terça-feira, 1 de novembro de 2011

Diotima de Mantineia (ii)

Escrito por Platão





Afrodite e Eros







Safo e suas companheiras escutando Alceo de Mitilene tocando cítara na ilha de Lesbos (Alma Tadema, 1881).



Safo por Amanda Brewster Sewell (1896).








«Quem deseja menos coisas está decididamente mais perto dos deuses».

Sócrates


«O homem que só é belo, é belo só enquanto o olhamos: o homem sábio e bom é sempre belo».

Safo


«O Eros da Afrodite popular é na verdade popular e desconhece as regras: é o amor com o qual amam os homens vulgares. Efectivamente, estes amam antes de tudo as mulheres e jovens, mas amam mais o corpo do que o espírito, de maneira desvairada, dirigidos pela concupiscência. Não têm em vista senão o gozo, sem discernimento, pois um tal amor provém da deusa mais jovem que, em virtude da sua origem, participa tanto da masculinidade como da feminilidade.

O outro Eros, em contrapartida, é o de Afrodite celeste, que não descende do feminino, mas somente do masculino, é mais velha, e não participa da concupiscência».


Pausânias



«(...) parece-nos que não tem qualquer relação com os mistérios mais altos, mas sim com o puro humanismo de cultura, quando Diotima contrapõe àqueles que geram carnalmente os que dão vida a filhos imortais através das suas criações de artistas, de legisladores, de moralistas e seres similares. (...) Uma tal imortalidade, reduzida à pura sobrevivência na fama e na memória dos homens, é eventualmente mais efémera do que a própria sobrevivência na espécie; encontramo-nos num domínio totalmente profano e quase do mesmo sentido daquele que, ironicamente, fez chamar «Imortais» aos membros mortais da Academia Francesa».


Julius Evola



«O amor e a harmonia, eis o fundo da alma de Platão. Mas, que amor, que harmonia! O amor da beleza eterna e a harmonia que envolve o universo. Quanto mais a alma é grande e profunda, mais demora a conhecer-se a si mesma. O seu primeiro entusiasmo dirigiu-se às artes. Ele era de origem nobre, pois o seu pai pretendia descender do rei Codro, a sua mãe de Sólon. A sua mocidade foi a de um ateniense rico, rodeado de todos os luxos, de todas as seduções das épocas de decadência. Entregou-se aos gozos, vivendo como os seus companheiros, gozando de uma bela herança, rodeado e festejado por numerosos amigos. No Fedro, descreveu muito bem a paixão do amor, sem ter sentido os êxtases e as decepções cruéis. Dele resta apenas um verso, tão apaixonado como os de Safo, tão cheio de luz como uma noite estrelada no mar das Cíclades: "Eu quisera ser o céu, para ser todo olhos para te olhar"».

Eduardo Schuré








Sócrates
– Tudo o que acabei de dizer recolhi-o da sua boca, quando ela falava de Eros. Um dia, perguntou-me:

Diotima – Qual é, na tua opinião, a causa deste amor, deste desejo? Já observaste em que estranha crise se encontram todos os animais, os que marcham e os que voam, quando são tomados pelo desejo de procriar? Como ficam doentes e possuídos de desejo, primeiro, no momento de se ligarem, depois, quando se torna necessário alimentar os filhos? Como estão prontos a defendê-los, mesmo os mais fracos contra os mais fortes, e a morrer por eles? Como se submetem à tortura da fome para sustentar os filhos e como estão dispostos a todos os sacrifícios por eles? À semelhança dos homens, poder-se-ia dizer que é a razão que os leva a este modelo de procedimento, mas, sendo animais, qual é a causa desta disposição tão amorosa? Podes dizer-me?

Sócrates – Confesso que ignoro mais uma vez.

Diotima – E pensas alguma vez tornar-te conhecedor em matéria de amor, se ignoras uma coisa destas?

Sócrates – Mas é por isso, Diotima, repito, que te procuro, sabendo como sei, que preciso dos teus ensinamentos. Diz-me, então, a causa destes fenómenos e de outros resultantes de Eros.

Diotima – Se julgas que a natureza de Eros é aquela sobre a qual concordámos várias vezes, afasta esse ar de espanto. Porque, também aqui se verifica, como anteriormente, o princípio segundo o qual a natureza mortal procura sempre, tanto quanto pode, a perpetuidade e a imortalidade. Todavia, não a consegue senão através da procriação, deixando sempre uma criatura jovem no lugar da velha. Na verdade, mesmo que um animal passe por ser vivo e idêntico a si próprio no tempo que medeia entre a infância e a velhice, mesmo que se afirme ser o mesmo, nunca é, na verdade, sempre o mesmo. Incessantemente rejuvenesce e continuamente perde o pêlo, a carne, os ossos, e o sangue e, não apenas no corpo, mas também no espírito. Costumes, carácter, opiniões, paixões, prazeres, aborrecimentos, temores, jamais qualquer destas coisas se conserva sempre igual no nosso espírito, mas umas nascem e outras morrem. Mas, o que é ainda mais estranho, é que os nossos conhecimentos tão depressa nascem como perecem, e nunca somos idênticos a nós próprios.

Até mesmo cada conhecimento isolado se encontra sujeito a esta mudança! Porque reflectimos? Para reter o que nos foge! O esquecimento é a fuga do conhecimento e a reflexão, suscitando uma recordação que substitui o que se esquece, mantém o conhecimento, de maneira que este parece sempre o mesmo. Desta maneira se conserva tudo o que é mortal, nunca se mantendo igual a si mesmo, como acontece com o que é de natureza divina, mas deixando sempre no lugar da criatura, que morre e envelhece, uma outra, que lhe é semelhante.

É por este processo, Sócrates, que tudo o que é mortal, o corpo e o mais, participa da imortalidade, pois, de outro modo, seria impossível. Por isso não te admires que todo o ser ame o seu descendente, pois é em vista da imortalidade que cada um revela este zelo e este amor.

Sócrates – Depois de ter escutado esta peroração, perguntei-lhe, cheio de admiração: está muito bem, é admirável tudo o que disseste, Diotima, mas as coisas passam-se na verdade como descreveste?

Diotima retomou a palavra, num tom de perfeito sofista:

Diotima: Não tenhas dúvidas, Sócrates. De resto, se pretendes, atenta bem na ambição que domina todos os homens e ficarás surpreendido com o absurdo desta ambição, a menos que tenhas presente o que já te mostrei. Pensa também no desejo que os domina de conquistarem honrarias e de adquirirem glória de eterna duração. É este desejo, mais ainda do que o amor dos filhos, que os faz encarar todos os perigos, esbanjar fortunas, reagir contra todas as fadigas, sacrificar a vida, se isso for preciso. Pensa, com efeito, - perguntou ela – que Alceste morreria por Admeto, que Aquiles se comprometeria a vingar Pátroclo, ou que o vosso Codro [rei de Atenas] teria morrido para legar o trono a seus filhos, caso não tivessem primeiro pensado em deixar uma imortal recordação da sua coragem, recordação que ainda hoje mantemos viva? Não. Esta imortalidade exige muitos sacrifícios e julgo não estar enganada se afirmar que é tendo em vista uma glória imortal e um renome como o destas personagens, que os homens se submetem a todos os sacrifícios, e isso de tanto melhor vontade quanto melhores eles são, pois em tanto apreço têm a imortalidade.

Escudo de Aquiles



Espada de Aquiles




Diane Kruger. Ver aqui




Aqueles que são fecundos segundo o corpo, voltam-se de preferência para as mulheres, e esta é a sua maneira de amar, pois julgam que criar filhos assegura a imortalidade, a sobrevivência da sua memória, a felicidade num futuro que lhes parece eterno. Para os que são fecundos segundo o espírito, porque existem – e o espírito é mais fecundo do que o corpo nas coisas que ao espírito convém – só a criação no domínio da alma desejam: a sabedoria e outras virtudes, que têm precisamente por pais todos os poetas, os artistas de génio e de poder inventivo. Todavia, a parte mais importante e bela da sabedoria é aquela que trata do governo dos estados e das famílias, a qual se designa por sofrosine e justiça. Quando o espírito de alguém, logo desde a infância, traz consigo o germe destas virtudes, este homem divino sente o desejo de, uma vez chegado à idade própria, procriar. Ele mesmo procurará por toda a parte o belo, para nele procriar, pois que, no feio, jamais desejará procriar! Sob a pressão deste desejo, liga-se então aos corpos belos de preferência aos feios e, caso venha a encontrar uma alma bela, generosa e bem dotada, esta dupla beleza sedu-lo inteiramente. Em presença de um ser assim, sente afluir aos lábios palavras de virtude sobre os deveres e ocupações que pertencem ao homem de bem, e começa a instruí-lo. Efectivamente, contactando com a beleza, concebe e cria coisas de que a alma se encontrava prenhe havia tanto tempo! Presente ou ausente, pensa sempre nesse ser e alimenta, em comunhão com ele, o fruto da união.

Estas uniões efectuam-se em mais estreita comunhão e encontram-se assentes numa amizade mais sólida do que aquela que liga os pais aos filhos, pois são progenitores de outros filhos, mais belos e imortais.

Não há ninguém que não goste mais de possuir tais filhos do que os filhos segundo a carne. Quando nos lembramos de Homero, de Hesíodo e de outros grandes poetas, pensamos também nos filhos que deixaram e os perpetuaram! O mesmo se verifica quando lembramos os filhos que Licurgo deixou à Lacedemónia para o bem deste estado e, podemos afirmá-lo, para bem de toda a Grécia. Sólon goza entre vós da mesma glória, por ter criado as vossas leis e outros gozam a mesma glória noutros estados, gregos ou bárbaros, por haverem produzido muitas obras brilhantes e criado virtudes de toda a espécie. Muitos templos lhes foram consagrados, tendo em atenção os filhos espirituais e ninguém obteve tais consagrações por causa de haver filhos de uma mulher! Podemos orgulhar-nos de te iniciar também a ti, Sócrates, nestes mistérios de Eros, mas, para atingir o último grau, a contemplação, que é o fim, para o qual se dirige o bom caminho, já não sei se a tua capacidade será suficiente. Apesar disso, vou continuar sem reservas de esforço. Quem deseje atingir esta meta pelos caminhos verdadeiros, deve começar na juventude a procurar os corpos belos. Antes de mais, caso tenha um bom orientador, não deve amar mais de um corpo, inspirado pelo qual deve conceber belas palavras: depois, deverá observar que a beleza de um corpo, qualquer que ele seja, é irmã da beleza de um outro. Efectivamente, se está decidido a procurar a beleza na forma, só por má orientação não veria que a beleza de todos os corpos é una e idêntica. Uma vez atingida esta verdade, tornar-se-á amante de todos os corpos belos e desprezará o amor exclusivista por um só corpo, como coisa de somenos valor, que não merece senão indiferença. Em seguida, torna-se necessário considerar a beleza das almas como algo de mais precioso do que a beleza dos corpos, de maneira que, uma alma bela, num corpo mediocremente atraente, lhe baste para lhe consagrar o amor e os cuidados, nela se inspirando belos pensamentos que possam tornar melhores os jovens. Assim, será conduzido a contemplar a beleza das acções e das leis, a verificar que esta é igual a ela própria em todos os casos e, consequentemente, a conceder pouca importância à beleza do corpo. Das acções dos homens passará às ciências e reconhecerá também a sua beleza; uma vez chegado a uma visão lata da beleza, não se prenderá mais à beleza de um objecto, e deixará de amar, com estreitos e mesquinhos sentimentos de escravo, uma criança, um homem, uma função. Desde agora voltado para o oceano da beleza, contemplando os seus múltiplos aspectos criará, sem cansaço, belos e magníficos discursos, os pensamentos nascerão abundantemente do seu amor e da sua filosofia, até que, finalmente, o seu espírito, fortificado e engrandecido, se apercebe de uma sabedoria única, a da beleza, da qual tentarei falar. Procura, peço-te, prestar a melhor atenção possível.





Quem tiver chegado até este ponto no caminho de Eros, depois de ter contemplado as coisas belas numa gradação regular; quando atingir a meta suprema, em breve contemplará a beleza de uma maravilhosa natureza, a própria beleza, Sócrates, que constituía o objectivo de todos os anteriores esforços: beleza eterna, que não conhece nem o nascimento nem a morte, que não está sujeita à evolução de crescimento e diminuição, que não é bela por um lado e feia por outro, ou bela a um tempo e feia a outro; bela de um ponto de vista e feia de outro, bela neste lugar e feia naquele; beleza que não se apresentará com um rosto, nem com mãos, nem com forma corpórea, nem com palavras, nem com sabedoria, nem com outra coisa qualquer que porventura possa existir nalgum lugar, por exemplo, no animal, na terra, no céu, ou em qualquer outra parte; beleza que, em contrapartida, existe nela mesma, simples e eterna, da qual participam todas as coisas belas, de tal maneira que o nascimento ou a a morte destas não lhe trazem, nem aumento, nem diminuição, nem alteração de qualquer espécie. Quando nos elevamos acima das coisas sensíveis, através de uma ordem escalonada de amor bem compreendido, até a este grau, e nos começamos a aperceber da beleza, estamos próximos do final, pois a verdadeira via de Eros, quer sejamos nós a procurá-la, quer nos conduzam, consiste em participar das belezas naturais e em caminhar incessantemente para a beleza sobrenatural, passando, como que por escalões, de um corpo belo a dois, de dois a muitos, e após os corpos belos às acções belas, às ciências belas, até passar, finalmente, destas para uma ciência que não é mais do que a ciência da beleza absoluta. Conhecer, enfim, o belo em si próprio!

Se a vida alguma vez mereceu ser vivida, caro Sócrates (disse a mulher de Mantineia), é no momento em que o homem contempla a beleza essencial. Se alguma vez a contemplares, mesmo só de relance, que te parecerão, ao pé dela, o oiro, os vestidos, as crianças bonitas, os jovens que hoje te perturbam o olhar, a ti e a muitos outros, a ponto de, para verdes os bem amados e viver sempre com eles se tal fosse possível, consentiríeis em privar-vos da comida e da bebida, sem outro desejo que não fosse o de os ver e ficar na sua companhia? Penso então – disse – que felicidade não será para um homem poder ver o próprio belo, simples, puro, sem mistura, e contemplar, em vez de uma beleza carregada de carnes, de cores e de muitas outras superfluidades perecíveis, a própria beleza divina sob a sua única aparência? Pensas que é banal a vida de um homem que, elevando os olhos para o alto, pode contemplar a beleza e viver dessa contemplação?

Não achas que – acrescentou Diotima – vendo assim o belo na sua plenitude, esse homem será o único a poder gerar, não sombras de virtude, pois não se liga a fantasmas, mas virtudes verdadeiras, pois que fecunda a verdade? Ora, é aquele que gera e alimenta a virtude verdadeira que se torna amado dos deuses e, se algum homem pudesse tornar-se imortal, só esse o conseguiria!

Sócrates – Eis, Fedro, e vós outros que escutais, o que Diotima me disse. Por ela fui persuadido nestas coisas e, por minha vez, procuro persuadir-vos de que, para conquistar tamanho bem, a natureza humana dificilmente poderia encontrar um auxiliar como Eros, porque eu próprio o venero e me dedico particularmente ao seu culto. Recomendo-o aos outros porque agora, como sempre, louvo a força e a virtude de Eros, tanto quanto posso. Se quiseres, Fedro, digna-te receber este discurso como o meu elogio de Eros; caso contrário, dá-lhe o nome que bem entendas!

Quando Sócrates acabou, todos o aplaudiram. Apenas Aristófanes se dispunha a replicar, porque Sócrates aludira a uma passagem do seu discurso quando, de súbito, a porta do exterior bateu com estrondo, como que sob redobrados golpes de um grupo de ébrios e uma tocadora de flauta se fez ouvir (207a – 212c).


 Templo de Poseidon


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