sábado, 2 de outubro de 2010

Moçambique Terra Queimada (xii)

Escrito por Jorge Jardim




Álvaro Cunhal



Novo satélite soviético


A independência processou-se sem brilho nas cerimónias e sem autêntico entusiasmo popular no país. Tudo se circunscreveu aos actos oficiais e à organizada concentração popular no estádio que não alcançou as dimensões e a vibração de acto celebrados sob o regime colonial. Fez-se notar a ausência dos chefes de estado que mais haviam apoiado a "Frelimo" na sua luta e o Malawi, ostensivamente, nem sequer foi convidado.

Em contrapartida, estava presente, em lugar de destaque, o Dr. Álvaro Cunhal, na sua qualidade de secretário geral do partido comunista português. Isso foi devido à insistência de Marcelino dos Santos e tinha significado muito especial, uma vez que não constitui segredo a estreita ligação do Dr. Cunhal com Moscovo. Ninguém se esquece que foi um dos raros chefes comunistas ocidentais a apoiar a brutal intervenção que esmagou a rebelião de Praga.

Aos chineses não passou despercebido o que representava esta singular deferência para com o chefe comunista português. As dúvidas com que pudessem ficar desapareceriam ao ouvirem os discursos proferidos ou ao lerem os textos programáticos que foram sendo publicados.

Quando a nova (e feia) bandeira da República Popular de Moçambique foi içada no mastro da soberania, passava a União Soviética a dispor de mais um satélite.

A independência, tão duramente conquistada pelos nacionalistas moçambicanos, fora roubada à nascença.


Governo da minoria


A "Constituição" do novo estado é, do primeiro ao último artigo, um perfeito modelo de marxismo-soviético. Na mais pura linha das democracias-populares, o Comité Central da "Frelimo" (auto-designado como suprema autoridade da nação) assim o decidiu e reservando para si todos os poderes.

Ernesto Guevara com membros da direcção da Frelimo numa reunião na Tanzânia, onde se pode reconhecer Samora Machel.


Sem qualquer esboço de consulta ao povo, uma minoria impôs a sua vontade a nove milhões de pessoas. Com total despudor nem se deram ao incómodo de praticar arremedo de legitimação democrática.

Razão tivera eu nas minhas apreensões ao ler o "acordo Samora Machel-Melo Antunes". O que aconteceu estava lá previsto ou, pelo menos, tinha-se deixado o caminho aberto para isso.

Foi este processo neocolonialista que o primeiro-ministro português, presente nas cerimónias, classificou, emocionadamente como honrosa libertação de um povo. Não é estranhável que nesse pendor se tenha rebaixado, servilmente, a pedir perdão para um passado em que abundavam razões de orgulho para qualquer português.

Tinha de ser Vasco Gonçalves a fazê-lo. Assim traía, mais uma vez, o "Programa do MFA" a cuja comissão directora presidira quando foi elaborado.

Desonrou a farda que, sem convicção, vestira.

Insultou a memória dos que, com a mesma farda, tinham caído para sempre e os tantos outros que sofreram na carne as mutilações de guerra. Paradoxalmente, haviam de vir de Samora Machel as palavras de apreço pelos que tinham sabido bater-se e de desprezo merecido pelos covardes que o não fizeram.

O guerrilheiro corrigiu o "general".

Ainda tinha lampejos dos tempos em que fora combatente. Iriam, porém, desaparecendo com a doutrinação que o cercava e o converteu, de soldado, em moleque dos novos senhores.

Na tal "Constituição" ainda se previa uma assembleia representativa, cuja escolha se acautelava para que o povo não pudesse intervir. Nem essa foi posta em funcionamento até hoje, com quase um ano volvido sobre a falsa independência. A única explicação viável é a de saberem que, mesmo no restrito campo dos dirigentes, o descontentamento alastra correndo paralelo com a frustração.


Estado policial


A perseguição a tudo quanto pudesse representar capacidade de pensar e, eventualmente, de discordar, passou a ser feroz. Nesse procedimento decapitador de um país não houve qualquer discriminação racial. Todos foram igualmente abrangidos.

As nacionalizações começaram exactamente pelas profissões liberais e com esse propósito. Médicos, advogados, engenheiros e professores saíram do país às centenas, deixando o vazio desejado e de que a população foi a grande vítima.



Os Campos de Extermínio ou Campos da Vergonha (Moçambique).



As prisões arbitrárias sucederam-se e nos campos de trabalho os detidos são tratados com requintes vexatórios e de brutalidade. O transporte de muitos desses milhares de infelizes faz-se em camiões de gado (e com tal indicação inscrita no exterior das viaturas) para impedir a identificação por algum curioso inconveniente. Mas aconteceu que um desses camiões teve de ser aberto (e sabe-se onde tal aconteceu) quando uma mulher branca deu à luz inesperadamente e soltou os normais gritos da maternidade que os guardas não conseguiram calar. Viu-se então, de que "gado" se tratava e houve organismos internacionais que do caso tomaram conhecimento. O escândalo foi abafado.

Poucos detalhes desta actuação policial, destinada a espalhar o terror e forçar a saída dos indesejáveis "reaccionários", têm sido divulgados pela imprensa, apesar de não faltarem (em Portugal e nos países limítrofes de Moçambique) testemunhos que poderiam ser usados. Os moçambicanos e portugueses continuam a sair do país, aos milhares, por todas as formas que conseguem. Alguns houve que até foram perseguidos, já dentro do território sul-africano, por milicianos armados que procuravam interceptá-los. Dezassete dos perseguidores foram presos pela polícia da República da África do Sul.

Os aviões da TAP e das outras companhias aéreas enchem-se com fugitivos em Johannesburg, Salisbúria, Blantyre e, até, Lusaka. Quem tiver dúvidas pode informar-se junto do pessoal do aeroporto de Lisboa e dos tripulantes da TAP que têm realizado esses voos. Não faltam histórias dramáticas para conhecer.

Enquanto que os excessos da "PIDE" ocupavam páginas inteiras dos jornais, raros são aqueles que manifestam interesse pelas incomparáveis monstruosidades cometidas pela "SNASP" ("Serviço Nacional de Segurança Popular"). Esta "SNASP" é responsável unicamente perante o presidente Samora Machel, conforme se prescreve no artigo 9.º da lei que promoveu a sua constituição. (...)


Perseguição religiosa


Também sem qualquer discriminação, Samora Machel desencadeou ofensiva contra todas as confissões religiosas. Nenhuma parece ter escapado.

Em insulto sem precedentes o ditador moçambicano entrou na mesquita sagrada da Ilha de Moçambique, sem se descalçar. Humilhou os "che", perante muitos fiéis maometanos congregados para receber o novo presidente. Não perdoava que os devotos de Meca (que somam ao redor de três milhões de crentes em Moçambique) se recusassem a aderir às doutrinas marxistas de que se convertera em arauto.

Mesquita Sagrada de Meca


O contraste com a tolerância portuguesa ficou patente para toda essa gente. Recordam os tempos em que o governador-geral (Baltazar Rebello de Sousa) participava publicamente nas suas orações e a eles se dirigia, com respeito ecuménico, durante as solenidades que decorriam das prescrições do Profeta.

Os cristãos não-romanos tiveram igual sorte.

Leia-se o jornal sueco "Expressen" que, pela pena de Eric Sjoequist, denuncia a perseguição sofrida. A este se juntou o médico-missionário escandinavo, Dr. Koorsning, para descrever como milicianos invadiram os templos, as escolas e os hospitais e obrigaram a tudo abandonarem, sob a ameaça das armas. Os missionários estrangeiros, que tantas vezes tinham tomado a defesa da "Frelimo", foram acusados de serem agentes do imperialismo e de entravarem a marcha da revolução.

Creio, no entanto, que a seita religiosa que directamente mais sofreu foi a das "testemunhas de Jehovah". Dezenas de milhar (as melhores estimativas cifram-nos em 400 000) tinham procurado refúgio em Moçambique depois de serem perseguidos nos territórios vizinhos, especialmente no Malawi, por se recusarem a participar em qualquer actividade política. Percorri muitos desses campos de refugiados, estabelecidos pelas autoridades portugueses, em laboriosos trabalho de identificação (como cônsul do Malawi) para impedir que criminosos comuns com elas se misturassem, beneficiando da protecção que lhes era concedida em base humanitária.

Não tive quaisquer dificuldades. Encontrei sempre a melhor colaboração dos portugueses e dos refugiados. Entre estes encontravam-se médicos, engenheiros, advogados e abastados comerciantes.

O Malawi, mesmo não reconhecendo a seita, apreciava o filantrópico procedimento português e colaborou nas facilidades solicitadas para a saída de famílias ou bens, enquanto que o seu governo partilhava nos encargos com o sustento dessa gente.

Com o advento de Samora Moisés Machel tudo foi revirado repentinamente. E sabia-se que os guerrilheiros da "Frelimo" haviam utilizado os campos de refugiados para neles se abrigarem ao serem perseguidos pelas tropas portuguesas. Tinha acontecido isso na Angónia, em Milange e em Nova Freixo.

À ponta da baioneta os desgraçados foram obrigados a cruzar a fronteira para serem entregues às autoridades vizinhas. Os que tentaram escapar-se para permanecer em Moçambique foram tratados com incrível violência. Recebi cartas de membros da seita ccom quem tinha feito amizade, relatando as mortes, as feridas e fracturas graves ou os abusos sexuais. Calcula-se que mais de 3 000 pessoas foram friamente eliminadas. O próprio governo do Malawi, que os perseguira, apiedou-se deles e ofereceu-lhes abrigo contra tais excessos.

Mesmo assim, mais de dez mil "testemunhas de Jehovah" encontram-se hoje, em condições sub-humanas, em campos de trabalho nos distritos da Angónia e de Milange.

Basílica de S. Pedro (Roma).


A Igreja Católica também não se eximiu à perseguição.

Em documento circulado pelo partido, foi acusada de actuação contra-revolucionária que procura obstaculizar a marcha da democracia-popular. Referiu-se a necessidade de "separar do Vaticano a Igreja de Moçambique" e (até mesmo!) de alterar a liturgia e as orações.

O Bispo de Nampula, um dos mais activos frelimistas do período colonial, foi restringido à zona do seu paço e notificado, por um cipaio, da decisão das autoridades de não lhe consentirem que pregasse na catedral.

Os bispos moçambicanos que sempre encontravam fórmulas, ainda que vagas, de criticar as autoridades portuguesas nos seus comunicados públicos e de as afrontar nos relatórios para Roma parecem remetidos a silêncio envergonhado.

O que terá acontecido aos missionários espanhóis tão largos no falar em defesa do seu povo cristão? Que é feito da voz de D. Eurico Noronha (respeitado Bispo de Vila Cabral e depois transferido para Sá da Bandeira) que se ofereceu para advogado dos padres-marxistas do Macuti, conforme carta que me escreveu?

Porque se calou, também, a Igreja Católica?

Impressiona a forma como desapareceu a coragem ao eminente Núncio Apostólico em Lisboa que tão presto era em denunciar as prepotências portuguesas.

Igualmente o Padre Hastings, denunciador dos massacres do Wiryamu, cala-se quando hoje se cometem verdadeiros e comprovados genocídios em Moçambique, que excedem tudo o que de imaginoso sobre as atrocidades portuguesas relatou em plena primeira página do respeitável "The Times" de Londres.

Nem o Bispo do Porto, tão fértil no apoio às acusações contra a guerra colonial, tem hoje uma palavra de caridade para as centenas de milhares de cristãos que penam em Moçambique uma das mais violentas perseguições religiosas que os tempos modernos conheceram.



D. António Ferreira Gomes (Bispo do Porto).




Onde estão as cartas pastorais e as homilias versando o tema "Paz e Justiça"?

Há em tudo isto um silêncio cúmplice.

Ou há uma vergonhosa falta de coragem.

Como excepção confortadora pode apontar-se a figura admirável do Arcebispo de Braga, Primaz das Espanhas, que se ergue com personalidade ímpar dizendo as coisas pelos seus nomes. Mesmo depois dos vexames sofridos na sua dignidade de homem e de sacerdote impecável que até sabe perdoar.


Guerra de conveniência


Com a premeditada criação do ambiente para a fuga de todos os valores humanos e a instauração do terror que se alarga a todos os sectores da população, acontece que a economia moçambicana se encontra nas vizinhanças do colapso.

Estima-se que mais de duzentas mil pessoas abandonaram o país e cerca de quarenta mil se encontram nas prisões ou campos de trabalho. Se o governo moçambicano desmentir estas afirmações, desafi-o a consentir a livre entrada e circulação no país de uma comissão internacional à qual estarei pronto a fornecer os dados orientadores necessários para a verdade poder ser apurada.

Acresce que os atingidos, pela fuga ou pelo internamento, representavam o extracto mais válido nos diversos sectores produtivos.

Assim, não causa espanto que o rendimento industrial tenha caído em cerca de 70%, com total estagnação dos novos investimentos. Estas indicações podem pecar por optimismo quando se referem a um sector que era imperioso dinamizar.

Na actividade agrícola, afectada em muitas regiões por condições climáticas desfavoráveis, prevê-se que haja zonas onde no corrente ano a quebra de produtividade alcance os 75%.

Estes índices alarmantes parecem todavia mais favoráveis que a realidade quando se comparam com outros números já publicados. Assim, só na região de Manica e Sofala (distritos da Beira e do Chimoio) a produção de batata caiu de 15 000 toneladas em 1974 para 3 000 toneladas em 1975. Nos citrinos desceu-se de 270 000 caixas de laranjas para 11 000 no mesmo período. No milho, sempre na mesma base de comparação, tombou-se de 20 000 toneladas para 8 000 toneladas.

Já não se trata de ter produtos para exportar mas, apenas, de ter alimentação para as populações. A partir de Junho a fome apresenta-se como ameaça para todos. Há cidades onde o pão desapareceu há muito e onde a carne é luxo só acessível aos dignitários do partido.

O desemprego alcança nível nunca anteriormente conhecido. As aldeias começam a conhecer o afluxo dos que regressam desiludidos e esfomeados dos centros urbanos onde não conseguem encontrar ocupação.

Com a carência de pessoal qualificado, os portos e os caminhos de ferro estão reduzidos a movimentar apenas uma quarta parte da sua capacidade anterior.






As rebeliões começam a surgir em vários pontos do território, como as que em Dezembro se registaram em Lourenço Marques e forçaram Samora Machel a ocultar-se, durante dias, em parte incerta.

Como invariavelmente acontece nestas circunstâncias, a minoria dominadora tinha de inventar uma "guerra de conveniência".

Samora Machel deu o primeiro passo enviando algumas unidades para Angola, para combaterem ao lado dos "camaradas" do MPLA. Sabia quanto isso seria desagradável ao Dr. Kaunda (a quem tantos favores ficou a dever), mas tinha de cumprir as ordens soviéticas. Sobretudo, porém, procurava ver-se livre de soldados cuja atitude receava.

Mandou moçambicanos morrerem em Angola por motivos que nada tinham que ver com a causa de Moçambique, embora pudessem ser importantes para a sua segurança e interesses pessoais.

O segundo passo tinha de seguir-se com a "guerra de conveniência" contra a Rodésia.

O bloqueio que determinou não representava a punhalada mortal que quis fazer acreditar haver desferido. Como os portos e caminhos de ferro estavam já limitados à reduzida capacidade que referi (e nem tudo se dirigia à Rodésia) aconteceu que o regime de Salisbúria sofreu muito menos do que se poderia pensar. Até já tinha activado outras vias alternativas para compensar a ineficiência moçambicana.

Assim, esta outra "guerra de conveniência" converteu-se num enorme "bluff" que permitia a Samora Machel aliviar o tráfego externo, para atender às mais prementes necessidades de transporte no país e buscar ajuda internacional para cobrir os invocados prejuízos que, da aplicação das ineficazes sanções, afirmava resultarem.

Será muito duvidoso que alcance o auxílio internacional pretendido (em termos de compensar o colapso económico em que, por outras causas, se encontra) apesar da inteligente argumentação que Chissano utilizou em New York.

Uma coisa é obter votações favoráveis no Conselho de Segurança, afirmando intenções e receber mensagens de simpatia de certos governos. Outra coisa é recolher o dinheiro quando chegar a hora de fazer contas e justificar o pedido. Os governos ocidentais não têm motivo para subsidiar um satélite soviético. Os árabes não se devem inclinar em auxílios generosos a quem persegue milhões de maometanos. Do oriente veremos o que lhe enviam. Talvez que mais armas e menos pão...



(...) Reacende-se o tribalismo






Com o desaparecimento do cimento agregador que os sectores mais cultos representavam e com a destruição das estruturas administrativas voltaram as populações à condição de terem de se refugiar na vida tribal. A perseguição religiosa agrava essa tendência.

Com isso se reacende o tribalismo e dilui-se o frágil sentimento de unidade nacional que se ia erguendo.

Tendo de viver cada vez mais sobre si mesmos e recebendo cada vez menos da comunidade nacional, os povos reforçam instintivamente as suas estruturas tradicionais.

Não é compensável esse fenómeno desagregador pela eventual assistência de técnicos importados (e que por isso não dispõem de comunicabilidade) ou pela pressão dos grupos dinamizadores que parecem apostados a copiar os maus métodos da acção psico-social do regime anterior. Esses grupos, na generalidade, têm falhado rotundamente e os comícios que organizam, tiveram de passar a ser feitos em recintos fechados ou, de dia, em espaços abertos fiscalizados. Tais procedimentos resultaram, de, sem essas precauções, a assistência arrebanhada nas aldeias se escapar na sombra da noite, ou pelas portas entreabertas, ficando os doutrinadores limitados, ao cabo de algum tempo, à presença das autoridades ou dos sentados nas filas mais em evidência.
O incentivo dado ao tribalismo é, assim, consequência da acção exercida pela minoria marxista da "Frelimo", completamente desenraizada das realidades da vida rural. Essa engloba mais de sete milhões de moçambicanos que esses elitistas (como Marcelino dos Santos) são incapazes de compreender porque nunca com eles conviveram e nem sequer a alguma tribo pertencem. Já recordei que a maior parte dos intelectuais do partido nem negros são.

Enquanto que, por exemplo, o Dr. Banda e o Dr. Kaunda souberam vencer a barreira da cultura para se apoiarem no povo, por sobre as divisões tribais, acontece que Samora Machel, querendo exibir cultura assimilada bruscamente, perdeu a função agregadora nacional que poderia ter realizado. Ter-lhe-ia bastado seguir a corrente nacionalista da "Frelimo" em vez de se deixar arrastar pela minoria intelectual marxista que o deslumbra e domina.

Porque fez a opção errada já teve de afirmar publicamente que "os moçambicanos são um povo de reaccionários". Apenas com isto quer dizer que são um povo que não o segue.

É impossível governar, duravelmente, contra a vontade dos povos.

Se o tribalismo é um fenómeno contrário à construção da unidade nacional, não pode deixar de reconhecer-se que constitui arma terrível contra a opressão que se queira impor às gentes.

Já foi defesa quase indomável no período das guerras de pacificação. Volta a sê-lo quando novo colonialismo lhes bate à porta.


Os mais irredentistas (os macondes) fizeram-no sentir ao assaltarem um campo de trabalho, libertando os presos e massacrando a guarnição que não conseguiu fugir a tempo. Os pacíficos macuas (que são terríveis quando chegam ao limite da sua tradicional resignação) ocuparam povoações em que, como suprema afronta, queimaram a bandeira da "Frelimo" e hastearam a portuguesa. No território dos ajauas, não creio que Samora Machel se atrevesse a presidir a uma banja da população; são teimosos, falam pouco e não aceitam inovações que não entendam. Nas regiões nyanjas, o grau de cultura é muito elevado e por isso não podem digerir a luta de classes que Karl Marx prognosticou quando já suplantaram, tribalmente, esse problema há muito tempo. Os orgulhosos zulus mantêm a tradição aristocrática de Gungunhana que volta a reaparecer no norte, entre os seus descendentes angonis que não toleram ordens de estranhos na sua terra.

Se continuasse a citar reacções tribais, teria de escrever um outro livro, falando apenas daqueles com quem convivi intimamente durante mais de vinte anos em que gastei no mato, a aprender, tempo apaixonante da minha vida.

Apenas procurei citar exemplos para que se possa entender a gravidade e a importância do caso tribalista em Moçambique. Não cabe no esquema doutrinário de Karl Marx. É mais assimilável à dignidade da diferenciação nos árabes que Lawrence nos deixou descrita.

Samora Machel (e o elitista Marcelino dos Santos) ganhariam mais em estudar Lawrence do que em tentarem assimilar Marx.

Com os árabes há muito que aprender. Até na capacidade de luta que evidenciaram para alcançarem a vitória que se avizinha, depois de enganados e traídos pelas grandes potências que julgavam poder fazer geometria sobre terras que são a sua pátria.

Depois, têm aquele aforismo terrível que recomenda sentar-se à porta da tenda o tempo necessário para ver passar o enterro do inimigo.

Com o sangue árabe que me honro de ter nas veias não me esqueci desse conselho ditado pela sabedoria. (...)


Cubanos e russos


Helicóptero russo pilotado por cubanos, na Base 3 do Negage (Angola).



Para muitas pessoas a grande incógnita está na possível intervenção de cubanos e russos em Moçambique. Têm naturalmente presente o que se passou em Angola.

Mas os dois casos não são assimiláveis, pelo menos para este efeito.

Não creio que haja risco de assistirmos a agressão semelhante.

Explico porquê.

Em Angola travava-se uma guerra quase do tipo clássico, comparável à que se registou no Vietnam. Para a semelhança ser mais completa, nem faltou o recuo dos americanos, abandonando aqueles que haviam encorajado. Com a experiência, meditada, do passado recente, nunca esperei outra coisa. Ao menos não tive as desilusões que outros, mais ingénuos, sofreram.

Em Moçambique nunca haverá uma "vietnamização". O que pode haver, a partir do tribalismo exacerbado, é uma "congolização" com mais tribos e com maior dispersão no terreno onde as vias de comunicação, em consequência da própria geografia, se tornam extremamente difíceis.

Contra este tipo de revolta, que cabe nas previsões mais realistas, nem os pesados tanques, nem os "orgãos de Staline", nem os mísseis teleguiados e nem a infantaria cubana podem ter remota esperança de êxito.

Só podem ser úteis para prevenir uma revolta por parte da única força militar organizada que existe: a própria "Frelimo". Se os chefes dos combatentes moçambicanos consentissem tal intromissão, estariam a condenar-se a si próprios. Nem a pretexto de se lhes consentir a passagem para agredirem a Rodésia, creio que embarquem em tal aventura. Seriam dominados totalmente e passariam a subalternos soviéticos.

Os comandantes da "Frelimo" (que foram os que se bateram no mato durante dez anos) não podem esquecer o mandato nacionalista dos seus mortos. Não podem desprezar Magaya e os seus homens, não podem ver-se humilhados perante os aguerridos macondes que conduziram e que, além de terem lutado no seu planalto, vieram a ser a flecha audaciosa que se infiltrou em Tete.

A presença militar de cubanos e russos seria o cativeiro sem esperança dos soldados da "Frelimo". Não creio que o permitam e ainda têm força para impedir tal decisão.

A guerra tribal seria, então, inevitável. A unidade de Moçambique estaria irremediavelmente perdida. Nem o próprio Samora Machel se atreveria a dar tal passo.

Olhando os factores externos não se pode ignorar as possibilidades da reacção chinesa.

Os chineses nunca tentaram, ao contrário dos soviéticos, realizar uma penetração política. Quanto muito fizeram divulgação cultural. Não buscaram conquistar adeptos de novo imperialismo. Cuidaram mais de fazer amigos. Por esta via exercem a sua influência. Foram eles que, com a sua persistente capacidade de organização, permitiram à "Frelimo" ultrapassar as fases mais críticas e resistir até lhes ser proporcionada a vitória. Os militares da "Frelimo" sabem que foi assim.

Será, no entanto, compreensível que os chineses, depois dessa participação activa no que era a luta de libertação de Moçambique, não estejam dispostos a assistir impassíveis ao novo colonialismo soviético já por demais evidente e que se tornaria gritante com o hipotético desembarque de forças cubanas ou russas.

Além de um acto de desprestígio para a China Popular, isso seria uma provocação contra a sua influência cultural e contra a libertação autêntica dos territórios em que se envolveu tão profundamente. Há que não esquecer que o "TANZAM", ligando a Zâmbia à Tanzânia foi produto do esforço e do financiamento chinês. Na altura pareceu que visava apenas libertar a Zâmbia do risco da asfixia por parte dos portugueses mas, vistas bem as coisas, pode acontecer que os chineses tenham projectado a sua visão a mais longe. Hoje pode converter-se em antídoto contra eventual manobra imperialista soviética.

Bomba atómica


Acontece, por outro lado, que Moscovo teme Peking por conhecer a sua capacidade de reacção ao longo de uma extensa fronteira comum em que nenhuma vantagem está do lado russo. Os chineses são os únicos que não carecem de recorrer à ameaça da bomba atómica para dissuadir os soviéticos. São também aqueles contra quem os soviéticos nunca se atreveriam a usá-la.

Não deixam de ter presente o realista aviso de Mao-Tse-Tung: "se houvesse uma guerra atómica, o último sobrevivente sobre a terra seria certamente chinês". Mao-Tse-Tung, até hoje, não cometeu um único erro de previsão nos seus dizeres.

A China Popular não toleraria um desembarque cubano-russo em Moçambique. As advertências de Peking têm mais peso do que as de Washington. Os chineses, para reagirem, não têm de se envolver nos meandros democráticos do Capitólio. Os russos sabem-no e o primeiro aviso parece já haver sido dado num oportuno incidente de fronteira noticiado pelos jornais.

Por todos os factores anunciados, em que o último não é certamente o menos importante, não creio na intervenção militar soviética em Moçambique.

Atrevo-me a fazer este vaticínio.

É certo que armamento ligeiro abundante tem estado a ser desembarcado em Nacala e a ser dali transportado pelas "Linhas Aéreas de Moçambique" para diferentes portos do território. Destina-se a armar as guerrilhas rodesianas e a reforçar o equipamento militar da "Frelimo".

Até aí podem chegar os soviéticos.

Samora Machel e os seus conselheiros fariam bem em pensar contra quem podem ser disparadas essas armas.


Comentário


Enquanto tudo isto se passa e Moçambique sofre a escravidão imposta por uma ditadura odiosa, o mundo parece não se dar conta da importância e da gravidade de quanto ali acontece.

Já o mencionei anteriormente, mas julgo oportuno voltar a referi-lo neste comentário final.

O caso de Angola, pela espectacularidade dramática que o rodeou, fez com que mais gente pensasse nele. Não o conheço com a profundidade de informação de que disponho sobre a tragédia que Moçambique atravessa.

Não quero fazer comparações porque para a dor não existe padrão de medida.

O que acontece é que sobre Moçambique quase se abateu uma muralha de silêncio enquanto ali se passa um dos dramas da descolonização portuguesa.

Não deixo de ser sensível ao sofrimento das gentes da Guiné, ao terrível e irresponsável abandono de Timor, aos horrores que tombaram sobre Angola.






No julgamento do processo da descolonização não pode ficar de fora a destruição da Pátria Portuguesa, abalada criminosamente da sua possibilidade de sobrevivência e afastada talvez para sempre da posição que lhe pertencia no mundo.

Creio, com profundidade de fé, que todos os autênticos nacionalistas dos vários quadrantes onde chegara a presença lusitana, preservávamos como ponto de honrosa convergência a grandeza de Portugal a que nos sentíamos ligados pelo sangue ali amorosamente misturado, pela fusão de culturas promovida com desvelo e pelos rasgados horizontes que nos prometia o sabermos que seríamos, em breve, mais de duzentos milhões a venerar o vínculo abençoado que nos reunia.

Queríamos ter casa própria.

Mas também queríamos que nela coubessem os irmãos que houvessem construído a sua, como esse portentoso Brasil que era para nós exemplo e farol de guia.

A possível arrogância apaixonada com que nos sentíamos moçambicanos, e pretendíamos poder sê-lo, nada continha de ofensivo para Portugal.

Talvez que mesmo, nesse nacionalismo africano, afervorasse o nosso amor pela Pátria-Mãe de todos nós.

Os meus filhos e os meus netos de qualquer cor nunca esqueceriam os pais ou os avós.

Ambicionávamos que os que não tivessem os mesmos laços se sangue sentissem como eles sentiriam, uma vez que eles sentiriam como eles.

Esse esteve para ser o milagre português.

Só pretendi, neste livro, provar porque assim não foi.

A descolonização de Moçambique, país promissor convertido em terra queimada, não foi o único caso e nem terá porventura, sido o mais trágico.

Mas foi o problema que eu vivi. Aquele que intimamente conheci. E que mais procurei, por isso mesmo, salvar da queimada que pressentia avizinhar-se.

Assim me devotei a escrever tantas e tão dolorosas páginas sobre o drama que testemunhei.

Bem desejaria que outros o fizessem sobre o que experiências diferentes possam oferecer.

Assim ergueríamos o processo de descolonização.

E os homens responsáveis por ela haveriam de enfrentar o tribunal que um dia os julgará, sem apelo diante da História.

Enquanto o tribunal de Deus, em que creio, não lhes toma contas dos actos cometidos (ob. cit., pp. 383-399).






Continua


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