Exemplifiquemos, examinando uma das facetas mais importantes da Campanha em curso: o ler e escrever que, evidentemente, está na base de qualquer programa de ensino. Uma campanha de instrução não se preocuparia, talvez, senão em ensinar a ler e a escrever, sem outras ideias acessórias. Nós julgamos que uma «Campanha de educação» deve antes de mais nada, compreender a distância e o caminho entre instruir e educar. Julgamos que esse caminho se revela amplamente no carácter distintivo destas três operações: ler, escrever e contar. O ensinar a contar é um acto de instrução pura porque os números são entidades abstractas e objectivas, com validez universal – mas não é um acto de educação precisamente porque os números, não possuindo conteúdo concreto, são indiferentes e passivos. Uma educação numerológica poderá vir mais tarde, em fase ulterior do ensino matemático, mas nunca em fase primária do ensino. Dois mais dois é sempre igual a quatro quaisquer que sejam os objectos em questão.
Em contrapartida, o ensinar a ler e a escrever é já, simultaneamente, acto de instrução e acto de educação. Acto de instrução, pois se ministra ao aluno o conhecimento das letras, a sua correspondência verbal e a forma de as desenhar correctamente. Mas passado este primeiro estádio instrutivo, o aluno passa a ler e a escrever frases e até textos completos, que não são, como os números, entidades abstractas, mas sim parcelas concretas da vida «literalizada», «estilizada» ou «idealizada». Por conseguinte, ao mesmo tempo que recebe «instrução», o aluno recebe «educação», pois se abre à mensagem literária, estilística, por assim dizer «explicativa» e «filosófica» que se encerra nessas frases e textos. Insistimos neste aspecto do problema, porque todo o trecho literário, contendo uma concepção da vida e do mundo e manifestando uma típica sensualidade, exerce no leitor uma influência que pode ser, conforme o ponto de vista em que nos colocarmos, benéfica ou maléfica.
António Quadros |
As leituras a ministrar aos adultos em recuperação, deverão pois possuir variedade, plasticidade e diversidade, a fim de que se não percam as características «sui generis» de cada província ou região. A colecção de livros educativos a ser editada brevemente pela «Campanha Nacional de Educação de Adultos» presta-se admiravelmente a este propósito. Trata-se de educar, repetimos, e não apenas de instruir. O caminho a seguir pelos educadores de adultos será em consequência, o respeito pelos valores etnográficos, sociais e tradicionais transcendentes a cada um dos iletrados em trabalho de recuperação cultural. Um nivelamento excessivo significaria empobrecimento espiritual.
Uma mentalidade «de cidade», uma mentalidade «fabril» inculcada a pessoas que se formaram num outro circunstancialismo e num outro ambiente, não deixaria de provocar desequilíbrio espiritual de incertas consequências, enquanto a atenção constante às coordenadas dadas pela geografia, pela história e pela etnografia significaria a acentuação e o desenvolvimento de qualidades em potência. Deve-se instruir, «educando» – e não «instruir» ao acaso, sem uma valorização educativa. Só exercendo simultaneamente uma dupla acção instrutiva e educativa, se encaminha o adulto iletrado para o plano da cultura (in A Campanha, Orgão da Campanha de Educação de Adultos, 1 de Dez. de 1953, pp. 9-10).
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