domingo, 20 de novembro de 2011

O Banquete (ii)

Escrito por Soren Kierkegaard







«…a terra molhada, fertilíssima, o barro de Adão, a substância elementar de que todo este mundo, grande como é, nós próprios e inclusive a nossa poderosa pedra se compõem, brotam então à luz do dia…».

Heinrich Kunrath


«…esta matéria-prima encontra-se numa montanha, montanha que contém em si uma multitude de coisas não-criadas. Nesta montanha habitam todas as classes do conhecimento com que é possível deparar neste mundo. Não há conhecimento, entendimento, sonho, pensamento, saber, opinião, reflexo, inteligência, filosofia, geometria, modo de governo, poder, valentia, gentileza, satisfação, paciência, educação, formosura, inventiva, boa-fé, dom de comando, precisão, vigilância, domínio, império, dignidade, conselho ou negócio que nela não se achem contidos. Nem tão-pouco há ódio, malquerença, engano, infidelidade, delito, tirania, opressão, corrupção, ignorância, estupidez, baixeza, despotismo ou excesso, nem canto, música, flauta, lira, boda, diversão, arma, guerra, sangue ou morte que nela igualmente não se contenham…».


Abu-l-Qâsim al-Irâqî


«…Porém, ai daquele que, como Jasão, triunfe graças à ajuda de Medeia e que, deixando-se seduzir pela sua perigosa conquista, acabe por se entregar à Natureza, essa grande feiticeira, em vez de permanecer fiel à sua noiva, a sabedoria!... Ao invés, ditoso aquele que, prometido que está à sabedoria, consegue seduzir sem perigo a terrível feiticeira Natureza, isto a fim de descobrir os segredos que ela, em tal caso, não poderá continuar a ocultar-lhe, e regressar depois a casa dono do velo de ouro e fiel à sua pura prometida…».


«Purisima Revelatio»


«…em certas ocasiões, Aristóteles parece referir-se à matéria como o pura e simplesmente indeterminado. Mas o próprio conceito de indeterminação carece de sentido a não ser que se refira a algo determinado ou a uma possibilidade de determinação. Embora se defina a matéria como possibilidade, dever-se-á admitir que é uma possibilidade para algo. Daí a distinção aristotélica entre a matéria – que é um não ser por acidente – e a privação, que é um não ser em si mesmo».


José Ferrater Mora.


«O mundo é feito da mesma matéria de que se fazem os sonhos».


William Shakespeare






«V.I.T.R.I.O.L.: Visita interiore terrae; rectificando invenies occultum lapidem ("Visita ao interior da terra; rectificando virás a encontrar a pedra oculta"».

Basílio Valentino


«Só aos teólogos - e Kierkegaard foi, a seu modo, um teólogo -, é lícito o celibato».


Álvaro Ribeiro




Deixemos o mito. A ideia do homem responde à sua realidade. Podemos imaginar um só homem, e por essa imagem, representarmo-nos a humanidade. A ideia de mulher é, pelo contrário, uma noção geral que na realidade não coincide com nenhuma espécie, com nenhum indivíduo. A mulher nem sequer é um ente da mesma condição que o homem; será talvez uma parte deste, mas é mais perfeita do que ele. Admitamos que os deuses hajam extraído uma parte do homem, enquanto ele dormia um sono profundo; ou admitamos ainda que o dividiram, e que a mulher seja a sua metade; num caso como noutro, foi sempre o homem quem ficou dividido. A mulher não está, portanto, em relação de igualdade com o homem perfeito; a relação de igualdade só aparece depois da divisão. A mulher é um engano, mas só para o homem tal como se encontra nesta segunda fase; a mulher é um engano só para o homem que se deixa enganar. A mulher é o finito; mas no primeiro momento da sua existência, é o finito elevado à potência de um infinito enganador, - a infinita ilusão humana e divina. Nesta ilusão não há mentira; mas se o homem der um passo em falso, fica imediatamente enleado. Ela é o finito, portanto o multiplicável, portanto um ente colectivo: não há mulher, há mulheres. Mas isto é o que só o erótico parece capaz de compreender; por isso é ele capaz de amar muitas mulheres sem se deixar iludir; por isso ele não vai além da volúpia com que os deuses astuciosos o queriam enganar. A ideia de mulher não se encerra, pois, numa fórmula qualquer; é um infinito de coisas finitas. Quem quiser pensar essa ideia, fazê-la passar por todas as categorias lógicas, ver-se-á na situação de quem mergulha os seus olhares profundos num oceano de fantasmagorias em perpétua formação, ou na situação de quem se perde a contemplar as ondas sobre a espuma das quais aparecem as sereias para se rirem constantemente do ingénuo. A ideia da mulher, para o pensador, não é mais do que uma oficina com a categoria do possível, e para o erótico, a categoria é uma fonte inesgotável de fantasia.


«Vou agora dizer-vos como é que os deuses fizeram a mulher: um ser fluído, subtil, etéreo como as exalações de uma noite de Verão, mas que se reveste de formas tão consistentes e palpáveis como a de um fruto amadurecido; leve como a andorinha, consegue transportar o peso do imenso desejo do mundo; na sua levitação vence a gravidade, porque todo o segredo das forças que a animam se encontra no centro invisível da relação negativa, que ela tem consigo própria; altiva na sua estatura de desenho firme, consegue dar nas vistas pela natural ondulação da beleza; perfeita, pela frescura, parece todavia que acabou de sair da génese do mundo; de uma pureza celestial como a neve recentemente caída, e ao mesmo tempo calma e calmante, na coloração suave da epiderme; alegre como a palavra graciosa que faz esquecer os cuidados, consolativa como a plena realização do desejo que ela tão bem apazigua como excita. O homem, ao vê-la pela primeira vez, deve ter sido tomado por inexcedível espanto: - espanto de ver a sua própria imagem, ou uma imagem semelhante, ou uma imagem que lhe era familiar; espanto por ver a sua própria imagem reflectida no espelho da perfeição; espanto de ver o que nunca havia esperado de ver, aquilo de que talvez tivesse tido já um vago pressentimento; espanto de ver um elemento indispensável na sua vida, mas que lhe era, porém, dado como um enigma para a sua vida. É precisamente esta contradição no espanto que vai despertar no homem o impulso erótico. O espanto incita o homem a aproximar-se cada vez mais, a querer ver cada vez melhor, a olhar, a admirar, a contemplar; não lhe é dado, porém, familiarizar-se completamente com esta visão, não lhe é dado deixar de desejá-la, nunca poderá conseguir aproximar-se dela quanto quer.

«Quando os deuses conseguiram imaginar a essência desta forma, recearam não poder dar-lhe a existência. Depois de o conseguirem, por fim, recearam muito mais a própria mulher. Ela estava de tal maneira formosa, que não se atreveram a elogiá-la, com receio de que a inconfidência pusesse em perigo o plano da astúcia. Resolveram então coroar a obra. Concluíram a formosura, mas deixaram a mulher na ignorância da sua inocência, para que ela não soubesse a que fim a destinavam; para maior precaução, envolveram a figura atraente da mulher no mistério impenetrável do pudor. Ficava assim apta para o combate, ficava assim assegurada a vitória. A mulher era por natureza atraente; mais atraente se tornou com ser esquiva, evasiva, fugidia, porque todos os obstáculos servem para excitar o frenesi do homem. Os deuses rejubilavam, estavam radiantes de alegria. Não há no mundo isca tão atraente como a mulher, nenhuma isca tem maior poder do que a inocência, nenhuma tentação é mais fascinante do que o pudor, nenhum engodo iguala o da mulher. Virgem, a mulher tudo ignora; no entanto, já no seu pudor oculta um pressentimento da sua natureza; ela adivinha que está separada do homem, separada pelo pudor, que é uma barreira mais poderosa do que a espada que foi posta entre Aladino e Gulnar. O erótico, porém, procede como Pyrane nas Metarmofoses de Ovídio: admira e contempla o mistério do pudor e pouco a pouco vai vendo confusamente que para além da vedação, se configura na distância toda a volúpia do prazer.








«Tal é a tentação que a mulher representa. Os homens, não sabendo o que de melhor poderiam sacrificar aos deuses, oferendaram-lhes o mais delicioso de todos os manjares; assim a mulher é fruto proibido para que se olha com avidez; os deuses ainda não descobriram termo de comparação com a delícia da mulher. Vemo-la perto de nós, muito próxima, na nossa presença; e no entanto, como está distante, infinitamente distante, separada de nós pelo pudor. É como se estivesse dentro de um esconderijo, que nós ignoramos, até que ela nos diga por onde é a entrada. Como é que tal acontece? Nem ela sabe como se denuncia; a vida encarrega-se de quebrar o segredo. Tal como a criança que joga às escondidas e, sem dizer palavra, espreita com a cabeça fora do esconderijo, a imprudência da mulher é inexplicável, porque inconsciente; a mulher é sempre enigmática, tanto quando baixa pudicamente os olhos como quando dardeja um olhar especial que não pode ser explicado por pensamentos e, muito menos, por palavras. E, no entanto, se há «olhares que são como punhaladas», como poderemos explicá-los, se a linguagem deles nos é incompreensível? A mulher apresenta-se-nos quase sempre tranquila como a paz das horas da tarde, quando já nenhuma folha treme, tranquila como a consciência, ingénua, ignorante e inocente; respira tranquilamente sem que separe no ritmo da inspiração e da expiração; o sangue circula com toda a regularidade, sem que pelas pulsações se conheça o alvoroço do coração; e no entanto o homem erótico, se souber auscultar como lhe convém, há-de perceber os ruídos ditirâmbicos do desejo, como acompanhamento inconsciente do pensamento da mulher. Despreocupada como o vento que passa, serena como a profundidade do mar, não deixa a mulher de ser removida por desejo languescente, de um desejo inexplicado.

«Meus amigos: tenho a alma deliquescente, de maneira que não articulo a expressão. Sei, porém, que também a minha vida corresponde a uma ideia, se bem que vós a não compreendeis. Sim, também eu revelei o segredo da vida; também eu estou a servir, algo que é divino, e certamente, o meu culto não é vão. Já que a mulher é um engano dos deuses, pode com verdade dizer-se que a existência dela consiste em querer ser seduzida; e como ela não é uma ideia ou uma essência, há só uma conclusão a tirar, que é a seguinte: o homem erótico quer amar o maior número possível.

«Só o erótico quer amar o maior número possível, gozar o engano sem ser enganado. Só a mulher conhece verdadeiramente a felicidade que consiste em se deixar seduzir. O que digo e sei, aprendi-o com a mulher, se bem que não tenha agora tempo para maiores explicações; digo e sei porque me mantenho ao serviço da ideia por um rompimento tão decisivo como a morte; porque noivo e renúncia estão na mesma relação que masculino e feminino. Só a mulher é que o sabe, e sabe-o na sua relação com o sedutor. Nenhum homem casado é sequer capaz de conceber tudo isto. A mulher nunca chega a confessar esta verdade ao marido. Casada aceita resignada o novo destino, adivinha que tal é a ordem natural das coisas, admite que não pode ser seduzida mais do que uma vez. No íntimo, apesar de quanto se diga, nunca a mulher volta o seu ódio contra o sedutor. É preciso ver que ele tenha efectivamente realizado acto de sedução, o que implica exprimir a respectiva ideia. A falsa promessa de casamento, e outras mentiras tais, constituem esperteza e expedientes indignos da vida humana, e nada têm que ver com o problema da sedução. Sendo assim, não há grande infelicidade para a mulher no facto de ser seduzida; pelo contrário, a felicidade dela está em ter essa sorte. Uma donzela, seduzida por arte superior, pode vir a ser uma esposa modelar. Se eu não tivesse aptidões necessárias para ser um sedutor, se bem que reconheça as minhas deficiências quando me considero como tal, e se quisesse casar-me, escolheria sem dúvida uma rapariga já seduzida, para não ter o trabalho de começar a seduzir a minha mulher. É que o casamento também exprime uma ideia, e essa ideia tem um significado completamente diferente em relação ao absoluto que a minha ideia exprime. O casamento nunca deveria ser considerado como um ponto de partida, nunca deveria ser confundido com o princípio de uma história de sedução. Enfim, de uma coisa estou certo: é de que para cada mulher há um sedutor possível, mas feliz será aquela que o encontrar.






«O casamento significa, pelo contrário, a vitória dos deuses sobre os homens. A mulher que foi uma vez seduzida vai continuar a sua vida ao lado de um marido; por vezes ela olha para trás, com o coração pleno de desejo; mas resigna-se com a sua sorte, até chegar o termo dos seus dias. Morre, sem que a sua morte se compare com a do homem; desvanece-se e dissolve-se no elemento inefável de que os deuses a formaram; desaparece como um sonho, como imagem efémera, como imagem de tempos passados. Que mais é a mulher do que um sonho, sonho que não deixa de ser a mais alta realidade? É assim que o homem erótico compreende a mulher, é assim que ele a conduz, é assim que ele se deixa conduzir por ela ao momento da sedução, momento que já está fora do tempo, que pertence já à pátria da ilusão, que é a pátria da mulher. Junto ao marido, a mulher vive no tempo, pertence ao tempo, e o marido também.

«Natureza maravilhosa!... Se não te admirasse de há muito, a mulher ensinar-me-ia a admirar-te, porque a mulher é venustidade do mundo! Tu, Natureza, fizeste da mulher um ser esplêndido, mas a tua maior glória está em nunca teres dado ao mundo duas mulheres iguais! No homem, o essencial é essencial, e, portanto, sempre o mesmo; na mulher o essencial é o acidental e, por conseguinte, a inesgotável diversidade. O reinado da mulher dura pouco, mas pouco dura também a dor que cai no esquecimento. Creio que nunca cheguei a observar a dor quando outra vez o mesmo voltava a ser-me oferecido. Há também a fealdade que pode surgir mais tarde; também a vi, também sei que ela existe; mas não é pelo aspecto da fealdade que a mulher é vista pelo sedutor» (in ob. cit., pp. 136-143).


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