quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Tudo podre no reino de Portugal

Escrito por Orlando Vitorino





Dominique de Roux em Moçambique, com o actor francês Maurice Ronet.


O livro simultaneamente mais interessante e mais valioso entre tantos que, depois de Abril de 1974, se escreveram sobre Portugal, é sem dúvida o de Dominique de Roux, «Le Cinquième Empire» (Ed. Belfont, Paris).

A tese do autor é a seguinte: Portugal foi o último dos impérios e seu termo, dado agora, abre a história da humanidade para o Quinto Império, aquele que, anunciado nos libros da tradição mais sagrada e mais secreta, será o império da universalidade. Em termos mais correctos: encerrado o longo ciclo de imperialismo, a humanidade vai entrar no ciclo do universalismo. Ao poder na terra e no tempo, sucederá o poder do uno e do espírito. A dissolução do último império terrenal, equivale à putrefacção, ou saturnificação, onde germinará a flor.

No que tem de narrativo (toda a história da preparação e execução do 25 de Abril), o livro de Dominique de Roux é uma minuciosa descrição de um povo putrefacto. A famosa lamentação shakespereana de que «alguma coisa está podre no reino da Dinamarca», pode completar-se agora com a exultação de que «tudo está podre no reino de Portugal». Isso explica que, sendo este livro o mais interessante e valioso de quantos se publicaram sobre Portugal, seja também o mais silenciado, o que «ninguém leu», o que nenhum jornal noticiou. Com efeito, todos ali figuram mergulhados na podridão, desde os campeões militares e os caudilhos políticos que executaram o golpe até aos homens e mulheres mais em evidência na velha e na nova sociedade portuguesa. Todos são descritos «en su tinta»; os campeões militares, por exemplo, surgem em ambientes e actos, em que o autor também participou, vividos na guerra do Ultramar de cuja realidade e sentido todos foram igualmente ignorantes, moscas saturninas e tontas.


Dominique de Roux em Angola, com o líder terrorista da UNITA, Jonas Savimbi.


Dominique de Roux era uma personalidade enigmática: jornalista de celebridade mundial, era também «intelectual», de um tipo que os jornalistas nunca são; nos campos de guerra em África, entrevistava, antes do 25 de Abril, Kaulza, Spínola e Otelo, e, depois do 25 de Abril, Jonas Savimbi, mas ao mesmo tempo fundava e dirigia a colecção «10-18», que todos nós conhecemos, e organizava os sucessivos números da revista «Exil». Nos primeiros dias que se seguiram ao golpe de Abril, três diários comunistas publicavam a várias colunas da 1.ª página o seu retrato com a legenda: «à solta em Portugal um dos principais agentes da reacção internacional...». Tinha preocupações de aristocrática elegância e havia quem dissesse que era um dirigente da polícia secreta francesa, o que este seu livro permite confirmar... Morreu de repente, quando acabava de publicar o «Cinquième Empire» e dias depois da invasão do Congo pelos comunistas de Angola. Há quem diga que foi assassinado.

Ao lermos o «Cinquième Empire», mais uma vez evocamos o antiquíssimo mito de como tantas vezes se vai procurar longe o que se tem à mão. Procurando a «flor azul» na distância impossível de percorrer», Dominique de Roux só pôde conhecer, do último império, a putrefacção. Nunca foi aonde o mito do império do espírito é todos os anos celebrado, embora ponha em epígrafe do seu livro um poema de Natália Correia, e não mostra conhecer (exceptuada uma apressada alusão a António Telmo) aqueles que, como Agostinho da Silva, melhor lhe poderiam falar. O jornalista atraiçou o intelectual. Ofuscado pelas vedetas, passou ao lado do que buscava e não o viu. Condenou-se a só ver a podridão (in Escola Formal, 1977, n.º 4, p. 19).







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