terça-feira, 15 de novembro de 2011

O génio da espécie (ii)

Escrito por Arthur Schopenhauer








«... o génio da espécie medita a geração futura; e a grande obra de Cupido, que especula, pensa e procede incessantemente, é preparar-lhe a constituição futura».

Arthur Schopenhauer («Metafísica do Amor»).


«O orientalismo de Schopenhauer é a resposta da sua inteligência às exigências, fatais mas irremediavelmente insatisfeitas, da sua vontade ocidentalista de domínio, do seu humanismo antropolátrico».


Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Todos quantos admiramos as obras literárias de Goethe, Schiller e Novalis, todos quantos admiramos as obras científicas de Fichte, Schelling e Hegel, todos quantos admiramos as obras místicas de Eckhart, Boehme e Silésius, lamentamos que a cultura oficial alemã esteja prejudicada por demasiado apego à Terra».


Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).





O génio da espécie


Em primeiro lugar, deve-se considerar que o homem é temperamentalmente sujeito à inconstância no amor, a mulher à sua constância. O amor no homem diminui de um modo perceptível, desde o momento que obtém satisfação: dir-se-ia que todas as outras mulheres lhe oferecem mais atractivos do que aquela que ele já possui; aspira à mudança. O amor da mulher, inversamente, aumenta a partir do momento da posse. É essa uma consequência do fim da natureza que visa a conservação e portanto o maior acréscimo possível da espécie. O homem, de facto, pode facilmente gerar mais de cem crianças num ano, se tiver outras tantas mulheres à sua disposição; a mulher embora tivesse o mesmo número de maridos, não pode dar à luz mais do que uma criança nesse ano, exceptuando gémeos. Por isso, o homem anda sempre à procura de outras mulheres, enquanto a mulher permanece dedicada a um só homem; porque a natureza a condiciona pelo instinto e sem reflexão a manter para si aquele que deve alimentar e proteger a pequena família futura. Daí resulta que a fidelidade no casamento é artificial para o homem e natural para a mulher, e portanto o adultério da mulher, devido às consequências que acarreta, agindo contra a natureza, é muito menos desculpável que o do homem, tanto objectivamente, tendo em vista as suas consequências, como subjectivamente, porque é contrário a essa mesma natureza.






Quero ir ao âmago da questão e acabar de os convencer, demonstrando que o prazer proporcionado pelo outro sexo, por muito objectivo que possa parecer, não é senão instinto dissimulado, isto é, o sentido da espécie que se esforça por lhe manter o tipo. Devemos observar com detalhe e examinar mais especialmente os aspectos que nos dirigem para a obtenção desse prazer, ainda que representem algo de singular numa obra filosófica as particularidades que passamos a indicar. Estas considerações dividem-se em várias categorias: há as que dizem respeito directamente ao tipo da espécie, isto é, a beleza; há as que visam as qualidades psíquicas, e por último as que são meramente secundárias, pela sua necessidade em corrigir e em neutralizar umas pelas outras as insuficiências e as anomalias de dois indivíduos. Examinemos separadamente cada uma destas divisões.

A consideração fundamental que condiciona a nossa apetência e a nossa escolha, é a idade. Em geral a mulher que elegemos encontra-se na idade compreendida entre o fim e o começo das menstruações; damos todavia uma preferência decisiva ao período que decorre dos dezoito aos vinte e oito anos. Nenhuma mulher provocará a nossa atracção se não estiver nas condições anteriores. Uma mulher de idade, ou seja, aquela mulher já incapaz de ter filhos, só nos causa um sentimento de afastamento. Mesmo desprovida de beleza a juventude tem sempre atractivo: a beleza sem juventude não tem nenhum. – É evidente que o objectivo inconsciente que nos orienta é manifestamente a capacidade em si de ter filhos; portanto, qualquer indivíduo perde possibilidades de atracção para o outro sexo, segundo se encontra mais ou menos próximo do período próprio para a reprodução ou para a concepção. A segunda consideração é a saúde: as doenças agudas só perturbam as nossas inclinações de um modo passageiro; as doenças crónicas, as maleitas, pelo contrário, assustam ou afastam, porque se transmitem à criança. – A terceira consideração é a estrutura óssea, porque é a matriz do tipo da espécie. Depois da idade e da doença, o que mais nos afasta é uma constituição defeituosa: nem o mais belo rosto pode compensar um corpo deformado; há mais, um rosto feio num corpo normal será sempre preferido. O que se nota mais é sempre um defeito do esqueleto, por exemplo uma estatura baixa e gorda, pernas demasiado curtas, ou ainda o coxear, quando não tiver origem num acidente externo. Pelo contrário, um corpo notavelmente belo compensa muitos defeitos, encanta-nos. A extrema importância que todos atribuímos aos pés pequenos também se relaciona com estas considerações; são, efectivamente, uma característica da essência da espécie, pois nenhum outro animal tem o tarso e o metatarso reunidos tão pequenos como o homem, o que lhe proporciona a deslocação vertical; é um plantígrado. O Eclesiastes diz a este respeito (XXVI, 23, segundo a tradução correcta de Kraus): «uma mulher de corpo bem proporcionado e com bonitos pés é igual a colunas de oiro sobre socos de prata». A importância dos dentes não é menor porque servem para a alimentação e são particularmente hereditários.

A quarta consideração é uma certa abundância de carne, isto é, o predomínio da faculdade vegetativa, da plasticidade, porque promete ao feto um alimento rico: é por isso que uma grande magreza desagrada de um modo surpreendente. A plenitude dos seios exerce um fascínio considerável sobre os homens, pois relaciona-se directamente com a função geradora da mulher, proporcionando ao recém-nascido uma alimentação abundante. As mulheres excessivamente gordas provocam o nosso afastamento, porque esse estado físico é sinal de atrofia uterina, indicadora de esterilidade; não é a inteligência que o sabe, é o instinto.



Diane Kruger



A beleza do rosto é a que se considera em último lugar. É igualmente a estrutura óssea que se observa antes de mais; procura-se essencialmente um nariz bem proporcionado, ao passo que, um nariz pequeno, arrebitado, altera tudo. Uma ligeira inclinação no nariz, em cima ou em baixo, tem determinado a sorte de um sem número de mulheres, pois, com razão, se trata de conservar o tipo da espécie. Uma pequena boca, apoiada em pequenos ossos maxilares é determinante, como característica específica do rosto humano, em oposição à bocarra dos animais. A quase ausência de queixo, como se tivesse sido cortado, é nitidamente feio, visto que um queixo proeminente, mentum prominulum, é um traço característico da nossa espécie. Considera-se por último a beleza dos olhos e a face, que se relaciona com as qualidades psíquicas, essencialmente as intelectuais, que fazem parte da herança materna.

Não podemos enumerar com tanta exactidão as considerações inconscientes às quais se liga a preferência das mulheres. Eis o que se pode determinar em termos gerais: é a idade de trinta e cinco anos que elas preferem a qualquer outra, mesmo à dos mais jovens, apesar de possuírem a essência da beleza humana. A causa é serem orientadas, não pelo gosto, mas pelo seu instinto, que identifica nessas idades o apogeu da sua força genética. Na maior parte dos casos, dão pouca importância à beleza, principalmente à do rosto: como se só por elas se encarregassem de a transmitir aos filhos. É, acima de tudo, a coragem ou a força nos homens que as conquista afectivamente, porque essas qualidades são a garantia de uma geração de filhos robustos, e parecem assegurar-lhes no futuro um protector corajoso. Qualquer defeito físico do homem, qualquer desvio do tipo, pode a mulher suprimi-los na criança durante a geração, se os aspectos correspondentes da sua constituição, defeituosas no homem, são nela irrepreensíveis, ou ainda exageradas em sentido contrário. É necessário considerar apenas as qualidades do homem inerentes ao sexo masculino, e que a mãe pela sua natureza não pode transmitir por si só aos filhos; como, por exemplo, a estrutura masculina do esqueleto, uns ombros largos, as ancas estreitas, as pernas direitas, a força dos músculos, a coragem, a barba, etc. Daqui procede que as mulheres são atraídas muitas vezes por homens feios, mas nunca por homens desprovidos de qualidades viris, porque não podem neutralizar tais insuficiências.

A segunda ordem de observações relevantes no amor, diz respeito às considerações psíquicas. Indicaremos que são as qualidades de coração ou de carácter do homem que constituem a herança paterna. É, antes de mais, uma vontade determinada, a capacidade de decisão e coragem, talvez ainda a lealdade e a bondade do coração que seduzem a mulher. As qualidades intelectuais, pelo contrário não exercem sobre ela nenhuma acção directa ou instintiva, dado que o pai as não transmite aos filhos. A falta de inteligência não prejudica os homens junto das mulheres: um espírito superior, ou mesmo um génio, pela sua desproporção, têm muitas vezes um efeito contrário. Sucede com frequência um homem feio, estúpido ou grosseiro suplantar junto das mulheres um outro bem constituído, espirituoso, amável. Verificam-se, do mesmo modo, uniões bem sucedidas entre seres tão diferentes quanto é possível sob o ponto de vista das respectivas qualidades intelectuais: ele, por exemplo, brutal, robusto e estúpido; ela, meiga, impressionável, pensando elaboradamente, instruída, artista, etc; ou então ele, muito sábio, talentoso; ela alheia a tudo o que seja de natureza intelectual:


«Assim o julgou Vénus, que se comprazia com cruel alegria a subjugar ferreamente, diferentes formas e almas» (Horácio, Carmina I, 33, 10).



Sócrates e Xantipa



A razão é que os aspectos que aqui predominam nada possuem de natureza intelectual e pertencem ao domínio do instinto. No casamento, o que se tem em vista não é uma vivência espiritual, é a procriação de filhos: o casamento é uma união de corações e não de inteligências. Quando uma mulher afirma que está enamorada do espírito de um homem, é uma pretensão vaidosa e ridícula, ou porventura a exaltação de alguém degenerado. – Os homens, pelo contrário, no amor instintivo, não são determinados pelas qualidades de carácter da mulher; é por essa razão que tantos Sócrates encontraram as suas Xantipas, por exemplo Shakespeare, Albrecht, Dürer, Byron, etc. Contudo, são as qualidades intelectuais que apresentam uma grande influência, porque dependem da herança materna; mas essa capacidade de influência é excedida com facilidade pela da beleza física que actua directamente em pontos mais essenciais. Sucede, apesar disso, que muitas mães, inspiradas pela intuição ou pela experiência dessa influência, procuram ensinar às filhas as belas-artes, as línguas, etc., a fim de as tornar mais atraentes aos homens; tentam deste modo ajudar a inteligência por meios exteriores, assim como, em caso de necessidade, procurarão desenvolver fisicamente as ancas e os seios. Observemos que neste caso apenas se trata de atracção instintiva e imediata, a qual dá origem ao sentimento amoroso propriamente dito. Que uma mulher sensata e instruída aprecie a inteligência e o espírito num homem, que um homem equilibrado e reflectido valorize o carácter da mulher e o tenha em consideração, isso nada influi neste caso: procede assim a razão no casamento quando é ela que actua, mas não a paixão do amor de que nos ocupamos exclusivamente (ob. cit., pp. 30-38).


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