segunda-feira, 1 de março de 2010

O Plutocrata (i)

Escrito por Ernesto Palma







O ENIGMA


Plutocrata é o homem que alia, a uma grande disponibilidade de dinheiro, o poder de com ela dominar a sociedade, não à maneira do político que a oprime ou liberta, nem à do militar que a disciplina, nem à do clérigo que a apascenta. O domínio que o plutocrata exerce é o de definir as hierarquias que compõem a sociedade, preservar as posições ou planos que tem cada hierarquia, designar as pessoas que ocupam essas posições.

Ernesto Palma tem todas as razões para entender que as sociedades estão em constante alteração, isto é, que continuamente se vão alterando as hierarquias, mudando as posições nas hierarquias e substituindo as pessoas nessas posições. Ora quando se pôs a observar a sociedade portuguesa verificou que ela se mantém incólume há quase dois séculos, desde quando as "guerras liberais" a ergueram sobre os escombros da sociedade anterior.

O fenómeno torna-se enigmático quando se observa que, na última metade destes longos dois séculos, se deram três revoluções: a de 1910, a de 1926 e a de 1974, todas três feitas para, como é próprio da revolução, revolver a sociedade como o arado revolve a terra pondo em baixo o que está em cima, pondo em cima o que está em baixo. Ora aquelas três revoluções substituíram decerto o regime político: a monarquia pela república, a república pela ditadura, a ditadura pela democracia. Mas permaneceu inabalável a sociedade: as mesmas hierarquias, as mesmas posições nas hierarquias, os mesmos nomes, as mesmas famílias, a mesma gente nessas mesmas posições dessas mesmas hierarquias. Esse o enigma.

A atenção de Ernesto Palma fixou-se na última revolução, a de 1974. Por ser a mais próxima, portanto a mais fácil de observar, e por ter sido, das três, aquela que mais precisa e expressamente se propunha revolver a sociedade, exterminando os burgueses ociosos e exploradores para, depois, a nivelar pelo proletariado explorado e oprimido. A revolução triunfa mas logo assegura a perduração das mesmas hierarquias e, à frente delas, os mesmos burgueses ociosos e exploradores. Para só dar um exemplo da hierarquia política: lá tem ela à sua frente grandes burgueses como Mário Soares, Álvaro Cunhal e Sá Carneiro. Estes entre o peixe graúdo. Porque, entre o peixe miúdo, é interminável a lista dos Teotónios Pereiras, Franciscos Balsemão, Galvões Teles, Rebelos de Sousa, Afonsos de Barros, Veigas Simão que passaram, sem sobressalto, dos seus privilégios na sociedade da ditadura para iguais privilégios na sociedade da democracia.

Ernesto Palma pergunta-se: para que se faz, então, a revolução? Mas depressa conclui que a pergunta só tem resposta se se souber quem faz a revolução. E isso procura investigar.

Claro que os triunfadores e beneficiários das revoluções afirmam sempre que quem as faz é o povo. Nada de mais falso porque o povo não faz revoluções, o povo faz guerras.

Manuel Gomes da Costa no 28 de Maio de 1926.


Posta de lado esta hipótese que, no entanto, o leva a distinguir entre o povo como um todo uno e as populações ou as sociedades, Ernesto Palma percorre os possíveis suspeitos de fazerem a revolução e vai-os eliminando um a um: o político, porque só aparece depois da revolução ter triunfado; as grandes instituições com seus representantes ou agentes infiltrados em todos os centros de decisão, como a Igreja, a Maçonaria ou a Universidade, porque se encontram elas a braços com ameaças internas e sem forças para se defenderem; os argentários, porque sempre estão possessos da febre de entesourarem o dinheiro.

Mas é ao analisar o argentário que Ernesto Palma descobre o plutocrata. Distingue um do outro. Enquanto o argentário detém a posse do dinheiro que utiliza para o aumentar, o plutocrata detém a disponibilidade do dinheiro que utiliza para exercer o seu domínio sobre a sociedade. Este domínio começa por lhe ser dado pelo deslumbramento universal que a disponibilidade, não a posse, do dinheiro sempre provoca. Ernesto Palma socorre-se do exemplo de A. Champalimaud que, detendo a posse de apenas trezentos milhões de contos, recentemente adquiriu, numa só operação financeira, a disponibilidade sem posse de cinco mil milhões de contos. Uma tal disponibilidade dá efectivamente a possibilidade, que A. Champalimaud exerce ou não exerce, de fazer a revolução.

Disponibilidade sem posse do dinheiro detêm-na, por sua natureza institucional, a Banca e o Estado. A Banca detém a disponibilidade do dinheiro que os depositantes lhe confiam livremente, o Estado a do dinheiro que os contribuintes são obrigados a confiar-lhe. Com a Banca, faz o plutocrata, mediante os accionistas, um jogo que tem regras estabelecidas pela lei, pelo mercado e pelo costume. Com o Estado faz o plutocrata um jogo sem regras, mais propriamente um jogo com o político do que com o Estado. Descreve Ernesto Palma alguns exemplos ou casos deste jogo: o dos Mellos e M. Bullosa com Mário Soares, o do mesmo Bullosa com os "capitães de Abril", o de Champalimaud com Salgado Zenha e o Marechal Spínola, o da alta finança internacional (Nelson Rockefeller, Edmundo Rothschild entre outros) reunida na Suíça para lançar a revolução socialista em Portugal.



Nelson Rockefeller



Dificuldades intransponíveis encontra Ernesto Palma para, entre os argentários, distinguir e identificar pessoalmente o plutocrata. Desenha-lhe o retrato: a discreção levada até ao secretismo, o isolamento levado até à ermitagem e, sobretudo, a misantropia levada até à comiseração pela fragilidade dos homens. Traça também uma galeria que começa em Mendizabel, o único plutocrata pessoalmente identificável, e se prolonga, século XIX fora, século XX dentro, em notórios argentários hipoteticamente plutocratas: os Burnay, os Palmela, os Fausto de Figueiredo, os Alfredo da Silva e Mellos, os Espírito Santo, os Bullosa, os Champalimaud.

O caso mais curioso é o do clã que Teixeira de Queirós fundou com o casamento de suas seis filhas, clã que foi reunindo os possíveis protagonistas de qualquer possível regime político: João de Barros, veterano da 1ª República, seu filho Henrique, chefe do congresso da oposição à ditadura, e o cunhado deste, Marcelo Caetano, último chefe da ditadura, seu neto Afonso, actual membro da direcção do partido comunista e ainda outros para as restantes hipóteses.

Todavia, a não ser Mendizabel, nenhum deles permite ser identificado, com segurança, ao plutocrata. Falta-lhes a todos aquela espécie de magnanimidade, aquele desinteresse pessoal e quase artístico de que Mendizabel foi exemplo. Veio ele das névoas e longes de um país estrangeiro, lança a revolução liberal, vê-a perdida e vê o povo apossar-se dela para a transformar numa guerra sangrenta, financia a guerra até à vitória que de início se jurava impossível para, uma vez instalada a nova sociedade, festejar o triunfo com um banquete que deslumbrou Lisboa e regressar discretamente às névoas e longes donde viera. Todos o esqueceram, primeiro os políticos, ainda hoje os historiadores. O próprio Oliveira Martins apenas lhe faz alusões fugidias.

À falta de identificação, o plutocrata não deixa de ter existência bem real e sensível. Estará ela repartida por vários argentários temerosos, estará ocultada nessa repartição, mas não deixa de estar presente e agir com indisputável e manifesta eficácia. A revolução só é explicável como obra do plutocrata e este só é explicável por um fenómeno que surgiu nas sociedades contemporâneas: a quantidade de dinheiro corrente que, ultrapassando em cerca de 90% a sua aplicação na transacção das mercadorias, se torna quase toda uma quantidade disponível. Ora a disponibilidade do dinheiro é que faz o plutocrata (in O Plutocrata, Colecção "Estudos de Filosofia Portuguesa", Edições Ledo, 1996, pp. 9-14).






Continua


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