Diz-nos Ernesto Palma que a vida intelectual sempre foi um quebra-cabeças para o plutocrata. Porque nunca ele conseguiu compreender como uma simples ideia que perpassa pela inteligência de um homem possa mover o mundo e porque, fazendo-lhe a sua misantropia ver nos homens só mesquinhos interesses e ambições, jamais acertou, como acertou com os políticos e revolucionários, o jogo a fazer com os intelectuais.
Observando que é deles que vêm as mais sérias ameaças à sua estrutura da sociedade, nunca entre eles conseguiu distinguir os que fazem mover o mundo e os que se exibem nas feiras. Ignora como os primeiros são, conforme um deles disse de si próprio, "anti-comunistas, anti-socialistas e anti-reaccionários", e acredita, conforme lhe dizem os segundos, que onde está um intelectual está um esquerdista, coisa que não lhe desagrada porque o esquerdismo é socialista e o socialismo é o sistema que ele próprio escolheu para a sua revolução.
Baseado neste e noutros enganos, o seu jogo com os intelectuais sempre foi uma acumulação de disparates. Seleccionando-os pela bitola daqueles a quem Madalena Perdigão, dispensadora das benesses da Fundação Gulbenkian, chamava "as minhas vedetas" - os Prado Coelho, os Eduardo Lourenço, os José Matoso - dá-lhes sinecuras pomposas, põe-lhes à sua exclusiva disposição as empresas editoriais do Bullosa, dos Mellos e da Abecassis, os prémios do Balsemão, as festarolas culturais da Gulbenkian, os media daquele mesmo Balsemão e do Berardo, do Belmiro, até da Igreja, os subsídios cinematográficos do Estado distribuídos pela Zita Seabra, dissidente fresca do partido comunista em evanescência, manda Mário Soares à Suécia tentar obter-lhes o Nobel e, para o ajudar, põe o Instituto Camões a financiar a edição sueca dos livros do Saramago, e diverte-se a ver a Maria João Pires correr dos concertos com muitos bravós a oferecer sua solidariedade afamada e rica a algum daqueles pitorescos grupúsculos comunistas que Leonardo Sciasca descreve em "O Contexto".
Mas nada disto alguma vez resultou. Os intelectuais do plutocrata esfumam-se depressa e nada fica deles. Não são mais, afinal, do que a meia tigela intelectual da classe-média onde o vimos, ao plutocrata, recrutar os seus revolucionários. E continuava a pulsar, com súbitas emergências mas inapreensível, uma vida do espírito indeterminável. Era desesperante. Ferido nos seus orgulhos, o plutocrata encolhia os ombros, voltava as costas, desdenhava. Mas não deixava de ser desesperante.
Agora, porém, ao regressar de férias, a revolução que por cá deixou vem dar-lhe, enfim, a tranquilidade. A vida intelectual apagou-se. A planificação da cultura parece ser uma boa surpresa.
Ernesto Palma passa a descrever a planificação da cultura. Reconhece que é ela feita inevitavelmente pelo socialismo que consiste, todo ele, em planificar todas as formas da existência, mas admite que os próprios socialistas se surpreendam ultrapassados quando vêem a cultura planificada.
A estatização do ensino é, entre nós, uma constante desde a fundação da universidade pombalina nos finais do Séc. XVIII, quase contemporânea portanto da fundação da actual ordem da sociedade pelo primeiro plutocrata. O caso insólito do aparecimento de universidades privadas, há dois séculos rigidamente proíbidas pelo Estado, no momento em que a revolução socialista de 74 estatizava violentamente as instituições, as grandes empresas financeiras e até as propriedades fundiárias, seria o desmentido desse controlo se não acontecesse terem sido as universidades privadas condicionadas, na formação dos seus corpos docentes e nos seus programas escolares, de tal modo que não passam de extensões administrativas do Estado. O caso insólito da sua fundação reduziu-se, afinal, a um recurso da corporação universitária para pôr ao abrigo de algum excesso revolucionário os seus professores. Como, depois, os graus inferiores do ensino, em especial o secundário, sempre tratados com humilhante desdém, estão limitados pelo Ministério da Educação a transmitir os conhecimentos ministrados na universidade, fica controlada a totalidade do ensino escolar.
O controlo dos meios de expressão pública faz-se segundo um processo que tem no condicionalismo da edição de livros um exemplo que pode servir de modelo.
Com efeito, o Estado socialista começa por se apossar do monopólio do fabrico de papel cuja distribuição rateia, por critérios flexíveis para se adaptarem às conveniências da planificação e cujo preço determina, como determina também, directamente ou através dos sindicatos, o preço da mão-de-obra tipográfica. O custo de editar um livro é assim elevado a preços que um autor não pode suportar, sendo forçado a solicitar a sua publicação a alguma empresa editorial a qual, por sua vez, só poderá suportar aqueles preços com o patrocínio de alguma instituição que, naturalmente subordinada aos interesses do Estado, só o concede mediante condições que põem nas suas mãos a escolha dos livros a editar e, depois, o controlo da sua distribuição e venda.
Quanto ao reconhecimento social, o seu monopólio para as obras de pensamento exerce-o a planificação mediante a censura.
O plutocrata observa tudo isto, que não pôs na revolução, e fica satisfeito. Aquele mundo do pensamento donde lhe vinham constantes, latentes ameaças, parece estar, enfim, dominado, amordaçado como dizia outrora Mário Soares. Mas na satisfação infiltra-se um indefinível mal-estar, uma vaga inquietação, uma espécie de pressentimento... Há qualquer coisa que lhe escapa (ob. cit., pp. 19-24).
Continua
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