quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Os quatro inimigos naturais e simbólicos do guerreiro

Escrito por Carlos Castaneda



Deserto de Sonora na hora das bruxas


« - O crepúsculo é a fenda entre os mundos...». 

Don Juan 


«O método de ensino de Don Juan exigia um extraordinário esforço por parte do aprendiz. Efectivamente, o grau de participação e envolvimento necessários era tão esgotante que, no final de 1965, tive de desistir da aprendizagem. Posso dizer agora, com a perspectiva dos cinco anos que se passaram, que, por essa altura, os ensinamentos de Don Juan tinham começado a constituir uma séria ameaça à minha "ideia do mundo". Tinha começado a perder a certeza, que todos nós temos, de que a realidade da vida quotidiana é algo de que possamos estar seguros».

Carlos Castaneda («Conversas com D. Juan. Para além da realidade»).


«Voltei a ler o primeiro capítulo de O Dom da Águia, que é de Carlos Castaneda… D. Juan, o Índio, tinha-lhe ordenado que não mexesse em pedras ou ossos que pudesse encontrar enterrados. Coisa a que ela, La Gorda, sua discípula, não quis obedecer. Nas minas do Monte Alban em Oaxaca uma leve cintilação no solo levou-a a desenterrar uma pedra, com sinais de ter sido trabalhada pelos homens antigos, pedra que sentiu quente na sua mão e viva como um animal. O Chaman, para que ela não sucumbisse, teve de soterrá-la em parte, durante vários dias, porquanto uma profunda angústia se apoderou dela e via-se perseguida por horrores mentais, estando perto de passar o limiar da morte. Salvou-se.

A pedra, segundo D. Juan, o Índio, teria pertencido a um atlante que, fazendo incidir sobre ela a segunda atenção, a transformara numa pedra de poder. Revelou ainda D. Juan que o atlante terá sido comido por outro, mais poderoso do que ele.

Este relato de La Gorda, da possessa, agora libertada e igualmente poderosa, foi feito a Castaneda, a propósito de ele ter contado o seguinte: "Visitei algumas minas arqueológicas, quando estava na cidade de Tula, Hidalgo. Fiquei então profundamente impressionado por uma fila de quatro colossais figuras de pedra em forma de coluna, conhecidas pelo nome de Atlantes, que estão no topo de uma pirâmide. Pensam os arqueólogos que representam guerreiros Toltecas com as suas armas. Vinte pés abaixo destas figuras há outra fila de quatro colunas rectangulares da mesma altura e largura das primeiras.

O terror que senti perante os Atlantes foi acrescido pelo que um meu amigo me tinha dito, quando me falou deles. Disse que um dos guardas das ruínas lhe tinha confidenciado que os ouvia andar de noite, com passos que faziam a terra estremecer".

A discípula de D. Juan reagiu ao relato de Carlos Castaneda por estas palavras: "Eu nunca vi essas figuras. Nunca fui a Tula. Só a ideia de lá ir põe-me em pânico".

Perante narrativas como estas, lembro-me sempre do Álvaro Ribeiro com a sua definição da arqueologia como a ciência dos princípios, condenando por isso a ligação desta palavra a uma actividade, a dos que se dizem arqueólogos, que é propriamente uma devassidão dos cemitérios ancestrais.

Aquilo que D. Juan ensina aos seus aprendizes sobre a segunda atenção é exactamente aquilo que nos diz o poeta inglês William Blake no seu grande poema propositadamente imaginado para salvar Milton.

Deixe-se falar Carlos Castaneda:

"1. A primeira atenção é a consciência que cada pessoa normal desenvolveu de modo a poder tratar com o mundo do dia a dia.

"2. A segunda atenção é a consciência de que necessitamos para poder ter a percepção do nosso corpo luminoso e, em consequência, actuar como seres luminosos. A primeira atenção acompanha a actividade do corpo físico. A segunda permanece soterrada durante toda a vida, a não ser que se revele por meio de exercícios intencionais ou por um ocasional trauma; acompanha a actividade do corpo luminoso.

"3. Há ainda a terceira atenção que tudo envolve - imensa consciência que comporta indefiníveis aspectos da actividade do corpo físico e do corpo luminoso".

A passagem da segunda atenção para a terceira é assim sugerida:

"A fixação da segunda atenção tem duas faces. A primeira e mais fácil é a maléfica. Acontece quando os sonhantes utilizam a imaginação de modo a focar a sua segunda atenção em aspectos do mundo como dinheiro e poder sobre os outros. A outra face é a mais difícil de alcançar e acontece quando os sonhantes focam a sua atenção em aspectos que não são os deste mundo, tais como a viagem para o desconhecido".

Eis toda a diferença entre a arqueologia como a concebe Álvaro Ribeiro e a arqueologia dos arqueólogos profissionais».

António Telmo («Congeminações de um Neopitagórico»).



Brandon Lee. Ver aqui e aqui






Bruce Lee. Ver 1, 2, 3, 4 e 5



« - Não é preciso muita coisa para te tornares num corvo. Conseguiste-o, e agora serás sempre um.

(…) - Em toda a tua viagem, só houve uma coisa realmente importante...Os pássaros prateados!

- Que têm eles de especial? Não passavam de pássaros.

- Não eram só pássaros… eram corvos.

- Eram corvos brancos, Don Juan?

 - As penas pretas de um corvo são na realidade prateadas. Os corvos brilham tão intensamente que não são importunados pelos outros pássaros.

- Por que é que as suas penas parecem prateadas?

- Porque estavas a ver como um corvo vê. Um pássaro que nos parece preto parece branco a um corvo. Os pombos brancos, por exemplo, são cor-de-rosa ou azuis para um corvo; as gaivotas são amarelas. Agora, tenta recordar-te como te juntaste a eles...».

Carlos Castaneda («Os Ensinamentos de Don Juan. Uma nova forma de conhecimento»).


«Há uma hora do dia em que todos somos tímidos fantasmas vagabundos. É no adeus do crepúsculo, quando a luz morre e os contornos erram.

Nas máscaras fenece a certeza fisionómica; trevas fantásticas encovam-se nas órbitas, correndo pelos rostos como fogos-fátuos de sombra.

Se fixamos um corpo, ele furta-se numa obstinação aflitiva à apreensão do olhar.

É um mundo fantástico de incerteza em que mal distinguimos a face do amigo, que nos acompanha, da recordação dos outros, que nos deixaram.

É a hora da dúvida, dos encantamentos e das bruxas. O povo tem as suas visões e ele sabe que a essa hora o Invisível abriu as suas portas».

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).


« - O que vale a pena aprender é como chegar à fenda entre os mundos e entrar no outro mundo. Há uma fenda entre os dois mundos, o mundo dos diableros e o dos homens vivos. Há um sítio em que os dois mundos se sobrepõem. A fenda existe. Abre-se e fecha-se como uma porta ao vento. Para lá chegar, a pessoa tem de exercitar a sua vontade. Melhor dizendo, deve desenvolver um desejo indomável por esse caminho, ser-lhe extremamente dedicado. Mas deve fazê-lo sem a ajuda de qualquer poder ou de qualquer homem».

Carlos Castaneda («Os Ensinamentos de D. Juan. Uma nova forma de conhecimento»).




Os quatro inimigos naturais e simbólicos do guerreiro


Sábado, 8 de Abril de 1962


Nas nossas conversas, Don Juan utilizou ou referiu consistentemente a expressão «homem de conhecimento», mas nunca explicou o que queria dizer com ela. Pedi-lhe que a explicasse.

- Um homem de conhecimento é aquele que observou fielmente as dificuldades de aprendizagem - respondeu. - Um homem que, sem pressas e sem hesitações, foi além do possível na descoberta dos segredos do poder e do conhecimento.

- Qualquer pessoa pode tornar-se homem de conhecimento?

- Não, nem todos.

- Então, que deve alguém fazer para se tornar homem de conhecimento?

- Tem de desafiar e vencer os seus quatro inimigos naturais.

- Depois de derrotar esses quatro inimigos, torna-se um homem de conhecimento?

- Sim. Um homem só pode chamar-se homem de conhecimento se for capaz de derrotar esses quatros inimigos.

- Então, quem derrotar esses inimigos torna-se um homem de conhecimento?

- Quem os derrotar torna-se um homem de conhecimento.

- Mas há alguma exigência especial a cumprir antes de se enfrentar esses inimigos?

- Não. Qualquer um pode tentar tornar-se um homem de conhecimento; na verdade, muitos poucos o conseguem, mas isso é natural. Os inimigos que um homem encontra no caminho da aprendizagem para se tornar homem de conhecimento são verdadeiramente poderosos; muitos sucumbem a eles.














- Que tipo de inimigos são, Don Juan?

Recusou-se a falar dos inimigos. Disse que ainda era necessário muito tempo para que esse assunto fizesse sentido para mim. Tentei manter vivo o tema, e perguntei-lhe se ele achava que eu podia tornar-me homem de conhecimento. Respondeu que ninguém podia dar essa garantia. Mas insisti em saber se havia alguma pista que pudesse utilizar para saber se eu tinha ou não possibilidade de me tornar homem de conhecimento. Respondeu que isso dependia da minha batalha contra os quatro inimigos - se seria eu a derrotá-los ou eles a mim -, mas era impossível prever o resultado dessa luta.

Perguntei-lhe se ele podia utilizar a bruxaria ou a adivinhação para ver o resultado dessa batalha. Declarou liminarmente que os resultados da luta não podiam ser previstos por nenhum meio, porque tornar-se homem de conhecimento era uma coisa temporária. Quando lhe pedi que explicasse este ponto, respondeu:

- Ser-se homem de conhecimento não é coisa permanente. Na realidade, nunca se é um homem de conhecimento. Ou antes, a pessoa torna-se homem de conhecimento apenas por um brevíssimo instante, depois de derrotar os quatro inimigos naturais.

- Importa-se de me dizer, Don Juan, que género de inimigos são?

Não respondeu. Insisti de novo, mas deixou cair o assunto e começou a falar de outro.


Domingo, 15 de Abril de 1962


Quando me preparava para me ir embora, decidi pedir-lhe uma vez mais que falasse dos inimigos de um homem de conhecimento. Argumentei que iria estar ausente durante algum tempo e que seria boa ideia escrever o que ele tinha para dizer para pensar nisso enquanto estivesse ausente.

Hesitou durante um instante, mas depois começou a falar:

- Quando um homem começa a aprender, não tem uma ideia clara dos seus objectivos. O seu propósito é imperfeito; a sua intenção vaga. Espera uma recompensa que nunca se materializará, pois nada sabe das dificuldades da aprendizagem.

«Começa lentamente a aprender… Primeiro aos poucos, e depois em grande quantidade. E os seus pensamentos em breve se chocam. O que ele aprende nunca é o que idealizou ou imaginou, e por isso começa a ficar com receio. Aprender nunca é aquilo que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma nova tarefa, e o medo que o homem experimenta começa a aumentar impiedosamente. O seu propósito torna-se um campo de batalha.

«E assim tropeça no primeiro dos seus inimigos naturais: Medo! Um inimigo terrível… traiçoeiro… traiçoeiro e difícil de ser vencido. Permanece escondido em cada esquina do caminho, atento, à espera. Se o homem, aterrorizado na sua presença, foge, o seu inimigo terá posto fim às suas procuras».

- O que acontece ao homem que foge com medo?

- Nada lhe acontece a não ser que nunca aprende. Nunca se tornará homem de conhecimento. Talvez fique um homem assustado ou inofensivo; de qualquer modo, será um derrotado. O seu primeiro inimigo terá dado cabo dos seus anseios.

- E que pode fazer para vencer o Medo?

- A resposta é muito simples. Não deve fugir. Tem de desafiar o seu medo e, apesar dele, deve dar o passo seguinte da aprendizagem, e o outro, e o outro. Pode estar realmente com medo, mas não deve parar. A regra é essa! E chegará o momento em que o seu primeiro inimigo bate em retirada. O homem começa a sentir-se seguro de si. As suas intenções tornam-se mais fortes. Aprender deixa de ser uma tarefa assustadora.

«Quando esse momento feliz chega, o homem pode dizer sem hesitação que derrotou o seu primeiro inimigo natural».

- Isso acontece de uma só vez, Don Juan, ou a pouco e pouco?

- Acontece a pouco e pouco, mas o Medo é vencido repentinamente e depressa.

- Mas o homem não volta a ter medo se lhe acontecer outra coisa?

- Não. Assim que o homem venceu o Medo, está livre para o resto da vida porque, em vez do medo, adquiriu clareza… uma clareza de mente que apaga o medo. Nessa altura, o homem conhece os seus desejos; sabe como satisfazer esses desejos. Pode prever os novos passos da aprendizagem, e uma grande clareza rodeia tudo. O homem sente que não há nada oculto.

«E assim encontrou o seu segundo inimigo: Clareza! Essa clareza de mente, que é tão difícil de obter, afasta o medo, mas também cega.









«Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a certeza de poder fazer tudo o que lhe agrada, pois vê clareza em tudo. É corajoso porque é claro, e não pára diante de nada por ser claro. Mas tudo isso é um erro; é como algo incompleto. Se o homem cede a este poder de autoconvencimento, sucumbiu ao seu segundo inimigo, e será paciente, quando deve apressar-se. E atrapalha-se com a aprendizagem até acabar por ser incapaz de aprender mais».

- Que acontece ao homem que é derrotado dessa maneira, Don Juan? Morre em consequência?

- Não, não morre. O seu segundo inimigo impede-o de tentar tornar-se um homem de conhecimento; pelo contrário, o homem pode tornar-se um guerreiro bem disposto ou num palhaço. Contudo, a clareza pela qual pagou um grande preço nunca se transformará de novo em obscuridade e medo. Terá clareza enquanto viver, mas nunca mais aprenderá nada.

- Mas que tem de fazer para evitar ser derrotado?

- Tem de fazer o mesmo que fez com o Medo: deve desafiar a sua clareza e utilizá-la para ver e esperar pacientemente e medir cuidadosamente antes de dar novos passos. Acima de tudo, deve pensar que a sua clareza é quase um erro. E chegará o momento em que compreenderá que a sua clareza era apenas um ponto à sua frente. E assim terá vencido o seu segundo inimigo e chegará a uma posição em que nada pode voltar a prejudicá-lo. Isto não será um erro. Não será apenas um ponto à sua frente. Será o verdadeiro poder.

«Nesta altura, saberá que é finalmente seu o poder que há tanto tempo procura. Pode utilizá-lo para fazer o que lhe agrada. O seu aliado estará às suas ordens. O seu desejo será a regra. Vê tudo quanto o rodeia. Mas também deu de caras com o seu terceiro inimigo: Poder!

«O Poder é o mais forte de todos os inimigos. E, naturalmente, o mais fácil é ceder a ele; afinal, o homem é verdadeiramente invencível. Ele manda; começa por assumir riscos calculados e acaba a impor regras, porque é um senhor.

«Nesta fase, um homem mal repara que o seu terceiro inimigo está tão perto de si. E, de repente, sem saber, perde de certeza a batalha. O seu inimigo tê-lo-á transformado num homem cruel, caprichoso».

- E perde o seu poder?

- Não, nunca perde a sua clareza ou poder.

- Então, o que o distingue de um homem de conhecimento?

- Um homem que é derrotado pelo Poder morre sem realmente saber enfrentá-lo. O Poder é apenas um fardo sobre o seu destino. Tal homem não tem domínio sobre si próprio e não sabe dizer quando ou como utilizar o seu poder.

- A derrota por alguns destes inimigos é uma derrota final?

- Claro que é final. Assim que um destes inimigos vencer um homem, ele não pode fazer mais nada.

- Por exemplo, é possível que um homem que seja derrotado pelo Poder veja o seu erro e se modifique?

- Não. Assim que o homem ceder, está acabado.

- Mas, e se estiver temporariamente cego pelo Poder e depois recusar?

- Isso significa que a batalha ainda está a decorrer. Isso significa que ele ainda está a tentar tornar-se um homem de conhecimento. Um homem é derrotado apenas quando já não tenta, quando se rende.





Carlos Castaneda











- Mas então, Don Juan, é possível um homem entregar-se ao Medo durante anos, mas acabar por o vencer.

- Não, isso não é verdade. Se ele cede ao Medo, nunca o conquistará, porque se afasta da aprendizagem e nunca mais volta a tentar. Mas se procurar aprender durante anos no meio do seu medo, eventualmente vencê-lo-á, porque nunca se lhe terá realmente rendido.

- Como é que pode derrotar o seu terceiro inimigo, Don Juan?

- Tem de o desafiar deliberadamente. Tem de perceber que o poder que aparentemente conquistou na realidade nunca é seu. Tem de se manter constantemente alerta, lidando cuidadosa e fielmente com tudo quanto aprendeu. Se perceber que a Clareza e o Poder sem o seu controlo são piores do que erros, chegará a um ponto em que tudo é posto em cheque. Saberá então quando e como utilizar o seu poder. E assim terá derrotado o seu terceiro inimigo.

«Então, no final da sua jornada de aprendizagem, e quase sem disso se aperceber, estará perante o último dos seus inimigos: Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, aquele que não será capaz de derrotar completamente, mas apenas enfrentado.

«É o momento em que o homem já não tem medo nem é impaciente na sua clareza de mente… O momento em que todo o seu poder é posto em cheque, mas também o momento em que tem um desejo profundo de descansar. Se ceder totalmente ao seu desejo de parar e de esquecer, se se entrega ao cansaço, terá perdido o seu último combate, e o seu inimigo transforma-o numa criatura velha e frágil. O seu desejo de retirada dominará toda a sua clareza, poder e conhecimento.

Mas, se o homem se libertar do seu cansaço e viver o seu destino, pode então ser chamado homem de conhecimento, mesmo que seja apenas no breve instante em que conseguiu enfrentar e vencer o seu último e invencível inimigo. Esse momento de clareza, poder e conhecimento é bastante».

(in Carlos Castaneda, Os Ensinamentos de D. Juan. Uma nova forma de conhecimento, Publicações Europa-América, pp. 72-77).
















Ver aqui e aqui


terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Alto sonho de amor que teve Adão...

Escrito por António Correia de Oliveira



Criação de Adão, por Michelangelo Buonarotti (Capela Sistina).









Adão se entristeceu: ele era só!
E Deus o compreendia… Sim! eu creio
Que Deus, a vez primeira, teve dó.

- Sozinho… - E adormeceu: o sonho veio:
Sonho de amor que foi o sol e a lua
De quanto sonho o mundo inda anda cheio!

Ele era toda a alma; ele era a sua
Carne de fogo: o sangue refervente
Que em vaporosa irradiação flutua.

Era Espírito e Corpo, juntamente,
Alto sonho de amor que teve Adão
Na imensa noite que deu luz à gente.

E dele, (acaso lhe tremia a mão…)
Fez Deus a linda e frágil Criatura
Sem a qual tudo o mais seria em vão.

Hossana! Glória! - Eis Eva, ingénua e pura.
E Deus sorria a Adão, e Adão sorria
À feminina e doce formosura.

Verbo Ser e Verbo Amar



A Mulher, o Homem e a Serpente, por Byam Shaw



Deus Julgando Adão, por William Blake


sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Por Portugal. A Consagração dos Heróis

Escrito por Leonardo Coimbra






«Nascido num país onde é intenso o diálogo entre a alma e a paisagem, mas educado em circunstâncias que prescreviam o método hipotético-construtivo como legítimo caminho para a universalidade, Leonardo Coimbra procurou ultrapassar a contradição mortal do pensamento português. Se esse esforço solidificou numa obra imperfeita, mas por muitos aspectos valiosa, não ficou perdida a inspiração originária que reconhecemos vivente nalgumas páginas admiráveis.

A personalidade de Leonardo Coimbra, pelo que denota de singular na sociedade portuguesa, aparece como digna de exaustivo estudo; mais do que estudar essa personalidade, urge revelar o perene valor cultural e nacional da obra filosófica que realizou; importa iluminá-la e avaliá-la para que o seu conteúdo perdurável entre definitivamente na tradição espiritual da Pátria».

Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra. Apontamentos de biografia e de bibliografia»).



O homem vive em Deus, quando é instrumento da vontade de amar que atravessa as almas. Duas almas se elevam nas alturas, obedecendo em seu ritmo ao bater ansioso do coração da Pátria! Voam em pleno espaço e, cá em baixo, as nossas orações são, brancura de espuma, o sulco da sua glória!...

As nações, como os homens, valem pela sua contribuição para o progresso espiritual da humanidade. Assim, um povo pequeno e sem grandes relações internacionais pode valer muito pela harmonia da vida social que saiba realizar e seja exemplo para os outros povos; assim, um povo pequeno e até de vida interna pouco perfeita pode muito valer pela grandeza das suas criações filosóficas, religiosas e científicas, que para os outros povos ficam a marcar como estrela polar dos seus rumos de progresso espiritual.

Assim, e dum certo modo, está no primeiro caso a Suíça de hoje; como no segundo estiveram Atenas e Israel. A Bélgica de ontem, frente à Alemanha, deu seu corpo ao sofrimento e à morte, para dar seu espírito ao dever e à lealdade.

Renasceu em beleza; mas, ainda que morta, fosse no espaço da sua geografia e no tempo da sua história, teria, para viver, todo o espaço e todo o tempo em que vivesse a actividade do Espírito.

Portugal foi dos pequenos povos ao serviço do progresso espiritual do homem.

Como chama brotando do coração duma árvore e correndo a incendiar a floresta, brotou uma fé no coração de alguns homens e Portugal foi a dilatação dessa fé, a chama daquele incêndio espiritual.

Ardeu até à beira-mar e, refervendo de encontro às águas do mar salgado, traçou no seu verde corpo os novos caminhos do homem: e a cruz das caravelas foi marcando os caminhos do solo pátrio.

Portugal deu o planeta à humanidade, e, como Bartolomeu, Gama, Cabral e Magalhães, cinturou o planeta num abraço, unindo mais e mais os homens, entreabrindo-lhes os segredos da terra e do céu, alargando as asas da nova imaginação científica.

Tem, pois, a Pátria portuguesa esta glória efectiva de ter contribuído, como o fizeram Atenas, Israel, Roma, Paris, etc., para o progresso espiritual da humanidade.

Esta, a sua Tradição de valor e, perguntar se o presente é digno do passado, é simplesmente querer saber se os esforços espirituais que fizeram o passado ainda existem no presente.

As forças espirituais, e não os moldes em que se informaram, porque continuar a Tradição da audácia marítima não é navegar nas velhas naus das Descobertas, mas foi antes conquistar o submersível e os novos elementos de domínio dos mares.

A Tradição não é a carga inerte das obras do passado, mas o espírito vivo que as criou e que, por isso mesmo que já as criou, terá hoje de criar diferentemente.

É esta Tradição viva, que hoje ergue nas asas da glória os heróis portugueses Gago Coutinho e Sacadura Cabral, fazendo que o povo, que à humanidade dera um maior convívio pela travessia dos oceanos, aumente infinitamente esse convívio pela descoberta do caminho dos ares.

E a mesma cruz que à frente dos guerreiros lusíadas demarcou o solo da Pátria e riscou o caminho dos ares é a que, mais alta que nunca, procurou, por entre os outros, o caminho das alturas.

Sobre o mar, livro aberto rezando as oitavas da nossa glória, Coutinho e Cabral uniram, pelo céu e numa viagem da Saudade, os corações de duas pátrias que só têm as mesmas palavras para cantar a nova Esperança!

Para Coutinho e Cabral, que levaram o coração da Pátria ao beijo mais próximo do Sol e da Glória, a comovida gratidão do nosso Amor!

(in Leonardo Coimbra, «Dispersos. V. FILOSOFIA E POLÍTICA», Editorial Verbo, 1994, pp. 275-277).



Gago Coutinho e Sacadura Cabral antes de partirem.



Gago Coutinho e Sacadura Cabral a bordo do Lusitânia (1922).






Rota da Primeira Travessia Aérea do Atlântico Sul.



Ao amarar na Baía de Guanabara faz as salvas de ordenança.



Baía de Guanabara vista de satélite da NASA. Baía localizada no estado do Rio de Janeiro, no sudeste do Brasil.


























domingo, 20 de janeiro de 2019

Na Assembleia Nacional também se combate

Escrito por Ernesto Palma







1. Organograma dos deputados 


Na Assembleia Nacional, os 144 deputados que representam os 10 milhões de deputantes que todos nós passamos por ser, agrupam-se em diversas ou conversas correntes de opinião que não chegam a ser ideologias nem a constituir partidos, mas que dia após dia, um tanto graças a discursos, intervenções e votos que vão fazendo e distribuindo naquela Assembleia, outro tanto por virtude da opinião que, cá fora, se vai formando das opiniões dos deputados, vai adquirindo a forma de quadros de um organograma.

Agrupam-se, num dos quadros, aqueles deputados que, nas conversas cá de fora, se designam por ultras. Acontece, porém, que salvo uma única excepção, ninguém lá dentro como cá fora, se deixa designar por ultra. A excepção que, por única, é corajosa e franca, é o deputado Casal Ribeiro. Foi ele quem, referindo-se à enigmática SEDES, afirmou que nada se sabe desse agrupamento que se diz puramente economista mas se regulamenta segundo determinações políticas e, aprovado pelo Governo, constitui um factor de confusão. Ora ele, pelo contrário, diz bem alto aquilo que é, e, portanto, quando de si se trata todos podem saber o que há a contar. As duas observações são lógicas e verdadeiras.

No lado contrário ao dos ultras, ninguém se situa ou afirma situar-se. Na Assembleia, claro. Porque, cá fora, assim como ninguém é ultra, assim toda a gente é contra os ultras. E resta, então, a populosa gama dos medianeiros, dos do centro, topografia paradoxal pois, definindo-se o centro e o meio como o que fica entre dois extremos, ao extremismo que lá está não corresponde senão o vazio no lugar onde deveria estar o extremismo contrário.

Nesta gama, pois, de paradoxais medianeiros, procura-se distinguir sucessivamente:

1. Os que se mantêm fiéis a um salazarismo que entendem dever continuar sem evoluir são muito poucos, esses mesmos, com o receio de poderem ser confundidos com os ultras.

2. Os que, segundo a fórmula do Chefe do Governo, são por um salazarismo que continua mas evolui. Constituem o modo oficial de ser marcelista e o seu principal representante deveria ser, logicamente, o deputado que foi designado, pelo Governo, como líder da Assembleia Nacional, Franco Nogueira. A imagem que, entretanto, se formou de Franco Nogueira, leva a alargar a este segundo quadro do organograma o receio da confusão com os ultras.

3. Os que, no outro balanceamento do ponteiro marcelista, querem a evolução descomprometida da continuação. Neste quadro figuram os deputados que representam o predomínio do economismo sobre a política, como Magalhães Mota. E foi nele que se salientou a personalidade mais firme desta legislatura, o deputado Camilo de Mendonça, campeão (sem ironia) do nordeste transmontano.

4. Os que, para lá da continuação que ignoram, e para lá da evolução que esquecem, são apresentados como reformistas e progressistas, que é a versão actual da famosa ordem e progresso do republicanismo positivista da belle époque. Entre eles se encontram as personalidades mais brilhantes, mais juvenis e joviais, mais abertas, como o médico Miller Guerra, o empresário-jornalista Francisco Balsemão e o católico post-concílio Sá Carneiro. Todos eles se fizeram já notar, não só entre as solenes bancadas da Assembleia como cá fora: Miller Guerra afirmou-se o campeão (também sem ironia) do reformismo universitário, propugnando o rejuvenescimento das universidades existentes e a criação de novíssimas universidades. Fê-lo num «aviso-prévio» muito discutido que, entre a discussão, permitiu uma bem meditada intervenção do deputado Aguiar e Silva e um veemente elogio da contestação estudantil do ISCEF e do professor daquele instituto, candidato a deputado pela CDE, Francisco de Moura. O empresário-jornalista Francisco Balsemão que vê, naturalmente, os jornais darem grande relevo às suas, embora apressadas e raras, intervenções na Assembleia. Deve registar-se que esta espécie de publicidade de que dispõe o deputado, não deixa de provocar certos ciúmes em seus colegas e pares. Quando, recentemente, a família Balsemão negociava a venda das suas acções do «Diário Popular», risonhamente se ironizava, entre as bancadas da Assembleia, que Francisco Balsemão, deixava de vender jornais para vender o jornal. E é muito curioso lembrar que quando foi pela primeira vez eleito Governador da Califórnia, o actor Ronald Reagan, F. Balsemão publicava no seu jornal um indignado artigo insurgindo-se contra um processo eleitoral que permite escolher para Chefe de um Estado um homem que, por ser actor, dispõe de uma máquina publicitária montada. Sempre, na verdade, os políticos invejaram os actores. E vice-versa.

5. À esquerda deste último quadro, o organograma está vago: ou a preencher um dia ou definitivamente vazio.










2. Vamos escolher um caso concreto 


A melhor maneira, a mais segura e científica, de apreciar a capacidade do organograma, é observar o seu funcionamento através de exemplo concreto. O exemplo foi-nos recentemente oferecido: a discussão da Lei do Cinema. Não o deixemos fugir e observemos como as coisas se passaram.

Já no n.º 2 de A ILHA pudémos informar os nossos leitores de que o que estava em causa na Lei do Cinema, era:

a) A regulamentação legal de uma actividade que, há cerca de 12 anos, se encontrava sem legislação própria.

b) A capacidade de resistência do país e das suas instituições aos grupos de pressão, com origem estrangeira e natureza económica, que conseguiram manter, durante esses 12 anos, legalmente irregulamentada uma actividade de ampla e profunda influência sobre as populações.

c) A medida do interesse das instituições e do país – representado na Assembleia Nacional – por uma actividade que, além de económica, constitui um poderoso veículo de formação mental das populações. Suspensa a anterior legislação por volta de 1958, logo se constituiu uma Comissão para estudar o projecto de uma nova lei que só com o actual Governo, ficou concluído e passou, das mãos do Governo, para a Câmara Corporativa. Como se sabe, os Projectos-Lei, antes de serem discutidos na Assembleia Nacional, são apreciados pela Câmara Corporativa que sobre eles dá o respectivo parecer que pode ir até à proposta de um texto completamente remodelado. Foi o que aconteceu a este Projecto-Lei do Cinema. O texto que o Governo apresentou, tinha os seguintes núcleos estruturais:

1. Criação de um Instituto Português do Cinema dispondo dos meios para promover a produção cinematográfica.

2. Regularização oficial do preço dos bilhetes.

3. Condicionamento da instalação de empresas cinematográficas.

4. Modos de promover a produção cinematográfica.


3. O caso concreto também serve para conhecermos a Câmara Corporativa 


O parecer da Câmara Corporativa foi espantosamente exemplificativo dos extremos até onde pode chegar a sua proposta de alteração do projecto governamental de uma lei. A Câmara Corporativa é constituída por representantes das actividades empresariais e profissionais, agremiadas e sindicalizadas, e os seus pareceres são, como na Assembleia Nacional, estudados e preparados por comissões cujos membros são escolhidos entre os representantes daquelas actividades abrangidas pelo assunto de que se ocupa o parecer. No caso da lei do cinema, destruída e inexistente como está, há mais de 12 anos, toda a produção nacional, seria inevitável que só se pudesse representar na Câmara Corporativa o que de cinematográfico existe em Portugal, isto é, a distribuição e exibição de filmes estrangeiros. O parecer da Câmara Corporativa iria pois, inexoravelmente, traduzir a defesa dos interesses desse sector ou desse predomínio, opondo-se a todas as medidas que o Governo tinha preparado no Projecto-Lei para promover uma produção nacional. Os extremos a que o parecer da Câmara Coporativa chegou, ultrapassaram, todavia, todas as previsões. Este facto mais significativa torna a observação do procedimento da Assembleia Nacional ao deparar perante si dois textos, um do Governo outro da Câmara Corporativa, que eram essencialmente contraditórios. Consideremos o parecer da Câmara quanto a núcleos fulcrais do Projecto-Lei que há pouco resumimos:

1. Admitindo a criação do Instituto Português do Cinema, a Câmara Corporativa propunha:

a) Que não ficasse ele integrado em nenhum organismo do Estado.

b) Que o seu Presidente fosse o Presidente dos Grémios do Cinema que, dada a situação actual, é o representante dos valores económicos e culturais estrangeiros.

2. Em nome «da livre iniciativa que deve existir nas actividades cinematográficas», a Câmara Corporativa propunha que os preços dos bilhetes nada tivessem a ver com qualquer espécie de condicionalismo social.

3. Sobre o condicionamento das empresas cinematográficas, a C. C. propunha:

a) Que se não autorizasse a instalação de novas salas de exibição nas localidades onde já exista alguma.

b) Que se não autorizasse a formação de novas empresas distribuidoras.

c) Que se sujeitasse a autorização prévia a instalação de novas empresas de estúdios e laboratórios.



4. Os modos de promover a produção cinematográfica foram objecto do mais subtil tratamento pela Câmara Corporativa. Analisemos alguns pontos:

a) A «continuação» é o velho cavalo de batalha em todos os países invadidos e esmagados pela importação cinematográfica estrangeira. O cinema é uma arte internacional e raros países têm possibilidades de, sem condicionarem a exibição de filmes importados, competirem com 3 ou 4 grandes indústrias americanas e europeias. A forma mais eficaz e justa de estabelecer esse condicionamento é a «contingentação». Consiste ela em determinar o número de filmes nacionais que cada sala tem a obrigação de exibir por um número fixado de filmes estrangeiros. No Brasil, por exemplo, a contingentação é de 1 filme nacional para 4 estrangeiros; na Espanha, de 1 para 3.

O estabelecimento da contingentação imediatamente tem suscitado o aparecimento e desenvolvimento do cinema nacional. No Brasil, em quatro anos, a indústria saltou de uma produção irrisória para a produção de 120 filmes em 1970.

Pois bem: a contingentação estava prevista no Projecto-Lei apresentado pelo governo e foi ela aprovada pela Assembleia Nacional. Mas, no caminho do governo para a Assembleia, a Câmara Corporativa repudiou-a e, em seu lugar, propôs... o quê? A proibição de se criarem novas empresas distribuidoras (Base XXV do Projecto-Lei)!!!

b) Por contingentação de uns tantos filmes estrangeiros por uns tantos filmes nacionais, o leitor só pode entender que os números são o que são, e que um filme é um filme. Ingénuo leitor! A Câmara Corporativa pretendeu insinuar (Base XXVI) que na contingentação se não deve distinguir entre curtas e longas metragens, donde resultaria, evidentemente, que um breve documentário nacional logo daria direito à exibição de algumas dezenas de longas metragens estrangeiras!


4. As principais figuras que entram em campo 


Logo que o parecer da Câmara Corporativa foi conhecido, o desânimo e a desesperança inundaram os meios interessados em ver dar, aos cidadãos portugueses, essa forma de expressão que o cinema é. E deve notar-se que esses meios não são apenas os dos humildes artistas e modestos profissionais, mas também os de certas autoridades oficiais, como aquelas, por exemplo, que estudaram e elaboraram o Projecto-Lei que o parecer da Câmara Corporativa ameaçava tornar ineficaz e nulo.

Mas ao parecer da Câmara Corporativa sucedia-se a discussão na Assembleia Nacional. Previamente, uma comissão de parlamentares – a Comissão de Educação – estudaria o Projecto-Lei e o corporativo parecer. A Comissão é presidida por Veiga de Macedo, antigo subsecretário da Educação e Ministro das Corporações. É um homem de 53 anos, de cabelos precocemente brancos, um toque honesto de província no vestuário e na pronúncia e um respeito raro, talvez singular em políticos, pela cultura. Foi esse respeito que o levou a fazer, na tribuna parlamentar, o elogio de José Régio com uma citação de Álvaro Ribeiro, que o Presidente da Assembleia, Amaral Neto, não deixou passar sem uma irónica observação de estranheza. Quando membro do Governo, obteve a colaboração de escritores, cineastas e actores, sobretudo para a Campanha de Educação de Adultos. Iniciou assim, no Governo, o recurso intensivo aos instrumentos de grande publicidade e informação o que, nos corredores ministeriais, os velhos funcionários identificavam, a sorrir, com um desejo ostensivo de exibição que os seus sucessores vieram a ultrapassar largamente e sem justificação de estarem a fazer uma campanha popular.

Ao minucioso estudo que o deputado Veiga de Macedo fez da Lei do Cinema não terá sido estranha a saudade dessa antiga colaboração, do convívio que ela lhe deu e do reconhecimento daquilo que, brincando, se diz nos bastidores teatrais: que neste país só os actores e alguns políticos trabalham deveras. São também os artistas e os políticos as «classes» que atingem maior longevidade. Efeitos do trabalho, do contacto com as multidões, dos aplausos todos os dias? De qualquer modo, a Lei do Cinema subiu, bem estudada, à tribuna parlamentar. Na «discussão na generalidade» ainda algumas intervenções, ingénuas umas, demasiado «sábias» outras, interromperam o orador. Entre as ingénuas, contou-se a de um deputado que se pronunciou contra a dobragem dos filmes estrangeiros, por causa dos surdos [sic!]. Entre as demasiado «sábias», contou-se a de Francisco Balsemão que, na linha do liberalismo neocapitalista, reivindica-se, em termos pouco definidos, liberdade para o cinema. A ninguém damos autoridade para defender, mais do que a nós, a liberdade do cinema. Mas demasiado bem sabemos como é que os liberalistas de ontem e de hoje, utilizam isso a que chamam liberdade. O mesmo parecer da Câmara Corporativa tinha acabado de nos dar mais um exemplo: recusando, em nome da liberdade, a regulamentação oficial dos preços dos bilhetes, mas exigindo, sem apelar para a liberdade, o controle do cinema de amadores (Base XIII) e a proibição de novas empresas distribuidoras. A intervenção de Francisco Balsemão obteve grande relevo nos jornais dessa tarde.




















5. Como alinharam os deputados 


Ultrapassada a «discussão na generalidade», a Assembleia Nacional entrou na «discussão na especialidade», aquela em que se analisam as Bases da Lei, uma a uma, palavra a palavra, e se aprovam os textos definitivos pelo processo dos votos.

A discussão prolongou-se por 4 sessões. Dos 144 deputados, assistiram à 1.ª sessão 95, à 2.ª e 3.ª 104, à 4.ª 87. Segundo as informações que colhemos, é esta a frequência habitual às sessões da Assembleia. Todavia, como adiante veremos, os jornais de Lisboa afirmaram, com relevo, que a frequência foi, neste caso, muito diminuta.

Entre os 44 deputados que, em média, faltaram às sessões que analizamos, figuraram alguns dos mais representativos das correntes de opinião dominantes na Assembleia. O deputado Melo e Castro que dirigiu, como presidente executivo da União Nacional, a campanha eleitoral em que foram escolhidos todos os actuais deputados, esteve ausente a todas as sessões. Ausente também em todas as sessões, o empresário-jornalista Francisco Balsemão que, no entanto, subscreveu as propostas defendidas pelo deputado Magalhães Mota. Franco Nogueira, líder da Assembleia, faltou a 3 das 4 sessões. Miller Guerra, que intervém frequentemente em todas as questões de carácter cultural, faltou a 2 sessões. Camilo de Mendonça, Sá Carneiro, Henrique Tenreiro e Casal Ribeiro, faltaram a 1 sessão. Os principais representantes das diversas correntes de opinião, não dedicaram, pois, ao assunto um interesse pleno.

Todas as propostas apresentadas e justificadas por Veiga de Macedo foram aprovadas sem oposição. Dos 98 deputados que, em média, estiveram presentes, apenas dois deles, Magalhães Mota e Reboredo e Silva, se fizeram ouvir. O último, apenas para falar à margem do assunto em discussão. Disse discordar da designação de «Conselho Administrativo» que, na sessão anterior a que ele não assistira, fora aprovada para designar o escalão supremo do I. P. C. Os nossos leitores poderão encontrar no n.º 1 de A ILHA as razões que temos para aplaudir esta intervenção.

Magalhães Mota foi mais activo: interveio em 2 sessões, deu colaboração à Comissão presidida por Veiga de Macedo e apresentou duas propostas: uma referente à Base XXII que autoriza a dobragem de filmes e outra destinada a proibir a projecção de filmes publicitários. Ambas eram assinadas por ele, por F. Balsemão, por Sá Carneiro e pelo redactor do «Jornal da Madeira», Eleutério Aguiar. A segunda, sobre a proibição de filmes publicitários, teve de ser retirada da mesa pois existe e está em vigor – embora não se execute! – uma disposição legal que a determina. A primeira, que foi aprovada, liberta os distribuidores – exibidores (ou seja: os filmes estrangeiros) da obrigação da dobragem que só traria vantagens à indústria e à arte do cinema nacional. Tais vantagens seriam as seguintes:

a) Maior volume de trabalho para os nossos estúdios e laboratórios.

b) Maiores possibilidades de trabalho e apuramento de dicção para os nossos artistas.

c) Melhor possibilidade de apreciação para os espectadores: os filmes portugueses – que não são legendados – oferecem-se aos espectadores integralmente, enquanto os filmes estrangeiros – legendados – desviam ¾ do tempo de espectação para a leitura das legendas. O espectador é por isso um crítico atento quando vê um filme português e um crítico desviado quando vê – melhor, quando lê – um filme estrangeiro.


6. A Imprensa falseia o jogo 


Logo no início, a imprensa deu sinal de como ia considerar a discussão na Assembleia Nacional. Quando, como dissemos já, afirmou e deu relevo à afirmação de que a habitual assistência às sessões que se verificou era uma frequência diminuta. Daí deduziria o leitor de que os deputados se mostravam desinteressados do assunto, que, portanto, o assunto não devia interessar a ninguém. Assim se desviava a atenção da opinião pública a que as instituições e o governo não podem deixar de ser sensíveis.

Aliás, já anteriormente, o «Diário de Notícias», principal orgão da nossa imprensa (120 000 exemplares de tiragem, equivalente a 500 000 leitores) fizera a sua campanha discreta sobre a inoportunidade da Lei do Cinema, como os nossos leitores podem verificar pela ILHA, n.º 4.

Desde início, portanto, a Imprensa se colocou ao lado dos distribuidores-exibidores, isto é, ao lado do cinema estrangeiro, dos interesses criados, da colonização do país. Há excepções, é claro... mas tão débeis, quase inaudíveis...

O noticiário, depois, foi comprovando o inicial propósito. O problema da contingentação quase não foi noticiado e, no que foi, sem qualquer relevo. A maior «caixa» dada a toda a longa discussão parlamentar, coube à intervenção – significativa – de Francisco Balsemão. Quando, portanto, o deputado Miller Guerra veio, duas semanas mais tarde, alertar a opinião, a Assembleia e o Governo sobre o que se está a processar no mundo da Imprensa – a sua concentração nas mãos de... dois? um?... potentados económicos – a dependência dos potentados económicos já era patente no «tratamento» jornalístico da discussão parlamentar que escolhemos para observarmos como funciona a Assembleia Nacional. Contaram-nos, entretanto, que, em conversa nos Passos Perdidos, um jornalista teria falado a Veiga de Macedo na compra de jornais pelos potentados económicos, o que vai colocar a Imprensa nas mãos da plutocracia. «Vai colocar? – Teria respondido Veiga de Macedo. O que se está a passar é apenas uma mudança de mãos. E podemos até pôr a nossa esperança em que ela fique em melhores mãos».




7. As fendas na muralha 


A Assembleia Nacional aprovou, pois, a Lei do Cinema. Depois de aprovadas, as leis são regulamentadas; e depois executadas. Da execução e da regulamentação pode depender tudo. Se a lei – composta, como dizem os juristas, de letra e de espírito – permitir que pela letra se faça o que não condiz com o seu espírito, tudo se pode perder e ficar inútil o bom trabalho da Assembleia Nacional. Os «corvos da burocracia» são hábeis em descobrir e alargar as fendas da letra por onde atacam o espírito. Ora é preciso reconhecer que algumas fendas esta Lei do cinema deixou a descoberto. Limitemo-nos ao ponto crucial: a contingentação. Aí reside todo o segredo dos interesses criados onde a colonização campeia. Aí, portanto, se hão-de procurar as fendas.

A primeira ia sendo lá deixada por uma das duas propostas do deputado Magalhães Mota, também assinada por Francisco Balsemão e Sá Carneiro. Diria ela que os filmes nacionais a exibir obrigatoriamente não deveriam ter sido produzidos há mais de três anos. Veiga de Macedo aceitou tal proposta, mas acrescentando que tal limitação só se aplicaria quando não houvesse em exibição filmes estrangeiros também produzidos há mais de três anos. A fenda não ficou totalmente colmatada, mas já foi alguma coisa.

Outra fenda reside na Base XXV, aquela onde «se excluem do contingente dos filmes nacionais aqueles que o I. P. C. considere não apresentarem nível técnico e artístico bastante». Também aqui seria imprescindível um aditamento análogo ao que Veiga de Macedo juntou à proposta de M. Mota e que, confiamos, lhe virá a ser feito na regulamentação da Lei. Com efeito, a exclusão prevista destina-se a prevenir abusos industriais; mas só será justa se apenas se verificar quando não haja em exibição nenhum filme estrangeiro de nível técnico ou artístico inferior ao filme português cuja exclusão se considere.

Mas a mesma regulamentação poderá também deixar fendas a descoberto. E, então, tudo dependerá da execução. A Lei entrega a execução a um novo organismo, o Instituto Português do Cinema. Este instituto, e com essa mesma designação, foi proposto, há 13 anos, no jornal «57», em artigos largamente fudamentados, assinados por Orlando Vitorino, António Quadros e Afonso Botelho. A proposta foi, então, entusiasticamente defendida pelo jornal «O Século». Mas, durante 13 anos, não foi considerada nem pelo Governo, nem pelos organismos corporativos, nem pelas instituições do Estado. Reaparece, agora nesta Lei, embora diminuído das funções escolares, oficinais e estéticas que os seus propositores nele incluíam.

Do I. P. C., orgão executivo da Lei, dependerão, pois, as condições para a afirmação de um cinema português, isto é, as condições para que aos portugueses não seja vedado, como tem sido, o acesso à forma de expressão mais característica do nosso tempo. A Câmara Corporativa bem o teve em conta quando propôs que a sua presidência fosse entregue ao presidente dos Grémios do Cinema. A Assembleia Nacional também o teve em conta quando repudiou tal proposta. Foi a primeira fase da luta pelo comando.


8. Conclusão e fecho 


O leitor que termine esta leitura, terá de concluir que a Assembleia Nacional fez um bom trabalho. Dado, porém, que a chamada «discussão» parlamentar consistiu num longo monólogo de um único deputado, apenas cortado por duas brevíssimas interrupções de outro deputado, o leitor ver-se-á obrigado a também concluir que o bom trabalho foi realizado pela oratória de um só deputado, apoiado sem dúvida numa comissão, e pela aprovação taciturna dos demais 143 parlamentares. Temos, assim, que o deputado Veiga de Macedo estudou minuciosamente a Lei e revelou um profundo conhecimento da actividade cultural a que ela se refere; e temos, na taciturnidade da Assembleia, a manifesta compreensão e confiança de 143 deputados.

Que acontecerá, porém, quando outro assunto cultural seja apresentado aos parlamentares e o seu estudo não seja entregue a Veiga de Macedo?


Texto de Orlando Vitorino, in Jornal da Madeira, Funchal, 25 de Março de 1971, pp. 1-3 (suplemento "A Ilha", n.º 6). Assinado como Ernesto Palma.


1.ª representação em Portugal de Jacob e o Anjo, concretizada pela Companhia do Teatro Popular de Lisboa, a 22 de Maio de 1968, no Teatro da Estufa Fria, numa encenação de Orlando Vitorino, com cenários e figurinos de Pinto de Campos. Alguns intérpretes foram: Augusto de Figueiredo, Andrade e Silva, Ricardo Alberty, Madalena Sotto, Henrique Viana, Alves da Costa, Assis Pacheco…