com os ultras.

2. Os que, segundo a fórmula do Chefe do Governo, são por um salazarismo que continua mas evolui. Constituem o modo oficial de ser marcelista e o seu principal representante deveria ser, logicamente, o deputado que foi designado, pelo Governo, como líder da Assembleia Nacional, Franco Nogueira. A imagem que, entretanto, se formou de Franco Nogueira, leva a alargar a este segundo quadro do organograma o receio da confusão com os ultras.

3. Os que, no outro balanceamento do ponteiro marcelista, querem a evolução descomprometida da continuação. Neste quadro figuram os deputados que representam o predomínio do economismo sobre a política, como Magalhães Mota. E foi nele que se salientou a personalidade mais firme desta legislatura, o deputado Camilo de Mendonça, campeão (sem ironia) do nordeste transmontano.

4. Os que, para lá da continuação que ignoram, e para lá da evolução que esquecem, são apresentados como reformistas e progressistas, que é a versão actual da famosa ordem e progresso do republicanismo positivista da belle époque. Entre eles se encontram as personalidades mais brilhantes, mais juvenis e joviais, mais abertas, como o médico Miller Guerra, o empresário-jornalista Francisco Balsemão e o católico post-concílio Sá Carneiro. Todos eles se fizeram já notar, não só entre as solenes bancadas da Assembleia como cá fora: Miller Guerra afirmou-se o campeão (também sem ironia) do reformismo universitário, propugnando o rejuvenescimento das universidades existentes e a criação de novíssimas universidades. Fê-lo num «aviso-prévio» muito discutido que, entre a discussão, permitiu uma bem meditada intervenção do deputado Aguiar e Silva e um veemente elogio da contestação estudantil do ISCEF e do professor daquele instituto, candidato a deputado pela CDE, Francisco de Moura. O empresário-jornalista Francisco Balsemão que vê, naturalmente, os jornais darem grande relevo às suas, embora apressadas e raras, intervenções na Assembleia. Deve registar-se que esta espécie de publicidade de que dispõe o deputado, não deixa de provocar certos ciúmes em seus colegas e pares. Quando, recentemente, a família Balsemão negociava a venda das suas acções do «Diário Popular», risonhamente se ironizava, entre as bancadas da Assembleia, que Francisco Balsemão, deixava de vender jornais para vender o jornal. E é muito curioso lembrar que quando foi pela primeira vez eleito Governador da Califórnia, o actor Ronald Reagan, F. Balsemão publicava no seu jornal um indignado artigo insurgindo-se contra um processo eleitoral que permite escolher para Chefe de um Estado um homem que, por ser actor, dispõe de uma máquina publicitária montada. Sempre, na verdade, os políticos invejaram os actores. E vice-versa.

5. À esquerda deste último quadro, o organograma está vago: ou a preencher um dia ou definitivamente vazio.










2. Vamos escolher um caso concreto 


A melhor maneira, a mais segura e científica, de apreciar a capacidade do organograma, é observar o seu funcionamento através de exemplo concreto. O exemplo foi-nos recentemente oferecido: a discussão da Lei do Cinema. Não o deixemos fugir e observemos como as coisas se passaram.

Já no n.º 2 de A ILHA pudémos informar os nossos leitores de que o que estava em causa na Lei do Cinema, era:

a) A regulamentação legal de uma actividade que, há cerca de 12 anos, se encontrava sem legislação própria.

b) A capacidade de resistência do país e das suas instituições aos grupos de pressão, com origem estrangeira e natureza económica, que conseguiram manter, durante esses 12 anos, legalmente irregulamentada uma actividade de ampla e profunda influência sobre as populações.

c) A medida do interesse das instituições e do país – representado na Assembleia Nacional – por uma actividade que, além de económica, constitui um poderoso veículo de formação mental das populações. Suspensa a anterior legislação por volta de 1958, logo se constituiu uma Comissão para estudar o projecto de uma nova lei que só com o actual Governo, ficou concluído e passou, das mãos do Governo, para a Câmara Corporativa. Como se sabe, os Projectos-Lei, antes de serem discutidos na Assembleia Nacional, são apreciados pela Câmara Corporativa que sobre eles dá o respectivo parecer que pode ir até à proposta de um texto completamente remodelado. Foi o que aconteceu a este Projecto-Lei do Cinema. O texto que o Governo apresentou, tinha os seguintes núcleos estruturais:

1. Criação de um Instituto Português do Cinema dispondo dos meios para promover a produção cinematográfica.

2. Regularização oficial do preço dos bilhetes.

3. Condicionamento da instalação de empresas cinematográficas.

4. Modos de promover a produção cinematográfica.


3. O caso concreto também serve para conhecermos a Câmara Corporativa 


O parecer da Câmara Corporativa foi espantosamente exemplificativo dos extremos até onde pode chegar a sua proposta de alteração do projecto governamental de uma lei. A Câmara Corporativa é constituída por representantes das actividades empresariais e profissionais, agremiadas e sindicalizadas, e os seus pareceres são, como na Assembleia Nacional, estudados e preparados por comissões cujos membros são escolhidos entre os representantes daquelas actividades abrangidas pelo assunto de que se ocupa o parecer. No caso da lei do cinema, destruída e inexistente como está, há mais de 12 anos, toda a produção nacional, seria inevitável que só se pudesse representar na Câmara Corporativa o que de cinematográfico existe em Portugal, isto é, a distribuição e exibição de filmes estrangeiros. O parecer da Câmara Corporativa iria pois, inexoravelmente, traduzir a defesa dos interesses desse sector ou desse predomínio, opondo-se a todas as medidas que o Governo tinha preparado no Projecto-Lei para promover uma produção nacional. Os extremos a que o parecer da Câmara Coporativa chegou, ultrapassaram, todavia, todas as previsões. Este facto mais significativa torna a observação do procedimento da Assembleia Nacional ao deparar perante si dois textos, um do Governo outro da Câmara Corporativa, que eram essencialmente contraditórios. Consideremos o parecer da Câmara quanto a núcleos fulcrais do Projecto-Lei que há pouco resumimos:

1. Admitindo a criação do Instituto Português do Cinema, a Câmara Corporativa propunha:

a) Que não ficasse ele integrado em nenhum organismo do Estado.

b) Que o seu Presidente fosse o Presidente dos Grémios do Cinema que, dada a situação actual, é o representante dos valores económicos e culturais estrangeiros.

2. Em nome «da livre iniciativa que deve existir nas actividades cinematográficas», a Câmara Corporativa propunha que os preços dos bilhetes nada tivessem a ver com qualquer espécie de condicionalismo social.

3. Sobre o condicionamento das empresas cinematográficas, a C. C. propunha:

a) Que se não autorizasse a instalação de novas salas de exibição nas localidades onde já exista alguma.

b) Que se não autorizasse a formação de novas empresas distribuidoras.

c) Que se sujeitasse a autorização prévia a instalação de novas empresas de estúdios e laboratórios.



4. Os modos de promover a produção cinematográfica foram objecto do mais subtil tratamento pela Câmara Corporativa. Analisemos alguns pontos:

a) A «continuação» é o velho cavalo de batalha em todos os países invadidos e esmagados pela importação cinematográfica estrangeira. O cinema é uma arte internacional e raros países têm possibilidades de, sem condicionarem a exibição de filmes importados, competirem com 3 ou 4 grandes indústrias americanas e europeias. A forma mais eficaz e justa de estabelecer esse condicionamento é a «contingentação». Consiste ela em determinar o número de filmes nacionais que cada sala tem a obrigação de exibir por um número fixado de filmes estrangeiros. No Brasil, por exemplo, a contingentação é de 1 filme nacional para 4 estrangeiros; na Espanha, de 1 para 3.

O estabelecimento da contingentação imediatamente tem suscitado o aparecimento e desenvolvimento do cinema nacional. No Brasil, em quatro anos, a indústria saltou de uma produção irrisória para a produção de 120 filmes em 1970.

Pois bem: a contingentação estava prevista no Projecto-Lei apresentado pelo governo e foi ela aprovada pela Assembleia Nacional. Mas, no caminho do governo para a Assembleia, a Câmara Corporativa repudiou-a e, em seu lugar, propôs... o quê? A proibição de se criarem novas empresas distribuidoras (Base XXV do Projecto-Lei)!!!

b) Por contingentação de uns tantos filmes estrangeiros por uns tantos filmes nacionais, o leitor só pode entender que os números são o que são, e que um filme é um filme. Ingénuo leitor! A Câmara Corporativa pretendeu insinuar (Base XXVI) que na contingentação se não deve distinguir entre curtas e longas metragens, donde resultaria, evidentemente, que um breve documentário nacional logo daria direito à exibição de algumas dezenas de longas metragens estrangeiras!


4. As principais figuras que entram em campo 


Logo que o parecer da Câmara Corporativa foi conhecido, o desânimo e a desesperança inundaram os meios interessados em ver dar, aos cidadãos portugueses, essa forma de expressão que o cinema é. E deve notar-se que esses meios não são apenas os dos humildes artistas e modestos profissionais, mas também os de certas autoridades oficiais, como aquelas, por exemplo, que estudaram e elaboraram o Projecto-Lei que o parecer da Câmara Corporativa ameaçava tornar ineficaz e nulo.

Mas ao parecer da Câmara Corporativa sucedia-se a discussão na Assembleia Nacional. Previamente, uma comissão de parlamentares – a Comissão de Educação – estudaria o Projecto-Lei e o corporativo parecer. A Comissão é presidida por Veiga de Macedo, antigo subsecretário da Educação e Ministro das Corporações. É um homem de 53 anos, de cabelos precocemente brancos, um toque honesto de província no vestuário e na pronúncia e um respeito raro, talvez singular em políticos, pela cultura. Foi esse respeito que o levou a fazer, na tribuna parlamentar, o elogio de José Régio com uma citação de Álvaro Ribeiro, que o Presidente da Assembleia, Amaral Neto, não deixou passar sem uma irónica observação de estranheza. Quando membro do Governo, obteve a colaboração de escritores, cineastas e actores, sobretudo para a Campanha de Educação de Adultos. Iniciou assim, no Governo, o recurso intensivo aos instrumentos de grande publicidade e informação o que, nos corredores ministeriais, os velhos funcionários identificavam, a sorrir, com um desejo ostensivo de exibição que os seus sucessores vieram a ultrapassar largamente e sem justificação de estarem a fazer uma campanha popular.

Ao minucioso estudo que o deputado Veiga de Macedo fez da Lei do Cinema não terá sido estranha a saudade dessa antiga colaboração, do convívio que ela lhe deu e do reconhecimento daquilo que, brincando, se diz nos bastidores teatrais: que neste país só os actores e alguns políticos trabalham deveras. São também os artistas e os políticos as «classes» que atingem maior longevidade. Efeitos do trabalho, do contacto com as multidões, dos aplausos todos os dias? De qualquer modo, a Lei do Cinema subiu, bem estudada, à tribuna parlamentar. Na «discussão na generalidade» ainda algumas intervenções, ingénuas umas, demasiado «sábias» outras, interromperam o orador. Entre as ingénuas, contou-se a de um deputado que se pronunciou contra a dobragem dos filmes estrangeiros, por causa dos surdos [sic!]. Entre as demasiado «sábias», contou-se a de Francisco Balsemão que, na linha do liberalismo neocapitalista, reivindica-se, em termos pouco definidos, liberdade para o cinema. A ninguém damos autoridade para defender, mais do que a nós, a liberdade do cinema. Mas demasiado bem sabemos como é que os liberalistas de ontem e de hoje, utilizam isso a que chamam liberdade. O mesmo parecer da Câmara Corporativa tinha acabado de nos dar mais um exemplo: recusando, em nome da liberdade, a regulamentação oficial dos preços dos bilhetes, mas exigindo, sem apelar para a liberdade, o controle do cinema de amadores (Base XIII) e a proibição de novas empresas distribuidoras. A intervenção de Francisco Balsemão obteve grande relevo nos jornais dessa tarde.




















5. Como alinharam os deputados 


Ultrapassada a «discussão na generalidade», a Assembleia Nacional entrou na «discussão na especialidade», aquela em que se analisam as Bases da Lei, uma a uma, palavra a palavra, e se aprovam os textos definitivos pelo processo dos votos.

A discussão prolongou-se por 4 sessões. Dos 144 deputados, assistiram à 1.ª sessão 95, à 2.ª e 3.ª 104, à 4.ª 87. Segundo as informações que colhemos, é esta a frequência habitual às sessões da Assembleia. Todavia, como adiante veremos, os jornais de Lisboa afirmaram, com relevo, que a frequência foi, neste caso, muito diminuta.

Entre os 44 deputados que, em média, faltaram às sessões que analizamos, figuraram alguns dos mais representativos das correntes de opinião dominantes na Assembleia. O deputado Melo e Castro que dirigiu, como presidente executivo da União Nacional, a campanha eleitoral em que foram escolhidos todos os actuais deputados, esteve ausente a todas as sessões. Ausente também em todas as sessões, o empresário-jornalista Francisco Balsemão que, no entanto, subscreveu as propostas defendidas pelo deputado Magalhães Mota. Franco Nogueira, líder da Assembleia, faltou a 3 das 4 sessões. Miller Guerra, que intervém frequentemente em todas as questões de carácter cultural, faltou a 2 sessões. Camilo de Mendonça, Sá Carneiro, Henrique Tenreiro e Casal Ribeiro, faltaram a 1 sessão. Os principais representantes das diversas correntes de opinião, não dedicaram, pois, ao assunto um interesse pleno.

Todas as propostas apresentadas e justificadas por Veiga de Macedo foram aprovadas sem oposição. Dos 98 deputados que, em média, estiveram presentes, apenas dois deles, Magalhães Mota e Reboredo e Silva, se fizeram ouvir. O último, apenas para falar à margem do assunto em discussão. Disse discordar da designação de «Conselho Administrativo» que, na sessão anterior a que ele não assistira, fora aprovada para designar o escalão supremo do I. P. C. Os nossos leitores poderão encontrar no n.º 1 de A ILHA as razões que temos para aplaudir esta intervenção.

Magalhães Mota foi mais activo: interveio em 2 sessões, deu colaboração à Comissão presidida por Veiga de Macedo e apresentou duas propostas: uma referente à Base XXII que autoriza a dobragem de filmes e outra destinada a proibir a projecção de filmes publicitários. Ambas eram assinadas por ele, por F. Balsemão, por Sá Carneiro e pelo redactor do «Jornal da Madeira», Eleutério Aguiar. A segunda, sobre a proibição de filmes publicitários, teve de ser retirada da mesa pois existe e está em vigor – embora não se execute! – uma disposição legal que a determina. A primeira, que foi aprovada, liberta os distribuidores – exibidores (ou seja: os filmes estrangeiros) da obrigação da dobragem que só traria vantagens à indústria e à arte do cinema nacional. Tais vantagens seriam as seguintes:

a) Maior volume de trabalho para os nossos estúdios e laboratórios.

b) Maiores possibilidades de trabalho e apuramento de dicção para os nossos artistas.

c) Melhor possibilidade de apreciação para os espectadores: os filmes portugueses – que não são legendados – oferecem-se aos espectadores integralmente, enquanto os filmes estrangeiros – legendados – desviam ¾ do tempo de espectação para a leitura das legendas. O espectador é por isso um crítico atento quando vê um filme português e um crítico desviado quando vê – melhor, quando lê – um filme estrangeiro.


6. A Imprensa falseia o jogo 


Logo no início, a imprensa deu sinal de como ia considerar a discussão na Assembleia Nacional. Quando, como dissemos já, afirmou e deu relevo à afirmação de que a habitual assistência às sessões que se verificou era uma frequência diminuta. Daí deduziria o leitor de que os deputados se mostravam desinteressados do assunto, que, portanto, o assunto não devia interessar a ninguém. Assim se desviava a atenção da opinião pública a que as instituições e o governo não podem deixar de ser sensíveis.

Aliás, já anteriormente, o «Diário de Notícias», principal orgão da nossa imprensa (120 000 exemplares de tiragem, equivalente a 500 000 leitores) fizera a sua campanha discreta sobre a inoportunidade da Lei do Cinema, como os nossos leitores podem verificar pela ILHA, n.º 4.

Desde início, portanto, a Imprensa se colocou ao lado dos distribuidores-exibidores, isto é, ao lado do cinema estrangeiro, dos interesses criados, da colonização do país. Há excepções, é claro... mas tão débeis, quase inaudíveis...

O noticiário, depois, foi comprovando o inicial propósito. O problema da contingentação quase não foi noticiado e, no que foi, sem qualquer relevo. A maior «caixa» dada a toda a longa discussão parlamentar, coube à intervenção – significativa – de Francisco Balsemão. Quando, portanto, o deputado Miller Guerra veio, duas semanas mais tarde, alertar a opinião, a Assembleia e o Governo sobre o que se está a processar no mundo da Imprensa – a sua concentração nas mãos de... dois? um?... potentados económicos – a dependência dos potentados económicos já era patente no «tratamento» jornalístico da discussão parlamentar que escolhemos para observarmos como funciona a Assembleia Nacional. Contaram-nos, entretanto, que, em conversa nos Passos Perdidos, um jornalista teria falado a Veiga de Macedo na compra de jornais pelos potentados económicos, o que vai colocar a Imprensa nas mãos da plutocracia. «Vai colocar? – Teria respondido Veiga de Macedo. O que se está a passar é apenas uma mudança de mãos. E podemos até pôr a nossa esperança em que ela fique em melhores mãos».




7. As fendas na muralha 


A Assembleia Nacional aprovou, pois, a Lei do Cinema. Depois de aprovadas, as leis são regulamentadas; e depois executadas. Da execução e da regulamentação pode depender tudo. Se a lei – composta, como dizem os juristas, de letra e de espírito – permitir que pela letra se faça o que não condiz com o seu espírito, tudo se pode perder e ficar inútil o bom trabalho da Assembleia Nacional. Os «corvos da burocracia» são hábeis em descobrir e alargar as fendas da letra por onde atacam o espírito. Ora é preciso reconhecer que algumas fendas esta Lei do cinema deixou a descoberto. Limitemo-nos ao ponto crucial: a contingentação. Aí reside todo o segredo dos interesses criados onde a colonização campeia. Aí, portanto, se hão-de procurar as fendas.

A primeira ia sendo lá deixada por uma das duas propostas do deputado Magalhães Mota, também assinada por Francisco Balsemão e Sá Carneiro. Diria ela que os filmes nacionais a exibir obrigatoriamente não deveriam ter sido produzidos há mais de três anos. Veiga de Macedo aceitou tal proposta, mas acrescentando que tal limitação só se aplicaria quando não houvesse em exibição filmes estrangeiros também produzidos há mais de três anos. A fenda não ficou totalmente colmatada, mas já foi alguma coisa.

Outra fenda reside na Base XXV, aquela onde «se excluem do contingente dos filmes nacionais aqueles que o I. P. C. considere não apresentarem nível técnico e artístico bastante». Também aqui seria imprescindível um aditamento análogo ao que Veiga de Macedo juntou à proposta de M. Mota e que, confiamos, lhe virá a ser feito na regulamentação da Lei. Com efeito, a exclusão prevista destina-se a prevenir abusos industriais; mas só será justa se apenas se verificar quando não haja em exibição nenhum filme estrangeiro de nível técnico ou artístico inferior ao filme português cuja exclusão se considere.

Mas a mesma regulamentação poderá também deixar fendas a descoberto. E, então, tudo dependerá da execução. A Lei entrega a execução a um novo organismo, o Instituto Português do Cinema. Este instituto, e com essa mesma designação, foi proposto, há 13 anos, no jornal «57», em artigos largamente fudamentados, assinados por Orlando Vitorino, António Quadros e Afonso Botelho. A proposta foi, então, entusiasticamente defendida pelo jornal «O Século». Mas, durante 13 anos, não foi considerada nem pelo Governo, nem pelos organismos corporativos, nem pelas instituições do Estado. Reaparece, agora nesta Lei, embora diminuído das funções escolares, oficinais e estéticas que os seus propositores nele incluíam.

Do I. P. C., orgão executivo da Lei, dependerão, pois, as condições para a afirmação de um cinema português, isto é, as condições para que aos portugueses não seja vedado, como tem sido, o acesso à forma de expressão mais característica do nosso tempo. A Câmara Corporativa bem o teve em conta quando propôs que a sua presidência fosse entregue ao presidente dos Grémios do Cinema. A Assembleia Nacional também o teve em conta quando repudiou tal proposta. Foi a primeira fase da luta pelo comando.


8. Conclusão e fecho 


O leitor que termine esta leitura, terá de concluir que a Assembleia Nacional fez um bom trabalho. Dado, porém, que a chamada «discussão» parlamentar consistiu num longo monólogo de um único deputado, apenas cortado por duas brevíssimas interrupções de outro deputado, o leitor ver-se-á obrigado a também concluir que o bom trabalho foi realizado pela oratória de um só deputado, apoiado sem dúvida numa comissão, e pela aprovação taciturna dos demais 143 parlamentares. Temos, assim, que o deputado Veiga de Macedo estudou minuciosamente a Lei e revelou um profundo conhecimento da actividade cultural a que ela se refere; e temos, na taciturnidade da Assembleia, a manifesta compreensão e confiança de 143 deputados.

Que acontecerá, porém, quando outro assunto cultural seja apresentado aos parlamentares e o seu estudo não seja entregue a Veiga de Macedo?


Texto de Orlando Vitorino, in Jornal da Madeira, Funchal, 25 de Março de 1971, pp. 1-3 (suplemento "A Ilha", n.º 6). Assinado como Ernesto Palma.


1.ª representação em Portugal de Jacob e o Anjo, concretizada pela Companhia do Teatro Popular de Lisboa, a 22 de Maio de 1968, no Teatro da Estufa Fria, numa encenação de Orlando Vitorino, com cenários e figurinos de Pinto de Campos. Alguns intérpretes foram: Augusto de Figueiredo, Andrade e Silva, Ricardo Alberty, Madalena Sotto, Henrique Viana, Alves da Costa, Assis Pacheco…


quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Uma mensagem de ociosidade e abundância

Entrevista a Ernesto Palma





Torre de Belém



Quem teve, como nós, o privilégio de conhecer e de conviver, na mais pura amizade, com Ernesto Palma, sabe muito bem quão singular era a ironia com que repelia todo e qualquer absurdo mais directa ou indirectamente proveniente da letrada ignorância bem-falante e contente de si. Numa palavra, Ernesto Palma não perdoava. Contudo, ao repelir o absurdo, demonstrava igualmente por que o fazia, um pouco à semelhança do que já Platão, na Politeia, fizera ao demonstrar, numa ironia sem precedentes, o contra-senso do comunismo.

Em todo o caso, o que distinguia verdadeiramente a inteligência alegre e generosa de Ernesto Palma, era o modo, também único e singular, com que, na esteira de Hegel, sugeria que tudo é e não é ao mesmo tempo. Basta tão-só imaginar o caso da língua portuguesa como sendo o de uma língua já morta, pese embora falada por homens vivos, ou por homens e mulheres «que se amam, falam de amor entre si, numa língua que já não existe». Quer dizer: a língua portuguesa, sendo - já de facto - uma língua morta, conforme nos dão a entender os nossos governantes, os padres, os professores e os deputados, revela, no entanto, aquela inesperada virtude que melhor assiste aos escritores de génio quando confrontados com uma língua já puramente clássica.

Ora aí está: uma língua clássica, mas ainda assim potencialmente apta a inspirar o espírito de liberdade.

Miguel Bruno Duarte





Ernesto Palma oferece aos Portugueses uma mensagem de ociosidade e abundância (in Jornal da Madeira, Funchal, 11 de Fev. de 1971, pp. 1-3 - supl. "A Ilha").


O nome de Ernesto Palma apareceu pela primeira vez a assinar artigos sobre o nosso ambiente político e cultural publicados, em 1957, no jornal 57. Eram artigos de carácter irónico e, em certos casos, sarcástico. Ficaram famosos aqueles em que fez o elogio do tubarão e outro em forma de carta aberta dirigida aos deputados da nação. No primeiro, mostrava que o vilipêndio do tubarão, homem de muitos empregos e proventos fáceis, não passava de um testa-de-ferro de mais poderosos interesses que o seu e, portanto, de mais poderosos interesses escondidos e acobertados, precisamente, pelo vilipêndio do tubarão. No segundo, aconselhava os deputados da nação a aprenderem e cultivarem a língua portuguesa que utilizam nos seus discursos e tão mal tratam.

Falou-se depois em Ernesto Palma como líder político de um sector que lhe seria entregue pela oposição tradicional, concentrada então na revista «Seara Nova». Sobre as negociações que com ele estabeleceu aquela revista, representada por Câmara Reis, correram versões que, embora diversas, igualmente acentuavam o espírito irónico e a inteligência sarcástica de Ernesto Palma. Conta-se que, convidado por Câmara Reis a apresentar as condições para aceitar a liderança política que lhe ofereciam, terá ele imposto que a oposição, no mesmo dia em que assumisse o governo do país, decretaria: 1.º – a instituição do serviço militar obrigatório; 2.º – a proibição de pagar rendas de casa por habitação; 3.º – o reconhecimento da propriedade privada só até à medida em que a propriedade fosse susceptível de ser trabalhada e explorada pelo próprio, ou proprietário. Diz-se que Câmara Reis, ao ouvir estas condições, encerrou as negociações exclamando: «Irra! Você é muito mais socialista do que nós!»



Os fundadores da revista «Seara Nova» (da esq. para a dir.: de pé, Teixeira de Vasconcelos, Raul Proença e Câmara Reis; sentados, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro e Raul Brandão).



Que é o socialismo

Com Ernesto Palma à nossa frente, perguntamos-lhe:

– Você é socialista?

– O mais radical socialista desde que se trate de resolver os chamados problemas sociais, que são os problemas das carências sociais. Tais problemas são susceptíveis de solução imediata, não só a nível nacional como a nível internacional. A solução consiste, em termos económicos, em somar quanto temos, somar quantos somos e dividir um total pelo outro. Nada mais simples e imediato.

Mas de modo algum serei um socialista quando o socialismo, extrapolando-se, se apresenta: ou como o processo de complicar os problemas sociais até ao ponto de adiar indefinidamente a solução deles; ou como um sistema que, para lá disso que é negativo na organização social (que é afinal toda a existência em sociedade), se pretende alargar ao que há de afirmativo na existência humana, domínio onde estão em jogo valores não só muito mais importantes do que os sociais mas também insusceptíveis de a eles se reduzirem ou por eles serem condicionados.

– Seja a arte, por exemplo?

– Seja a arte, sim. É evidente que constitui uma pura estultícia pretender condicionar a arte às determinações, urgências e finalidades sociais. Os socialistas que o pretendem estão apenas a iludir a urgência e simplicidade com que os fins da sua doutrina se podem alcançar e a proceder como procedem os eternos tiranos da história.

O Marquês de Pombal, por exemplo, mandou compor alguns milhares de poemas para celebrar a inauguração da estátua de D. José. Como é inevitável que seja alguém que define o que mais importa socialmente, o nosso mais famoso déspota determinou que, ao menos para os poetas, fosse aquela inauguração. O que acontece assim com a arte, acontece com toda a cultura, todo o pensamento, modos de vida e, por fim, da própria vida e do próprio homem.

– É verdade que Você, Ernesto Palma, é um grande latifundiário alentejano?

– Fui. Em 1960, por herança de família, recebi uma grande herdade no Alentejo. Procedi a profundos melhoramentos e a muitas experiências e iniciativas agrícolas. Recorri aos empréstimos bancários. Em 1967, os bancos exigiram-me pagamentos que não estavam previstos e isso, acrescentado de um grande incêndio das culturas e instalações, levou-me à falência. As culturas não estavam seguradas porque eu não consigo compreender que a actividade seguradora esteja entregue a companhias particulares e não ao próprio estado.

– É, então, um homem, pobre?

– Você, desculpe-me o cinismo. Mas, no nosso país, não há falência que lance na pobreza um homem que alguma vez possuiu fortuna de 20 000 contos. Ora eu tive mais de 20 000 contos. Não posso, portanto, ser um homem pobre.

– Não precisa, então, de trabalhar para viver?

– Perdão: eu é que preciso de trabalhar para viver. E o meu trabalho é um verdadeiro trabalho, não um trabalho manual ou formal de escravo, de «empregado por conta de outrem», como dizem os juristas. Você não me vai dizer que já não há escravatura!

– Em que trabalha Você?

– Assunto secreto e privado, impróprio para entrevista.

É que esta entrevista estava sendo dada sob condições. Ernesto Palma é um homem difícil de encontrar e mais difícil de conhecer. Acedeu em dar-nos a entrevista, mas pôs condições. Uma foi essa: poder vetar perguntas. Outra foi sobre as fotografias.






Nós já não conhecemos boémios em Lisboa, já não vivemos aquela vida de boémia artística de que ainda falam alguns actores, alguns pintores, um ou outro escritor mais velho, um tanto restos do século XIX, outro tanto ambiente da cidade e de uma vida mais liberta do que a de hoje. Ainda convivemos com um Almada envelhecido, mas já não conhecemos Fernando Pessoa. É a imagem de um desses homens que Ernesto Palma nos lembra. Talvez, mais mentalmente do que fisicamente, a de um Fernando Pessoa. Mas um Fernando Pessoa mais prosaico, menos obsediado, mais sensual e pagão. Que se demora até tarde, à noite, nos derradeiros cafés de Lisboa e, depois deles fecharem, ainda percorre o Parque Mayer e vai, às vezes, cear ao restaurante do Mercado da Ribeira, às horas a que chegam as hortaliças. Aí o encontrámos uma madrugada, com o José Régio, o Orlando Vitorino, o Augusto de Figueiredo e o Andrade e Silva, quando andavam a ensaiar o «Jacob e o Anjo». Duvidamos, todavia, que Ernesto Palma componha poemas e os guarde numa arca, como Fernando Pessoa fazia. Se os compusesse, talvez se não tivesse chegado a entender bem como o vimos entender-se com José Régio, seu oposto físico e mental. Lembramo-nos de como José Régio o olhava e lhe falava: um pouco de lado, suspeitoso e suspicaz, como se não percebesse bem aquela independente generosidade que Ernesto Palma lhe dava à sua obra de poeta e, sobretudo, de dramaturgo. Ernesto Palma fala quase sempre a sorrir, e o que nos diz provoca-nos uma alegria inteligente. Os estúpidos consideram-no por isso mefistofélico e diabólico. Nós antes o diríamos um Apolo, um deus que deixa que suas musas cantem e sorri benévolo para os poetas que elas inspiram; apolíneo também no subitâneo fulgor com que raciocina, na surpreendente facilidade em conciliar opiniões e em extremar posições. Como se a razão, ou a lógica, tudo reduzissem ao princípio de identidade e ao princípio de contradição e, depois, como se a identidade e a contradição fossem a mesma coisa. Tudo é o mesmo e nada é o mesmo, mas tanto faz. Por exemplo:


Diálogo sobre a morte de Deus

– Em que mundo vivemos, Ernesto Palma? Num mundo já perdido ou num mundo já salvo?


– Só no extremo da perdição se atinge a salvação.

– Que prefere Você ser: um misantropo ou um anjo?

- Um misantropo, mas com resignação angélica.

- Amigo do homem, portanto?

– Se acaso houvesse amigos. Mas só há amor e ódio.

– A salvação vem dos deuses ou dos homens?

– A salvação está no homem.

– É portanto real?

– A salvação está naquilo que o homem hoje pensa ser irreal. E atingir-se-á quando o homem souber que esse irreal é o único real.

– Não entendo.

– Não é para entender. Quero dizer: não é para conjugar com aquilo que já se sabe.

– Você conhece como ninguém o pensamento de Fernando Pessoa. Qual o segredo?

– Um verso: «Nasce um deus, outros morrem...»

– Há sempre deuses?

– Deus nasce sempre, Deus morre sempre. Deus está sempre entre o Natal e a Paixão. E há sempre um momento, ou um instante, em que Deus está morto.

– Você atribui realidade ao que diz?

– O que digo está na própria, mais íntima realidade do homem. O homem perdido, que é aquilo a que chamamos o estúpido, esse é que acredita só na realidade de si próprio. É um proprietário. Para esse, ou nunca houve deuses ou, se os houve, morreram há muito para...

– Para?

– Para que o homem nasça, reine, domine, seja ele só no mundo. A esta doutrina se chama umas vezes ateísmo, outras humanismo.

– Aceita, então, como Nietzsche, que Deus morreu?

– Quem primeiro o disse não foi Nietzsche. Foi Hegel. E, antes de Hegel, disse-o a Igreja, todos os anos, pela Semana Santa. E também a arte, isto é, o teatro que é a arte universal. Todo o teatro começa no momento em que Deus morre.

– Se não é para dar lugar ao homem, para que morre Deus?

– Para nascer outro Deus, disse Fernando Pessoa. Para ressuscitar, diz o cristianismo.

– Não é para redimir ou salvar o homem?

– Cuidado! Convém, sempre, dar a Deus o que é de Deus e ao homem o que é do homem.






– Onde está, então, a salvação do homem?

– Na Sexta-Feira da Paixão.

– Que é que está na Sexta-Feira da Paixão?

«A paixão absoluta, ou Sexta-Feira Santa especulativa deve restabelecer-se em toda a verdade... e o supremo todo pode e deve ressuscitar na mais tranquila liberdade».É assim, um diálogo com Ernesto Palma. Todo travado a rir. Sempre contraditório, identificante e enigmático. O assunto deste que transcrevemos é dos mais raros e difíceis, exige dialogantes especializados. Hesitámos até em publicá-lo para leitores que ignoramos quem sejam.

Mais comum, são conversas como esta:


A grande miragem

– Dizem que Você tem um plano para salvar Portugal. É verdade?


– Longe disso. O que tenho é um plano para dar aos portugueses a felicidade que eles procuram.

– Qual é a felicidade que os portugueses procuram?

– Pois não o vê todos os dias escrito nos jornais, dito e prometido pelos governantes, desejado por toda a gente, nas ruas e nas casas? Não é a propriedade económica o que todos eles querem? Não é sobre isso que se fundam todas as doutrinas, todos os sistemas de governo, todas as promessas de gregos e troianos, todos os agrupamentos e todas as disputas?

– Qual, então, o seu plano?

– Num primeiro passo, estabelecer-se um acordo quanto à autonomia das províncias ultramarinas (o que, aliás, já começou a ser esboçado pelo actual governo no plano da administração). Orientar-se-ia tal acordo no sentido de conseguir o financiamento ou, melhor, a execução de uma série de trabalhos públicos que constituiriam uma poderosa infra-estrutura ou rede turística: auto-estradas, estradas à beira-mar, hotéis de toda a espécie, casinos, parques, etc., espalhados por todo o país.

– É mais ou menos o que se está a fazer.

Sim, mas num ritmo que não tem a aceleração necessária a resultados imediatos. O meu plano supõe que o referido acordo crie possibilidades de uma súbita e total construção dessas infra-estruturas.

– A partir delas...?

– Dividir-se-ia o país em algumas dezenas de estados, com dimensões análogas às de Andorra ou do Mónaco. Esses estados teriam as mais diversas constituições jurídicas: monarquias, principados, cidades-livres, repúblicas e até um sultanato no Algarve. O Porto seria uma república. Lisboa uma cidade-livre. Outra república far-se-ia em Sines, na Figueira da Foz ou em Aveiro, ampliadas as cidades para habitação daquele milhão de portugueses brancos que viriam do Ultramar. Em Coimbra, estabelecer-se-ia um regime colegial e sacerdotal. Em Cascais, Sintra, Sesimbra, Vila Nova de Mil Fontes, ilhas da Madeira e Açores, criar-se-iam principados. Esta organização político-jurídica daria ao país uma multiplicidade de instituições, cerimónias, solenidades, uma tal variedade da chamada «religião do estado» que não teria rival para a atracção dos viajantes que se instalariam nos milhares de hotéis que possuiríamos e que todos os dias podiam ter sensações raras e novas, dada a multiplicação e variação de espectáculos análogos ao render da guarda em Buckingham, ao discurso da coroa no parlamento holandês, ao coroamento da rainha, ao enterro de De Gaulle, ao julgamento de políticos rebeldes, à condenação de anarquistas, etc. Com o tempo, formar-se-ia uma mitologia romântica representada em monumentos como a Torre de Londres, a estátua da Liberdade, o Kremlin.



Nelson Rockefeller e Robert Kennedy



Haveria, depois, o filão inesgotável dos matrimónios das nossas centenas de príncipes, seus filhos e filhas, com os milionários, os filhos e as filhas dos milionários norte-americanos. É fácil conjecturar que as dinastias como as dos Kennedys e Rockefellers viriam a ter laços e, por fim, a sede nos nossos principados e reinos. As nossas repúblicas, por sua vez, suscitariam, o apoio bolchevista e maoísta. Tudo isto canalizaria para os portugueses a maior parte dos investimentos financeiros das grandes potências industriais. Não acha que é a própria evidência?

– Assim me parece. Todavia?...

– E não acha que o nosso país, com a sua diversidade de paisagens e climas, sua romântica tradição, a vizinhança forte da Espanha, suas ilhas atlânticas, oferece, para a execução deste plano, condições excepcionais, únicas?

– Também me parece... Creio, no entanto, que há nesse plano qualquer coisa de irreal, de utópico...

– Como assim? Pois não são reais, não existem realmente principados como os do Mónaco, de Andorra, de Liechtenstein? Não casam os seus príncipes com milionárias norte-americanas? Não vivem os seus habitantes em grande prosperidade que lhes vem só disso de pertencerem a principados?

– Sim.

– Pois não existe a rainha de Inglaterra? Pois não é real, até em países de grande progresso socialista como a Dinamarca, a Noruega, a Holanda, a inevitável Suécia, a existência de monarquias, reis, dinastias com todo o cortejo de príncipes, princesas tão simples como as costureiras e casamentos de uns com os outros?

– Devo reconhecer...

– Todavia, tudo isso é ainda feito com muito pouco talento e com paupérrima imaginação. Suecos, ingleses e os mais que citámos, tomam-se demasiado a sério e resultam, evidentemente, ridículos. Os suecos, por exemplo: têm um rei com coroa e tudo e apresentam-se campeões do socialismo e do progressismo. Um socialismo com um rei em cima.

O meu plano nada tem de utópico. É perfeitamente realizável e está perfeitamente de acordo com a opinião e a ideologia dominante. Constitui apenas a aplicação técnica e científica dessa ideologia. Se do que se trata é de tudo fazer depender dos meios para alcançar a prosperidade económica, desafio quem quer que seja a refutar este plano que apresento ou a apresentar outro mais eficaz. As resistências que lhes farão são apenas o reflexo dos preconceitos dominantes. Liberta de preconceitos, ela está toda aplicada no meu plano. Posso continuar a expô-lo?

– Sou todo ouvidos.

– Muito bem. Um aspecto essencial é o problema da língua. O português é uma língua de povos pobres: o brasileiro, o angolano, o moçambicano, nós mesmos. Ora o meu plano destina-se a atrair riqueza, a atrair os homens de povos ricos que falam línguas como o russo, o alemão e, sobretudo, o inglês. Claro que não podemos trocar a língua que falamos. Como vencer a dificuldade?

Uma pausa para acender um cigarro, beber mais um café.



Ponte Sisto, construída em 1479, e que conduz ao centro da Cidade Eterna (Roma).



– A solução está em decretar que o português é uma língua morta. Como o grego. Como o latim. Você já imaginou a sedução que isso representará? O português, língua morta! Homens vivos, homens que todos os dias nascem, e falam uma língua morta. Homens e mulheres que se amam, falam de amor entre si, numa língua que já não existe. Imagine o que seria passearmos nas ruas de Roma e ouvirmos à nossa volta falar latim. Será isso o que acontecerá nas ruas de Lisboa, do Porto, de Évora, do Funchal. O chauffer de táxi que responde ao turista numa língua que ele já sabe que está morta. E os criados de restaurante, os gerentes dos hotéis, os croupiers dos casinos, os caixas dos bancos... Não será admirável? Um povo, todo um povo de clássicos! Percorrermos uma estrada do Alentejo, numa tarde quente, o Sol a cair no horizonte vermelho, e as ceifeiras ao longe a cantar numa língua clássica. Nos largos das aldeias, os rapazes gritam palavrões em clássico! Eis o que resultará de um simples decreto.

Esta última palavra foi, de repente, uma chave. Quase gritámos:

– Espere! Nada disso é real nem possível. Uma língua não se pode fazer morta ou clássica só pela força de um decreto, só pelo capricho de um legislador. As línguas não dependem do arbítrio de um homem!

– Quem falou aqui em arbítrio dos homens, em capricho dos legisladores? O português será decretado língua morta porque é, efectivamente, uma língua morta. Ouça bem. Porque já é efectivamente uma língua morta! Você nunca ouviu os discursos dos nossos governantes, os sermões dos padres no púlpito, os discursos dos deputados que pesam sobre a ideologia adoptados no parlamento? Sabem eles, porventura, falar? Sabem eles a língua que falam? Você não lê todos os dias os jornais? Não houve todos os dias a rádio e a televisão? Não escuta os professores nas cátedras? Sabem eles falar? Sabem eles a língua que falam? Você já leu os romances dos nossos romancistas, os versos dos nossos poetas, os livros dos nossos escritores? Sabem eles escrever? Sabem eles a língua que escrevem? Responda! Ah! Meu amigo! O português é efectivamente uma língua morta. E no entanto é a língua que o nosso povo, que nós todos continuamos a falar.

– Perdão... Deixe-me pensar. Será verdade tudo o que diz. Mas deixe-me pensar. O facto de não se saber a língua que se fala, não significa que ela esteja morta. Acontece o mesmo a todas línguas da África, por exemplo. E isso não significa que estejam mortas. Significa apenas que ainda não tiveram os seus escritores, os seus oradores, os seus sábios...

– Ora aí está! É que o português já teve os seus escritores, os seus oradores, os seus sábios. O português foi a primeira língua culta da Europa medieval. Já teve uma literatura, uma poesia, uma retórica. E já não a tem. Ora aí está! Aí está porque é que o português é uma língua morta, uma língua de clássicos.

– Mas Você tem de admitir a possibilidade de surgir um orador, um escritor... Você mesmo, há pouco, reconheceu que o Fernando Pessoa, quase nosso contemporâneo... ou o Álvaro Ribeiro, o Orlando Vitorino, nossos conterrâneos, são escritores, sabem a língua que falam e escrevem.

– Admitamos... Mas essa raríssima hipótese também está prevista. E para maior dignidade desses que porventura surjam. São escritores clássicos, oradores clássicos. Serão, simplesmente, clássicos. Como Cícero, como Horácio. Veja bem: clássicos e no entanto vivos!

Que responder? Como pensar? Como aguentar este penetrante olhar apolíneo e este mefistofélico sorriso?

– Você acredita que, uma vez em execução, o seu plano daria os resultados que anuncia?

– Meu caro amigo, levei a minúcia ao ponto da fazer as contas. Basta dizer-lhe os totais. Sabe de quanto viria a ser, dentro de previsões modestas, o saldo positivo do orçamento nacional? 100 milhões de contos? Cem milhões! O que daria a cada português, homem ou mulher,, velho ou criança, a bonita soma de mil contos anuais. E sem fazerem nada.

– Sem fazerem nada?

– Pois que teriam eles a fazer? Os portugueses serão, em conjunto, os proprietários do país, que será explorado como uma sociedade anónima. A cada um dos portugueses cada uma das quotas. É uma das maneiras de realizar a justiça distributiva: tanto de rendimento nacional, tanto a cada português. Duas contas de somar e uma de dividir. Mais nada. E para que tudo isto não seja realizável e desejável, para que tudo isto seja fictício e utópico, então será preciso acabar com o predomínio absoluto e exclusivo de tudo subordinar às finalidades da prosperidade económica.

Que horas seriam? Ainda o cair da noite? Já madrugada? Onde foi que Ernesto Palma me trouxe? Onde tenho a cabeça? Teríamos bebido? A voz pende-se-me, as palavras agarram-se-me à língua:

– Uma coisa só... só uma pergunta. Para que vai ser isso do sultanato no Algarve?

Senti-lhe a mão a agarrar-me o braço, a puxar-me. Senti-me cair para ele. E com a boca junto à minha orelha, num murmúrio cá dentro ribombante:


– Para que havia de ser, jornalista? Para haver moralidade. Não sabes que os sultões são polígamos? Não vês essa gente a andar para aí como anda? Para que havia de ser, jornalista? Para terem juízo!



Sherezade, a concubina que, na tradição persa, acaba por evitar a sua morte ao seduzir e cativar, ao fim de mil e uma noites, o sultão Shahriar que matava ao amanhecer todas as mulheres que se lhe juntavam no leito. O expediente estava no interminável conto que Sherezade usava para encantar o denominado sultão.



Alguns estados e suas constituições da federação proposta por Ernesto Palma


Bragança - República Corporativa do Nordeste
Caminha - Principado
Braga – República Teocrática de Governo Regional
Porto – República Trabalhista do Norte
Aveiro – Estado Autónomo associado à República Trabalhista
Coimbra – Agremiação de Repúblicas Colegiais
Guarda – Monarquia Agro-Pastoril
Leiria – Principado de regime matriarcal
Tomar – Principado
Sintra – Principado
Cascais – Principado
Lisboa – Cidade Livre
Barreiro – República Socialista
Sesimbra – Principado de regime matriarcal
Setúbal – Porto franco
Évora – Monarquia Agrária
Beja – Monarquia Agrária
Sines – Cidade Livre e Porto Franco
Ilhas da Madeira e Açores – Principados
Algarve – Sultanato
Caparica – República Anarquista
Santarém – Sede do Governo federal



terça-feira, 29 de março de 2011

A inflação de Fernando Pessoa

Escrito por Ernesto Palma








A "descoberta" de Fernando Pessoa tornou-se num culto e tem os seus sacerdotes. Vamos lá contribuir também para a inflação de Pessoa


Quando, no início dos anos quarenta... Não, com este estilo não há no jornal espaço que chegue. O que aconteceu foi que, naqueles tempos, Fernando Pessoa fora "descoberto" por Gaspar Simões, que lhe iniciou as "obras completas", por Álvaro Ribeiro, que lhe publicou os textos de prosa filosófica; por Casais Monteiro, que lhe reuniu e prefaciou uma antologia...

Este último escreveu nesse prefácio, com certo intuito de escândalo, o que hoje se afigura quase académico. Mais ou menos o seguinte: "Se dermos à história da poesia portuguesa a imagem de uma cordilheira, suas mais altas montanhas serão Camões, Bocage, Antero, Pascoaes, Pessoa e Régio".

Naqueles tempos, lembrava-se na tertúlia da "filosofia portuguesa" que Leonardo Coimbra manifestava uma desdenhosa indiferença para com as pretensões e veleidades filosóficas dos textos que F. Pessoa publicava na Águia e em revistas de Lisboa, o que parece ter magoado silenciosamente o poeta. Lembrava-se também que Pascoaes, tão admirado e exaltado por Pessoa, louvava nele a inteligência crítica mas nunca o espírito poético. E José Régio... Quando andava em ensaios o "Jacob e o Anjo", citei-lhe eu, em conversa do Parque Mayer, aquilo de "todos nós embalamos ao colo um filho morto". Régio deu um salto, fitou-me em riste e exclamou: "Aí está o único verso que Pessoa escreveu!"

Certo é que a "descoberta" e publicação das obras de Pessoa deslumbrou as gerações. O deslumbramento prolonga-se hoje numa espécie de culto que tem os seus sacerdotes - Gaspar Simões, Álvaro Ribeiro, António Quadros, António Telmo, talvez J. A. Seabra, talvez Jorge de Sena, talvez Eduardo Lourenço - e tem os seus vendilhões que o Estado abastece com a exclusividade do acesso ao famoso espólio: 26 000 textos inéditos.


O culto é tão avassalador que não permite o mínimo assomo de reflexão sobre a obra de Pessoa, nem sequer a simples lembrança daquelas atitudes de homens tão autorizados, responsáveis e sábios como Leonardo, Pascoaes e Régio.

Não há dúvida de que sempre que se levanta um templo a um homem é preciso esperar a ruína do templo para se conhecer o homem.

Aquilo de Leonardo, Pascoaes e Régio - a que poderíamos juntar uns tantos outros, talvez menos autorizados de talento, como Almada - guardarem suas distâncias em relação a F. Pessoa, é ou não é para ter em conta?

Aquilo de Régio só encontrar, em toda a volumosa obra do poeta, um único verso, é coisa de verdade? Que outro verso procurar, para mostrarmos que não?

Vamos direito à obra-prima, a Ode Marítima. Lemos, vamos lendo, o desespero apodera-se de nós. Linha a linha, tudo é efectivamente prosaico e com muitos ressaibos de românticas leituras, como se o esquema emergisse, luminoso, das nocturnas alucinações de Coleridge. Arrebata-nos, sem dúvida, mas não está feito por dentro, não tem versos. Será possível haver o poema e não haver os versos, como na velha anedota de Terêncio?

Passemos ao impacto, sempre perturbador, de "O Guardador de Rebanhos": "... tive um sonho como uma fotografia..." Claro que se não trata de um verso e o que nele se significa, e resume todo o sentido do poema, é ainda menos poético do que as palavras em que está dito. Perante o cadáver real de António, ali presente nos seus braços, Cleópatra sonha com "um imperador que também se chama António", isto no que é, talvez, o mais belo poema de Shakespeare que Pessoa tanto queria para modelo. Transitar da realidade ao sonho é, sim, sinal de poesia. Mas o contrário? E, para mais, não à realidade mas à fotografia, aos "fotógrafos" como Almada dizia de certos pintores realistas e abstractos.



Elisabeth Taylor, em Cleopatra (1963). Ver aqui e aqui







Recorremos então aos poemas líricos, aos que são de Fernando Pessoa sem heterónimo. A este entre mais belos: "Onda que enrolada tornas Serena ao mar que te trouxe..." Se o lermos, relermos, tornarmos a ler, o que ficamos a ler tem carência de música e, sem ela, cai num ritmo precipitado. Trata-se do poema para uma canção. Passemos aos poemas de litúrgica solenidade. "Vem, ó noite antiquíssima e Idêntica..." É "coisa mental", alimentada de cultura. A "coisa mental", começa no superlativo que o não seria se o que se lhe seguisse não fosse atributo insuportável "Idêntica". Aqui, a posição de Régio dá o braço à de Pascoaes, poeta supremo? Também Pascoaes tem um poema à noite que começa assim: "Lá vem a noite..." Peço ao leitor que repare: onde Pessoa diz "Vem, ó noite" Pascoaes diz "Lá vem a noite". O primeiro é um sacerdote carregado de vestes recitando uma invocação de cujo conteúdo não tem o saber congénito. O segundo, despe-se de tudo, até do saber congénito que possui, e, desnudado, fala à noite como Apuleio à Lua.

Espantoso, desgraçado, nunca assaz louvado Fernando Pessoa que quis pôr tudo em coisa nenhuma e coisa nenhuma em tudo. Do lado de fora do templo sacrílego que os pobres diabos que deslumbrastes insuflam de um coro que te envergonhará enquanto não fizer ruir as paredes, saúda-te, este teu irmão menor.

"Falhaste em tudo", disseste, raivoso, a ti mesmo enquanto espreitavas que o Esteves saísse da tabacaria. Acham para aí graça que tenhas dito isso de ti porque acham que o disseste como se fosses um deles e porque acham que tu não falhaste em nada. Mas o que disseste é verdade: falhaste em tudo!

Quiseste ser poeta e só conseguiste fazer poemas sem versos, como logo o astuto do Régio viu. Quiseste ser filósofo e, meu Deus!, como te estendeste ao comprido a falar de "estéticas não-aristotélicas" quando o tempo dessas estéticas já passara há mais de um século e quando nada sabias de "estética aristotélica" que é, aliás uma poética; ou a falar do Hegel (o que deves ter feito, suspeito eu, por ocultas rivalidades com o Coleridge) e nem sequer sabias dele o que o pobre do Antero sabia, e era muito pouco, através das leituras do Vera e servia-lhe apenas para discursatas bêbedas nas "repúblicas" coimbrãs (o Álvaro Ribeiro, com a sua ingénua astúcia fingiu não perceber, mas ao Leonardo não escapaste).

Quiseste ser dramaturgo, e aí estão inacabadas, tão frustres que inacabadas, essas tentativas de um "terceiro Fausto" e essa anedota - ah! como ta invejo! - que engenhaste para "O Marinheiro" mas não tiveste talento para pôr em teatro nem em poesia. (Sabes? Não é com entrechos que se faz teatro. Vê lá o Shakespeare que nunca escreveu uma peça com entrecho que ele engenhasse). Quiseste escandalizar, não escandalizaste ninguém e acabaste por ter um culto desses a quem devias escandalizar. Quiseste intrigar com aquela história dos heterónimos, que te consolavam do falhanço teatral, mas não conseguiste, decerto (decerto, porque tinhas muito mais talento do que ele) o apuro dos heterónimos do teu contemporâneo espanhol, o António Machado.



Retrato de Fernando Pessoa, de Mestre Almada (1954).



Falhaste em tudo! Até nos amigos. O Pascoaes ria-se de ti, e tenho razões para suspeitar que se continua a rir de nós todos. O Régio, que não era para rir, ficava furibundo como um profeta. O Leonardo, foi o que se viu. O Almada pintou-te aquele retrato para se vingar. O Mário, foi-se embora. O Cortes Rodrigues, foi embora (Sabes que o encontrei, já velho apoiado a uma camponesa jovem, no lombo de um monte em São Miguel, a olhar, só a olhar, o mar e o sol, suspenso e estático, para depois perguntar sem desprender os olhos: "Tu entendes isto, Maria?" E a rapariga respondeu: "Entendo, sim, senhor". Tu nunca tiveste coisas destas e mal conheceste por interposta pessoa, Fernando, logo te punhas a sofrer ou, para aliviar, a escrever mais um poema sem versos).

Falhaste em tudo, sim. Não o disseste, só por superior displicência e para distinguires, igualando-te, da tua lavadeira e do Esteves. Falhaste mesmo.

Não foi por falta de génio que falhaste. Génio tinhas a mais. Falhaste porque também tinhas em ti um demónio malévolo. E o que ainda estou para saber é se o que nos deixaste foi do génio ou foi do demónio.

Um abraço, apesar de tudo, do Ernesto Palma (in Leonardo, Ano II, n. 5/6, 1989).


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

A mulher enquanto alimento do homem

Escrito por Ernesto Palma








«Emília – Os homens são só estômago, nós o seu alimento.
Quando famintos, comem-nos. Depois, saciados, vomitam-nos».

William Shakespeare («Otelo»).



Solene advertência:

Ernesto Palma autorizou-nos a publicar o texto, excerto de um longo Tratado de Culinária, a que deu o título de A Mulher enquanto Alimento do Homem, com a condição de o precedermos desta solene advertência: a de que este escrito nada tem a ver com sexo.

Por dois motivos impõe ele a advertência, um jocoso, outro estético. Um jocoso porque não poderá o autor suportar ver-se abordado por leitoras que, ou mais femininas e iludidas com o que vai no mundo, lhe solicitem receitas culinárias em que se querem servir ao homem, ou, mais feministas e enganadas, o queiram militantemente agredir. E se Ernesto Palma não quer servir de pasto à risota estúpida dos homens ignorantes e grosseiros, também tem a convicção de que o seu escrito, mais tarde o seu Tratado, não é coisa para mulheres lerem.

O motivo estético da advertência acaba por ser muito mais do que estético. Trata-se do seguinte:

Na alvorada do mundo, muitos milénios antes de Deus ter encarnado e se fazer homem, encarnou a Beleza fazendo-se mulher. E assim como Deus, ao fazer-se homem, disse aos homens: “Comei, que é o meu corpo”, assim a mulher em quem a Beleza encarnou disse, mas mais simplesmente: “Comei…”

Formou-se uma religião, uma liturgia, seus ritos, seus cultos e sua igreja, para receptáculo da comida que Deus fez de si. O que se formou para comer a mulher, ou a Beleza que se fez mulher para ser comida, não foi uma religião, foi a arte, toda a arte, que sem isso nunca teria existido.

Ernesto Palma é, como se sabe, um homem do teatro, não um homem de teatro: não é dramaturgo, nem actor, nem empresário, não escreve nem encena peças, mas fez do teatro o seu habitat desde que os desatres dos campos agrícolas onde nasceu o exilaram para a cidade. Aí assistiu, depois da falência agrícola, à falência do teatro cujos restos se acabaram por refugiar em revistas do Parque Mayer, em Lisboa. Ou à tarde, sentado num “café”, a uma mesa sobre a qual se espalham, em volta do livro que vai lendo, chávenas vazias, o maço de cigarros, os óculos que tira e põe, ou à noite, saindo e entrando pela porta da caixa dos teatros, espreitando num uma cena, noutro uma actriz, assistindo a ensaios sentado ao fundo da plateia, onde lhe vão pedir a opinião e os conselhos, actores velhos como ele ou coristas sem idade, coristas hoje designadas nos cartazes por “jovens artistas”, é no Parque que o pode encontrar quem o procura.


Parque Mayer


Ernesto Palma envelheceu? Não tanto. Cabelos grisalhos e pouco mais. Mas o bastante para já se felicitar por nunca ter casado, para já não falar às mulheres com falas de faminto. O leitor conhece-o e sabe como, de toda esta saturnificação, ele consegue colher flores difíceis. Foi da saturnificação que deparou dita no palco com a personagem de Shakespeare na epígrafe deste texto citada, foi dela que Ernesto Palma extraiu a flor de pureza e castidade que é o seu Tratado de Culinária, A Mulher enquanto Alimento do Homem.

Talvez o leitor que o conhece estranhe, no excerto que publicamos, a ironia sem truculência e o sarcasmo sem grotesco pelos quais se habituou a identificar os escritos de Ernesto Palma, os escritos de outrora. Talvez a diferença seja a de o tempo ter passado (outra citação poética: “O passado vivi-o, que fazer?…”). Dizemos que o leitor talvez estranhará. Mas para isso seria necessário supor que o leitor conhece os escritos de Ernesto Palma. Raros porém são eles, porque o autor do Tratado de Culinária é um homem sóbrio: no 57, as entrevistas na Ilha aqui e além pelos anos fora. Aquando da falência agrícola, nos meses mais duros ou até famintos, escreveu e publicou o seu único livro, A Orientação da Leitura, que é recomendado em sérias bibliografias e ainda se pode encontrar nos alfarrabistas.

A verdade é que Ernesto Palma não é um escritor, mas uma personalidade. A cultura portuguesa tem, aliás, mais personalidades que a fazem do que escritores ou pintores ou dramaturgos. Almada foi muito mais uma personalidade do que um pintor; Fernando Pessoa, mais uma personalidade do que um poeta. Nos melhores, ser uma personalidade é ser o que Emerson chamava “um homem representativo” e Tomas Carlyle um “herói”.

Contemporâneos dos que referimos, os pintores foram Eduardo Viana e António Soares, os poetas Teixeira de Pascoaes e José Régio. A ligação de Ernesto Palma à nossa cultura fez-se mediante o grupo da “filosofia portuguesa”.

Mas o que de mais solene tem a solene advertência à leitura do excerto de Ernesto Palma, é o que se diz agora e, podemos adiantar, está no cerne do seu
Tratado de Culinária. O Tratado de Culinária é, afinal, um Tratado de Estética. Vejamos.


A origem e o fim de toda a arte é, naturalmente, a beleza. Ora não há beleza em si ou, se houver, é inacessível ao homem, uma vez que o acesso à beleza só é possível pela sensação. A sensação é dos sentidos e os sentidos são cinco: o ouvido, a que especialmente se refere a poesia e a música e é tido em Aristóteles, pai de todos nós, como o mais importante dos sentidos; a vista, a que são referidas as artes plásticas e Almada naturalmente sobrevalorizou num livro admirável; e bem assim para os demais, até para o sexto-sentido aristotélico, para o bom-senso cartesiano e para o senso comum da vulgaridade. Ora a beleza ofusca cada sentido ou cada espécie de sensação e, ao tornar-se acessível, é a todos os sentidos que se dirige cumulativamente. A sua manifestação terá então de suscitar as sensações de todos os sentidos, e é o que ela alcança pela encarnação. A encarnação é a mulher e é como alimento do homem que abrange e reúne o conjunto de todos os sentidos. Porque só no alimento intervém e participam todas as sensações, entre si se completando e harmonizando.

Em resumo e repetindo: Não há beleza em si, beleza pura, isolada, inviolável e inacessível. Tudo o que é belo é sensível e sensual. De tudo o que é belo há sensação, não a sensação de um único sentido mas de todos os sentidos. Não só da vista, como entendem os pequenos pintores; não só a do ouvido, como julgam ridículos melómanos; nem só a do perfume, a do sabor e a do tacto. Para ser de todos os sentidos, a beleza encarnou na mulher. Para isso a mulher é para comer pois é no alimento que todos os sentidos se combinam.

Ao falar-nos assim, Ernesto Palma falava com a turbulência que lhe é própria, até com sarcasmos inúteis que não registamos. Diz-nos: “Todos Vocês andam entregues a um cristianismo que, afirmando a igualdade de todas as almas, decaiu até à mísera democracia da igualdade de todos os votos… Andam Vocês entregues a isso e não entendem que uma única coisa no mundo é igual para todos os homens: a beleza que encarna a mulher para alimento do homem? Não entendem que só a partir daí, da mulher enquanto alimento do homem, é possível a arte e é possível a “educação estética do género humano”, hoje nas mãos da mais atroz fealdade? Não entendem? Se Vocês não entenderem, quem é que há-de entender?”





A mulher enquanto alimento do homem


Serve-se em casaco de peles e ataviada de jóias. Depois polvilha-se de rosas e rega-se de vinho.


Das peles:

As peles destinam-se a acentuar, dando-lhe um relevo mais apetitoso, os volumes do corpo, suas alturas e suas funduras. Devem escolher-se a preceito e, na sua generalidade, o preceito é este: peles negras como as do astrakan para os corpos morenos de cabelos pretos com os quais ainda condizem melhor as peles cinzentas como as de marta; castanhas, como as do vison, da raposa e da lontra, para os corpos brancos de cabelos loiros. É imprescindível que as peles estejam cuidadas e brilhantes, não baças.


Das jóias:

O atavio das jóias destina-se a tornar luminosa a coloração do corpo da mulher. Como essa coloração é diferente em cada parte do corpo, convém que umas sejam as jóias para o rosto, outras para o pescoço, outras para os seios e outras para os braços. Deve evitar-se ataviar de jóias, como fazem os orientais, o ventre e as coxas, porque residindo aí o sacrário da mulher, devem comer-se em êxtase ou em delírio ou em loucura que só a limpidez da carne nua propicia e todo o atavio perturba. [Nota: Por influência dos vestuários desenhados para comércio, e também dos pintores modernos, generalizou-se a transferência para os joelhos e as pernas, do apetite das coxas, e do ventre que elas enquadram. Compreende-se assim que o dramaturgo Ionesco tenha escrito que “o que há de mais belo no mundo são as colunas dos templos e os joelhos das raparigas”. Se Ionesco não fosse um artista, teria acrescentado: “porque ambos conduzem ao sacrário”].

Nas peles brancas as jóias devem realçar a coloração rósea que elas sempre têm mas mais ou menos viva. As jóias mais próprias serão, então, as pérolas. Mas se a coloração rósea for muito ou demasiado viva, como nos corpos das mulheres de Bruges, convém substituir as pérolas por brilhantes. Esse o motivo de, em quase todas as mulheres, os seios se tornarem mais saborosos quando os mamilos são beijados ou aspirados juntamente com os brilhantes que as cobrem.


Nos corpos morenos não aparece, em geral, a coloração rósea e quando aparece é nos mamilos e na parte interior das coxas, Estas, já sabemos que se não devem ataviar de jóias. E para os mamilos como em todas as outras partes do corpo deve recorrer-se às pedras coloridas: a verde esmeralda, o negro topázio, o vermelho rubi.


Das rosas e do vinho:

Os melhores apreciadores, amantes sem pressa, regam a mulher de vinho depois de as terem polvilhado de rosas desfolhadas, pétalas de rosa.

Ao paladar… veremos que o paladar, no banquete da mulher, não reside apenas na boca mas espalha-se por todos os poros da pele tal como o “sexo” não está só no lugar ou orgão assim erradamente chamado mas em todos os lugares do corpo… ao paladar, dizíamos, de quem se banqueteia da mulher, o sabor oscila entre dois extremos: um que designaremos por aveludado, mais comum nas loiras, outro por sedoso, mais comum nas morenas. Entre esses dois extremos, o saber que há no sabor pode descobrir toda a espécie de variedades e combinações.

Ora as rosas são, como a pele da mulher, uma mais sedosas outras mais aveludadas. Devem pois ser escolhidas as sedosas para os corpos aveludados, as aveludadas para os corpos sedosos. Consegue-se deste modo uma maior, uma infinita variedade de combinações, dependendo, das doses, do condimento, do gosto de cada cozinheiro.

Além das que dissemos, ainda as rosas se destinam a complementar, levando-o a uma espécie de apoteose que é já glória da mulher, o condimento das jóias.

Quanto ao vinho, atende-se naturalmente, como em todos os banquetes, ao sabor e à cor. No banquete de mulher, o sabor tem de ser antigo, forte, engrossado com mel e a cor nunca branca porque, sobre a coloração do corpo da mulher, é neutra. Da cor tinta, tem o vinho infinitas variedades. Junta-se ela à das rosas, não só para as ajudar a contemplar o condimento das jóias, mas sobretudo – e isto é o que há de mais importante no banquete – para fluidificar todos os atavios e, com eles, a mesma carne da mulher que, nessa fluidez, se torna meiga, terna e tenra. A rega não deve espalhar-se igualmente por todo o corpo mas traçar nele sulcos sinuosos, nascidos no pescoço (quando a cabeça da mulher já estiver, sem forças, tombada para trás) ou nos mamilos. Devem esses sulcos confluir no sacrário mas correndo o mais devagar possível para o que cumpre à mulher – sempre o fará quando bem condimentada – arredondar, engrossar ou altear o ventre como se estivesse abrindo por dentro numa espécie de preparação ou desejo de ficar prenha.

Há quem, em vez de vinho e rosas, utilize cremes, óleos e outros produtos como claras de ovo, mas isso só denota gostos e hábitos de taberneiro.

Obs.: Entendem alguns, gente fina e culta dando-se ares, como a que vai aos concertos da Gulbenkian, que o condimento das rosas e do vinho provém do preceito do poeta oriental: “Bebei o vinho na estação das rosas…” Estamos longe de concordar com eles. Em primeiro lugar, porque os orientais não comem a mulher com erotismo e amor, formas de comer intransmissivelmente europeias. Em segundo lugar, porque o poeta acrescenta ao seu preceito: “que a estação das rosas vai acabar”, metáfora que significa que o poeta está velho. Ora a mulher, se não é banquete para adolescentes, também não é alimento para velhos (in Leonardo, Ano I, n.º 4, 1988, pp. 64-65).