domingo, 10 de outubro de 2010

Um caminho para a educação de adultos

Escrito por António Quadros









A recuperação dos iletrados, pela «Campanha Nacional de Educação de Adultos» ou pelos «Cursos de Educação de Adultos», é tema que oferece múltiplas facetas, múltiplos aspectos e por isso constitui matéria de funda e vasta reflexão para os professores, regentes de postos escolares e demais colaboradores da «Campanha». O problema não é simples. Só a matemática, porque lida com coisas abstractas e descarnadas tem problemas simples: isto é, problemas com uma solução única, objectiva e válida universalmente de uma vez para sempre. A vida, pelo contrário, infinitamente plástica, em constante evolução, sujeita às leis do espaço e do tempo, põe os seus problemas e requer para eles tantas as soluções quantas as «situações» dadas. Os problemas de ontem não são já os problemas de hoje e não serão os problemas de amanhã. Os problemas da povoação «A» não são os problemas da povoação «B» nem os da povoação «C», etc. Por conseguinte, se é difícil à mente humana legislar tomando em inteira consideração estas leis do espaço e do tempo, legislar em atenção, não ao caso geral, mas ao caso concreto, legislar plasticamente, numa palavra, ou seja, procedendo como se cada região estivesse isolada, cada freguesia isolada, cada indivíduo isolado (e em consequência a coisa mais importante do mundo) – não será às leis que nós pediremos maleabilidade e atenção às coordenadas espácio-temporais da cada aglomerado populacional: será aos homens que têm o maravilhoso poder de transformar a letra morta em letra viva.

Exemplifiquemos, examinando uma das facetas mais importantes da Campanha em curso: o ler e escrever que, evidentemente, está na base de qualquer programa de ensino. Uma campanha de instrução não se preocuparia, talvez, senão em ensinar a ler e a escrever, sem outras ideias acessórias. Nós julgamos que uma «Campanha de educação» deve antes de mais nada, compreender a distância e o caminho entre instruir e educar. Julgamos que esse caminho se revela amplamente no carácter distintivo destas três operações: ler, escrever e contar. O ensinar a contar é um acto de instrução pura porque os números são entidades abstractas e objectivas, com validez universal – mas não é um acto de educação precisamente porque os números, não possuindo conteúdo concreto, são indiferentes e passivos. Uma educação numerológica poderá vir mais tarde, em fase ulterior do ensino matemático, mas nunca em fase primária do ensino. Dois mais dois é sempre igual a quatro quaisquer que sejam os objectos em questão.

Em contrapartida, o ensinar a ler e a escrever é já, simultaneamente, acto de instrução e acto de educação. Acto de instrução, pois se ministra ao aluno o conhecimento das letras, a sua correspondência verbal e a forma de as desenhar correctamente. Mas passado este primeiro estádio instrutivo, o aluno passa a ler e a escrever frases e até textos completos, que não são, como os números, entidades abstractas, mas sim parcelas concretas da vida «literalizada», «estilizada» ou «idealizada». Por conseguinte, ao mesmo tempo que recebe «instrução», o aluno recebe «educação», pois se abre à mensagem literária, estilística, por assim dizer «explicativa» e «filosófica» que se encerra nessas frases e textos. Insistimos neste aspecto do problema, porque todo o trecho literário, contendo uma concepção da vida e do mundo e manifestando uma típica sensualidade, exerce no leitor uma influência que pode ser, conforme o ponto de vista em que nos colocarmos, benéfica ou maléfica.

António Quadros


Ora para se fazer educação de adultos, nós devemos contar com a educação natural e tradicional dos iletrados, que é uma educação incompleta, mas nem por isso deixa de ser educação. Nos meios rurais, sobretudo, nós sabemos que os trabalhadores da lavoura, que os artesanos, que as suas mulheres, mães e filhas, possuem uma formação espiritual típica, que constitui uma das suas forças, uma das suas fontes de felicidade e amor à terra. Instruir, educando – seria neste caso ensinar a ler e a escrever através de textos que não contrariassem essa formação campesina e aldeã, integrando «naturalmente» novos conhecimentos ao lado da antiga sabedoria expressa em provérbios, anexins, poesia, etc. De outro modo, e perdendo a força da sua educação tradicional, o trabalhador rural tende para se assemelhar ao trabalhador fabril, tende para perder interesse pelo labor dos campos, para emigrar ou tentar a sua fortuna nas cidades e constituir um factor de desequilíbrio social.

As leituras a ministrar aos adultos em recuperação, deverão pois possuir variedade, plasticidade e diversidade, a fim de que se não percam as características «sui generis» de cada província ou região. A colecção de livros educativos a ser editada brevemente pela «Campanha Nacional de Educação de Adultos» presta-se admiravelmente a este propósito. Trata-se de educar, repetimos, e não apenas de instruir. O caminho a seguir pelos educadores de adultos será em consequência, o respeito pelos valores etnográficos, sociais e tradicionais transcendentes a cada um dos iletrados em trabalho de recuperação cultural. Um nivelamento excessivo significaria empobrecimento espiritual.

Uma mentalidade «de cidade», uma mentalidade «fabril» inculcada a pessoas que se formaram num outro circunstancialismo e num outro ambiente, não deixaria de provocar desequilíbrio espiritual de incertas consequências, enquanto a atenção constante às coordenadas dadas pela geografia, pela história e pela etnografia significaria a acentuação e o desenvolvimento de qualidades em potência. Deve-se instruir, «educando» – e não «instruir» ao acaso, sem uma valorização educativa. Só exercendo simultaneamente uma dupla acção instrutiva e educativa, se encaminha o adulto iletrado para o plano da cultura (in A Campanha, Orgão da Campanha de Educação de Adultos, 1 de Dez. de 1953, pp. 9-10).




Nenhum comentário:

Postar um comentário