quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Adoração

Escrito por Leonardo Coimbra








Brevíssima explicação de António Telmo

«(...) [Álvaro Ribeiro] Viu no poema Adoração de Leonardo Coimbra o Cântico dos Cânticos em língua portuguesa e exaltou-o.

O texto da Adoração é a verdade do amor em Leonardo Coimbra, não importando, pois, as investigações biográficas e bibliográficas para saber se houve ou não uma aluna sua que o trouxe apaixonado, se foi neste ou naquele período da vida do homem, se foi no Liceu ou na Universidade. O livro foi editado em 1921 pela Renascença Portuguesa, mas terá sido escrito por volta de 1914. Em 1921, como no fim da vida, era a mesma verdade do amor.


É este livro o menos considerado pelos admiradores do filósofo. Basta dizer que Sant'Anna Dionísio, essa nobre e inteligente alma de pensador, não o incluiu nos dois volumes das Obras editadas pela Lello. Álvaro Ribeiro parece ter sido, de facto, o único discípulo a prestar louvor escrito aos Cantares, nos quais vê o Cântico dos Cânticos em língua portuguesa. Contribuiu para a menorização do livro a reacção dos moralistas de esquerda e de direita, sempre apostados em dar como uma virtude a inveja que sofrem com a felicidade de outrem no amor. Homem Cristo invectivou Leonardo Coimbra no Parlamento por ter escrito e publicado um livro que desonra a família pelo louvor do adultério.


A comparação por Álvaro Ribeiro com o poema de Salomão não incide apenas no plano da literatura. Sabemos como este discípulo de Leonardo fez da reflexão e da doutrinação sobre o amor entre o homem e a mulher o tema dominante do seu pensamento. O amor é um sacramento, isto é, um mistério, não no sentido vago desta palavra, mas na sua acepção etimológica, que a torna significativa de uma relação singular e concreta com a verdade divina. O sacramento reconhece ou sagra o que já é misterioso no plano natural; revela ou faz ver em sua relação com o sobrenatural aquilo que à almas de superfície parece apenas animal. Daqui a sempre possível verdade do amor nas relações dadas socialmente por ilícitas, como se julgam serem aquelas que põem em perigo o composto familiar. Se o sacramento do matrimónio fosse apenas a legalização das relações sexuais, não faria mais do que justificar a prostituição. Seria então um factor de normalização e de banalização do que aos amantes sempre aparece como excepcional e compreende-se assim quanto é certa e certeira a observação de Orlando Vitorino de que "só no adultério há verdadeiro amor".


(...) O sentimento do excepcional, que os amantes experimentam numa relação afinal comum a todos os homens e a todas as mulheres é que é o sinal, quando não está presente, de que a união é vivida como um acto animal. Donde emerge e porque emerge tal sentimento?


Ao homem de coração e de inteligência, de que fala Leonardo Coimbra, essa sensação íntima de excepção ou de singularidade acompanha-o em todos os actos da sua vida, mas o amor não deixa indiferentes, isto é, torna diferentes todos os mortais, é mesmo a única relação, com a música, capaz de acordar nos brutos o sentimento do infinito. É uma ressonância efémera, porque logo reaparecem os interesses egoístas e inferiorizantes. Amar é também uma arte e daí o valor supremo dos livros de Álvaro Ribeiro que lhe subordina todo o ensino. Educação sexual deveria significar educação de um sexo para o outro sexo pelo estudo das disciplinas que formem no rapaz, por um lado, e na rapariga, por outro lado, distintas mas superiores consciências da enteléquia masculina e da enteléquia feminina. Tal é o sentido de livros como Escola Formal, o Liceu Aristotélico e os Estudos Gerais. A tendência actual é a de propor uma disciplina de Educação Sexual integrada no corpo neutro das restantes disciplinas com o objectivo de tornar vulgar, isto é, uma coisa como as outras, a experiência singular e misteriosa do amor. Dado como inevitável o movimento do homem e da mulher para a liberdade, os pedagogos levantam as proibições morais que, durante muitos séculos, utilizaram contra o amor, mas, ao fazerem a exaltação da uniformidade dos sexos, continuam a impedir o Milagre do Encontro» (in António Telmo, A Verdade do Amor, seguido de Adoração, Cânticos de Amor de Leonardo Coimbra, Zéfiro, 2008, pp. 78-80).




A Floresta dos teus cabelos




Deixa tombar os teus cabelos, amor do meu desvairo!

Revoltos, negros, torcidos como serpentes, trouxe-os Dante da sua viagem ao Inferno.

Solta os teus cabelos, oh meu Amor violento! que eles são a floresta negra dos incêndios, saques e pilhagens.

Cavalos loucos de violência e medo, salteadores com os despojos de cidades mouras: oh minha encantada moira, acorda, solta os teus cabelos de Noite e com eles açoita barbaramente o meu negro corpo de bárbaro!

Vamos incendiar o mundo, oh meu amor moreno!

Quero que o planeta sinta derreterem-se-lhe os ossos ao fogo violento dessa paixão.

Lembras-te, minha Eva de ébano, meu brilhante preto, da primeira noite em que nos encontrámos na terra, tombados, expulsos daquele longínquo céu?

Foram os teus cabelos que nos vestiram e taparam, aos nossos olhos quase ceguinhos, a saudade do Céu que se afastava.

Enlaçados descíamos o negro poço do esquecimento, tombando para a Terra, e o Céu já mal deixava ouvir suas harmonias, de nós fugindo como relâmpagos.

E ficamos sozinhos, embrulhados no manto dos teus cabelos.

Solta esses cabelos: que o vento de loucura que varre o mundo tos leve em suas asas velozes e sejam algas imensas nas ondas da ventaneira!

Vamos sobre as cidades espalhar a loucura da nossa paixão.

A nossa carne grita o ódio que nos separou e quer destruir-se numa fúria impossível. Somos dois e cada um de nós quer perder-se ou perder o outro na chama da sua paixão luxuriosa.

É como o Mar em fúria destruindo os rochedos, engolindo as terras, as naus e as gentes.

O nosso desejo é feito dum ódio misterioso: hei-de queimar-te, dissolver-te em mim, oh meu amor moreno, de cabelos selvagens flutuando ao vento da loucura!

És a bandeira inimiga, trapejante e heróica, desafiando a cobardia do amor masculino; hei-de vencer-te, ter-te como escrava no harém da minha maldade.

Aí hás-de agonizar, morrer, perdendo essa lembrança que é réstia de luz a brilhar na escuridão dos teus cabelos, se o vento os leva para a esteira dos teus olhos…

Ah! não! Meu Amor bondoso, perdoa.






Morena de terra é a tua carne, negros de Noite são os teus cabelos; mas os teus olhos, os teus olhos são sorvedouros de alma por onde tombam todas as maldades e, nas folhas mortas que os encontram, canta logo a nova primavera.

Perdoa, meu Amor; que os teus cabelos fizeram uma tempestade tamanha que em seus ninhos e covis acordaram as aves de rapina, as feras cobiçosas e fez-se um coro de uivos na Noite.

Aperta os teus cabelos, meu Amor sereno, deixa-me saber ser bom e sonhar.

Aquela Noite, a primeira noite do nosso esquecimento vamos a lembrar, oh meu amor piedoso?

Colhíamos açucenas nos jardins da alma e, de repente, fomos envolvidos duma nuvem densa, duma fantástica e tormentosa nuvem, tomou-nos um rodopio e enlaçados ficamos sempre a prender-nos, mas com ódio e violência.

Hoje, se soltas os teus cabelos negros relembro o turbilhão daquela Noite e, se os tomas e apertas, relembro, mais e mais, as açucenas do jardim das almas…

Como eram, meu amor, aquelas açucenas?

Deixa-me ver-te os olhos; eles são as crateras da alma, no fundo, muito no fundo, brilham serenos os astros daquele Jardim.

Estende agora os teus cabelos negros: olha como flutuam leves e sedosos e são carícias alongadas, que os vão enlaçar nas árvores onde a seiva acorda e canta uma remota lembrança como a nossa…

Os teus cabelos são agora cometas do Infinito lembrando as alegrias da Origem.

Oh minha Eva sem pecado! És a árvore da vida, a fonte da minha ternura, e os teus negros cabelos soltos são raios de Sol perdidos na Noite.






Os teus cabelos são a impossibilidade da tua nudez; se deixas tombar os vestidos logo eles caem a vestir-te das tintas misteriosas da Noite: são uma criação do teu pudor, os guardas invencíveis do teu Jardim, as delicadezas brandas que envolvem o suave mistério das almas.

Os teus cabelos são a cercadura do teu recato, o amaciamento que te cerca e vai no ar a distância a levar o teu vegetal aroma de acácia.

Já foste acácia e no Jardim secreto, onde vivias, eu fui o pobre jardineiro que te colhia as flores.

Tombavam-te do corpo como asas de insecto afogando-me em deliquescente perfume.

Hoje os teus cabelos são lembrança vegetal e angélica e, se os soltas, o vento que os toma é a própria saudade do Jardim das almas.

Vamos, meu Amor saudoso; que os teus cabelos flutuem ao sopro do Mistério, e, Eva sem pecado, leva-me contigo para a saudade do Céu.

Que Deus te cubra de bênçãos como de flores de acácia cobre a minha pobre alma a piedade do teu amor!

Deixa-me deitar a mão aos teus cabelos soltos, e, no carro de Osíris, atravessemos o firmamento.

Canta, meu Amor piedoso: Como o Céu se aproxima, como renasce a lembrança e vamos sendo aleluias de luz pelas Alturas!

Que a mão de Deus segure os teus cabelos e piedosamente nos leve para o seu Amor! (in ob. cit., pp. 93-97).


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