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sábado, 4 de janeiro de 2014

Descartes e Henry More (ii)

Escrito por Alexandre Koyré








«(...) O conceito de matéria como de força originante da divisão infinita não periódica, isto é, eternamente produtora do outro coincide com o conceito da terceira das realidades indicadas por Platão. A ciência moderna aparece, do ponto de vista da sabedoria antiga, como tendo por fim conhecer e dominar a matéria. É a última e suprema forma de titanismo, jamais no passado tentada pelo homem. A matéria não é energia, no sentido grego da palavra, não é acto porque não implica forma; é potência de divisão. É o que Aristóteles significa quando diz que não há infinito actual. Mas essa potência "em que só acreditamos por um prestígio de imaginação" explodiria se a apreendêssemos, porque a sua natureza, se da natureza se pode aqui falar, é a própria "inapreensibilidade".

(...) Como para a ciência moderna, a noção suprema de realidade é a de uma matéria que é pela divisão e pela composição ad infinitum, só o método que procede por divisão e recomposição de partes aparece como adequado; dir-se-ia que aquele factor pelo qual se constitui e se reconstitui indefinidamente a matéria é o mesmo de que a inteligência humana se serve para a conhecer e dominar. A ciência antiga, como vimos, dá a matéria como o irracional na própria vida de Deus; é uma substância misteriosa que, por ser a potência de divisão infinita, constitui o elemento básico para as formas que nascem da actividade contemplativa do Espírito. Mas o conhecimento da matéria em si não atraía os antigos por saberem muito bem o que isso significava e até onde poderia conduzir».

António Telmo («O Timeu e o conceito de analogia em Leonardo Coimbra», in Viagem a Granada).


«(...) "A verdade, porém, é que a ciência antiga nos seus vários ramos, tinha um objecto absolutamente distinto do objecto da ciência moderna". E vê-se que Você [António Telmo] prefere a ciência antiga. Parece preferi-la, entre outras razões, por a ver ocupada em encontrar "as quatro forças elementares que por toda a parte actuam no mundo natural", ao passo que "para a ciência moderna, a noção suprema de realidade é a de uma matéria que é pela divisão e pela composição ad infinitum (...)" Atrever-me-ei a observar que a "ciência antiga" ou dependia ou estava muito perto de uma concepção panteísta, que, verdadeiramente, só Aristóteles (a muito custo) afasta. Esvaziar de divino "a grande máquina do mundo" foi o cuidado e o efeito directo da religião de Israel, aprofundado pelo Cristianismo (cf., por ex., Mircea Eliade, Histoire des Croyances, II, 191)».

Henrique Barrilaro Ruas («Carta a António Telmo», in Viagem a Granada).













«(...) Como me pareceu que o i grego da nossa divergência reside no modo de conceber as relações da cosmogonia com a teologia, com as implicações inevitáveis no domínio da ciência antiga e da ciência moderna, voltei a ler o magnífico livro, que de certo conhece, de Alexandre Koyré sobre a evolução do pensamento científico, Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, onde me foi dado ver que, afinal, também os grandes cientistas filósofos do século XVII se dividiram entre pontos de vista análogos aos nosso pelo que se me afigura que a oposição não é propriamente de antigos e modernos, de ciência antiga e de ciência moderna.

Quando se fala em ciència moderna e se diz simplesmente, com letra maiúscula, a "Ciência", é como se estivéssemos perante uma forma de conhecimento indiscutível e absoluta, com os seus princípios e métodos estabelecidos de uma vez para sempre, por tal modo que nós, indivíduos, nada ganhamos em pensar para formar uma concepção própria do Universo, porque outros o fazem e sabem por nós. Pelo menos, é esta a ideia provinciana da Ciência: "Não me venha com filosofias, a Ciência diz que..."; "A Ciência ainda não se pronunciou sobre este assunto, temos de esperar para que ela nos diga como é", são frases lançadas à mesa do café, mas que exprimem o prestígio dessa secreta eclésia anónima, situada algures nos laboratórios russos e americanos, onde ninguém tem acesso sem uma especial "ordenação " universitária.

O livro de Alexandre Koyré é liberalmente salutar, porque permite a heresia, isto é, a escolha. Mostra-nos, ao mesmo tempo, que todo o pensamento científico depende do pensamento filosófico e que a separação de ambos, perfeitamente estabelecida nos nossos dias, não pôde senão levar, por um lado, à redução da ciência a tecnologia, por outro, à dissolução da filosofia nas águas estagnadas dos conceitos sem conteúdo real. Entre os antigos, cada filósofo ou cada escola filosófica tinha a sua ciência. A Física de Aristóteles não era a física de Demócrito, porque diversas eram as suas concepções da constituição da matéria e do movimento. Através de Alexandre Koyré, ficamos a saber que a situação não era diferente no tempo de Newton...».

António Telmo («Carta a Henrique Barrilaro Ruas», in Viagem a Granada).



António Telmo no Mosteiro dos Jerónimos


«(...) Noutros escritos nos fala Descartes do carácter fabuloso do mundo sensível, da irrealidade portanto dos "corpos que nos rodeiam", e existe até um famoso retrato do pensador que tem escrita esta legenda: mundus est fabula. Lembrando, então, a sua preconizada filosofia prática, certa perplexidade nos pode surpreender pois logo diremos que a prática e a fábula mutuamente se excluem, e o cartesianismo simultaneamente nos aparecerá ou, nos termos da filosofia que lhe é anterior, como um realismo e um nominalismo, ou nos termos da filosofia que lhe é posterior, como um realismo e um idealismo. Esta ambiguidade vai assinalar toda a consequente evolução da filosofia nórdica: as suas expressões mais espiritualistas estão marcadas de materialismo, as suas declarações mais materialistas não conseguem esconder o mais enraizado espiritualismo, as suas sistematizações críticas concluem num dogmatismo extremo, o seu geral racionalismo funda-se na dúvida radical e patenteia uma permanente carência de persuasão retórica.

Depressa veremos, todavia, como o inical antagonismo entre prática e fábula se resolve em mútua complementaridade. Com efeito, definida como um conhecimento utilizável para dominar a natureza, a filosofia prática é a ciência moderna que Descartes se não limitou a preconizar mas de que foi também o decisivo iniciador. A ele se deve, com o princípio da inércia (ou, mais rigorosamente, com a formulação do princípio de inércia) a constituição da mecânica que é o que torna utilizável o conhecimento científico e o que distingue a ciência moderna de outros modos do conhecimento físico como seja, por exemplo, o dos gregos. "A filosofia da natureza de Descartes é puramente mecânica", diz-nos Hegel. Os corpos deixam de ter, como na física antiga, singularidade; o que era o lugar qualificado, ou determinado pelo corpo que o ocupa, passa a ser o espaço homogéneo a que Epicuro chamava o vazio; o movimento elementar deixa de ser o circular para ser o rectilíneo; a natureza perde o sentido original que abrange todas as formas nascidas e geradas e na geração contêm já a corrupção, formas que nascem, se reproduzem e morrem, para constituir a colecção dos corpos que nos rodeiam, corpos inertes ou sem vida que entre si se atraem ou repelem movidos por uma força que não reside nem na forma nem na matéria que os compõem, mas resulta da massa imaterial e informe que, com a sua presença bruta, marca limites no espaço infinito, inqualificado e homogéneo e representa uma energia cuja quantidade é invariável».

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).





Na verdade, a tentativa de Descartes para salvaguardar a omnipotência divina, negando a possibilidade de um espaço vazio enquanto incompatível com a nossa maneira de pensar, está longe de ser convincente. O Deus cartesiano é um Deus verax, que garante a verdade das nossas ideias claras e distintas. É por isso que não somente repugna ao nosso pensamento, mas é também em si mesmo impossível que qualquer coisa de que constatamos claramente o carácter contraditório seja real. Não há objectos contraditórios neste mundo, ainda que tivessem podido existir num outro.

Passando à crítica feita por More à sua distinção entre «infinito» e «indefinido», Descartes assegura-lhe que não é (12)

uma modéstia afectada, mas uma sábia precaução, em minha opinião, quando afirmo que há certas coisas mais indefinidas do que infinitas; porque apenas concebo Deus como positivamente infinito. Quanto ao resto, como a extensão do mundo, o número das partes divisíveis da matéria e outras coisas semelhantes, confesso ingenuamente que não sei de modo nenhum se elas são absolutamente infinitas ou não; o que sei é que não lhes conheço qualquer fim, e com respeito a isso chamo-lhes indefinidas.

E ainda que o nosso espírito não seja nem a regra das coisas nem a da verdade, ele deve pelo menos sê-la daquilo que afirmamos ou negamos: com efeito, nada de mais absurdo e de mais imprudente do que pretender ajuizar sobre coisas que, conforme reconhecemos, as nossas percepções não poderiam atingir.

Ora surpreende-me que não somente pareceis querer fazê-lo, já que dizeis que se a extensão é somente infinita em relação a nós, ela será verdadeiramente finita, etc., mas que imaginais ainda uma extensão divina que vá além da dos corpos; porque isso é supor que Deus possui partes separadas umas das outras, que é divisível, e que toda a essência dos corpos lhe convém inteiramente.

Descartes tem inteira razão em sublinhar que More de facto não o compreendeu: ele nunca admitira a existência possível ou imaginável de um espaço para além do mundo da extensão, e ainda que o mundo tivesse esses limites que somos incapazes de encontrar, nada haveria certamente para além deles ou, mais exactamente, não haveria para além. Por isso, para dissipar completamente as dúvidas de More, Descartes declara (13):

Mas para suprimir todas as vossas dúvidas, quando digo que a extensão da matéria é indefinida, creio bastar isso para que não imaginemos um lugar para além dela, para onde as pequenas partes dos meus turbilhões pudessem escapar-se; porque onde quer que se conceba esse lugar, há, penso eu, alguma matéria, porque ao dizer que ela é extensa de uma maneira indefinida, digo que ela se estende para além de tudo o que podemos conceber.




Creio, contudo, que há uma grande diferença entre a amplitude [ou a grandeza] desta extensão corporal e a de Deus, a que de maneira nenhuma chamo extensão, porque propriamente falando não há absolutamente nele tal coisa, mas somente [imensidade] de substância ou de essência, por isso chamo a esta simplesmente infinita, e à outra indefinida.

Descartes tem certamente razão em querer manter a distinção entre, por um lado, a infinidade «intensiva» de Deus, que não somente exclui todo o limite, mas que igualmente se opõe a toda a multiplicidade, à divisão, ao número, e por outro lado a simples ausência de fim, a ilimitação do espaço ou da série de números, que necessariamente as inclui ou pressupõe. Além disso, trata-se de uma distinção absolutamente tradicional, que já vimos ser sustentada não somente por Nicolau de Cusa mas também por Bruno.

Henry More não nega esta distinção, pelo menos não a nega completamente. Na sua própria concepção, esta distinção manifesta-se através da oposição entre a extensão material e a extensão divina. No entanto, tal como ele declara na sua segunda carta a Descartes (14), esta oposição nada tem a ver com a afirmação de Descartes de que o espaço poderia ter limites, nem com a sua tentativa de construir um conceito intermédio entre o finito e o infinito. O mundo ou é finito ou infinito, tertium non datur. E se admitirmos, como forçados, que Deus é infinito e está presente em toda a parte, esta «em toda a parte» apenas pode significar o espaço infinito. Neste caso, prossegue More retomando um argumento já utilizado por Bruno, deve igualmente haver matéria em toda a parte, o que significa que não somente mas também o mundo é necessariamente infinito (15).

Não podeis contudo ignorar que elas são em absoluto ou infinitas ou verdadeiramente finitas, ainda que vos não seja tão fácil determinar se é um caso ou o outro: todavia, poderia ser para vós um sinal assaz seguro da infinidade do mundo que os vossos turbilhões se não rompam e que neles se não produza a menor fenda. Para mim em particular, declaro livremente que, ainda que possa subscrever afoitamente este axioma, o mundo é finito, ou não finito, ou, o que é o mesmo, o mundo é infinito, o meu espírito não poderia apesar disso compreender devidamente a infinidade do que quer que seja; mas sucede aqui à minha imaginação o que Jules Scaliger diz algures sobre a dilatação e a contracção dos anjos, que eles não podem estender-se até ao infinito, nem reduzirem-se a um ponto imperceptível; não obstante, quando reconhecemos ser Deus positivamente infinito, ou seja, existente em toda a parte, como vós fazeis com razão, não vejo como pudéssemos razoavelmente hesitar em admitir imediatamente que ele não está ocioso em parte alguma, mas que por toda a parte produziu matéria com o mesmo poder e com a mesma facilidade com que criou aquela na qual vivemos, ou antes aquela até onde se podem estender os nossos olhos e o nosso espírito.




Henry More




Não é também absurdo ou irreflectido afirmar que, se a extensão é apenas infinita quando quoad nos, ela será finita na verdade ou na realidade (16):

Quando dizeis «se ela é somente infinita em relação a nós, ela será realmente finita».

Isso é verdade, e acrescento, além disso, que é uma consequência muito clara e muito certa, porque a partícula somente exclui inteiramente toda a infinidade da coisa, que é dita infinita somente em relação a nós, e por conseguinte será uma extensão realmente finita, o que o meu espírito compreende perfeitamente, já que estou evidentemente certo de que o mundo é ou finito ou infinito, como disse acima.

Quanto à afirmação de Descartes de que a impossibilidade do vácuo resulta do próprio facto de o «nada» não poder ter propriedades nem grandeza, e em consequência não poder ser medido, More responde negando a própria premissa (17):

Porque se Deus aniquilasse o Universo, e criasse um outro a partir do nada muito tempo depois, este intermundo ou esta privação do mundo teria a sua duração, cuja medida seria um certo número de dias, de anos ou de séculos. Há portanto a duração de uma coisa que não existe, duração que é uma espécie de extensão; e por consequência a extensão do nada, isto é, do vácuo, pode ser medida por anas (18) ou por léguas, como a duração do que não existe pode ser medida na sua inexistência por horas, por dias e por meses.

Vimos More defender contra Descartes a infinidade do mundo e chegar a dizer-lhe que a sua própria física o implica necessariamente.  Contudo, por momentos, ele próprio parece acometido por dúvidas. Está absolutamente seguro de que o espaço, ou seja, a extensão de Deus, é infinito. Afinal, é isso que quase toda a gente crê; entretanto, a infinidade espacial e a eternidade temporal aperfeiçoam-se rigorosamente e ambas parecem absurdas. Além disso, a cosmologia cartesiana pode ser conciliada com um mundo finito. Não poderia dizer Descartes o que aconteceria se alguém, sentado na extremidade deste mundo, cravasse a sua espada através da parede que o limita? Por um lado, evidentemente, a coisa parece fácil, porque não haveria aí nada que pudesse oferecer resistência, mas por outro lado a coisa parece impossível, porque não haveria lugar em que a espada pudesse ser cravada (19).

A resposta de Descartes a esta segunda carta de More é mais breve, mais seca e menos cordial do que a primeira. Sentimo-lo um pouco desapontado com o seu correspondente, que, manifestamente, não compreende a grande descoberta de Descartes, a da oposição essencial entre o espírito e extensão, e que persiste em atribuir a extensão às almas, aos anjos e até a Deus. Descartes afirma mais uma vez (20):

Por mim, não concebo nenhuma extensão de substância nem em Deus, nem nos anjos, nem na nossa alma; mas somente [uma vastidão de potência, ou uma extensão] em potência; de modo que um anjo pode proporcionar este poder [de extensão] tanto a uma maior como a uma menor parte da substância corpórea; porque se não houvesse corpo algum, eu não compreenderia também nenhum espaço a que Deus ou o anjo correspondessem pela extensão. Quanto a que se atribua à substância a extensão que apenas pertence à potência, esse é um efeito do mesmo preconceito que nos faz supor toda a substância e até mesmo Deus como decorrentes da imaginação.






Se não houvesse mundo, também não haveria tempo.

À afirmação de More de que o intermundium teria uma certa duração, Descartes replica (21):

Creio que implica contradição conceber-se uma duração entre a destruição do primeiro mundo e a criação do novo; porque se referirmos esta duração ou algo de semelhante à sucessão dos pensamentos divinos, isso será um erro do intelecto, não uma verdadeira percepção de qualquer coisa. Respondi já ao seguimento, ao observar que a extensão que se atribui às coisas incorpóreas convém somente à potência e não à substância, sendo essa potência somente um modo na coisa a que ela é aplicada, ao suprimirmos essa coisa extensa à qual ela correspondia não poderíamos compreender que ela fosse extensa.

Isso resultaria, com efeito, na introdução do tempo em Deus e, por conseguinte, em fazer Dele um ser temporal e mutável. Isso acabaria por negar a Sua eternidade, substituindo por ela uma mera sempiternidade, erro tão grave quanto o de fazer Dele uma coisa extensa. Porque em ambos os casos Deus arrisca-se a perder a sua transcendência, tornando-se imanente ao mundo.

É possível, sem dúvida, que o Deus de Descartes não seja o Deus cristão, mas sim um Deus filosófico (22). Nem por isso deixa de ser Deus, e não a alma do mundo, quem o penetra, o anima e o move. É por isso que, de acordo com a tradição medieval, Descartes mantém que a despeito do facto de que em Deus poder e essência se confundem - identidade que, para More, milita em favor da extensão real de de Deus -, Deus nada tem de comum com o mundo material. Ele é um puro espírito infinito, cuja infinidade é ela própria de uma natureza incomparável, única, não quantitativa e não dimensional, infinidade de que a extensão espacial não é uma imagem nem sequer um símbolo. Por conseguinte, não se deve dizer que o mundo é infinito, ainda que não seja necesário, bem entendido, encerrá-lo dentro de limites (23):

Mas repugna às minhas ideias determinar barreiras ao mundo, e a minha percepção é a única regra do que devo afirmar ou negar. É por isso que digo que o mundo é indeterminado, ou indefinido, porque não lhe conheço quaisquer termos, mas não ousarei dizer que ele é infinito, porque concebo que Deus é maior que o mundo, não em razão da sua extensão, que não concebo em Deus como já disse várias vezes, mas em razão da sua perfeição.

Descartes afirma, uma vez mais, que a presença de Deus no mundo não implica a Sua extensão. Quanto ao próprio mundo que, segundo More, ou é finito simpliciter ou infinito simpliciter, Descartes continua a recusar chamar-lhe infinito.

Todavia, seja porque está descontente com More, seja porque está a ser atacado e por isso é menos prudente, o certo é que renuncia praticamente à sua afirmação anterior, relativa à possibilidade de que o mundo tenha limites (ainda que os não possamos encontrar), e que, tal como havia feito com a ideia de vácuo, qualifica este conceito como absurdo e até mesmo contraditório. Rejeitando assim como destituída de sentido a questão relativa à possibilidade de cravar uma espada através da fronteira do mundo, escreve (24):

Repugna ao meu pensamento, ou, o que é o mesmo, implica contradição que o mundo seja finito ou terminado, porque não posso deixar de conceber um espaço para além dos confins do mundo, onde quer que os determine; ora um tal espaço é para mim um verdadeiro corpo. Em nada me embaraça que os outros lhe chamem imaginário, e que por conseguinte creiam o mundo finito, porque sei de que preconceito nasce este erro.






Ao imaginar uma espada que passe para além dos termos do mundo, provais que não concebeis o mundo como finito; porque concebeis como parte real do mundo qualquer lugar que a espada toque, se bem que deis o nome de vácuo à coisa que concebeis.

É raro que um filósofo tenha conseguido persuadir um outros: é inútil dizer que More não ficou convencido. Persistiu em crer do mesmo modo, «com todos os platónicos da antiguidade», que todas as substâncias, os anjos, as almas e Deus são extensos e que o mundo está, no sentido literal do termo, em Deus, exactamente como Deus está no mundo. More enviou então a Descartes uma terceira carta (25), à qual respondeu (26), e depois uma quarta (27), que permaneceu sem resposta (28). Não tentarei analisar aqui este suplemento de correspondência, porque ele trata sobretudo de problemas que, ainda que interessantes em si próprios como o do movimento e do repouso, são exteriores ao nosso tema.

Podemos dizer, em resumo, que vimos Descartes, sob a pressão de More, modificar um pouco a sua posição inicial. Daqui em diante, afirmar o carácter indefinido do mundo ou do espaço não significa, negativamente, que o mundo talvez possua limites que nós somos incapazes de determinar, mas equivale a declarar, de modo realmente positivo, que eles não existem porque seria contraditório admitir a sua existência. Mas ele não pode ir mais longe. É-lhe necessário manter a sua distinção entre a infinidade de Deus e a indefinibilidade do mundo, bem como a sua identificação extensão-matéria, se quer preservar a sua afirmação de que o mundo físico é objecto de pura intelecção e, ao mesmo tempo, objecto de imaginação - condição prévia da ciência cartesiana -, e de que o mundo, ainda que não possuindo limites, nos reenvia a Deus como seu criador e sua causa.

A infinidade, com efeito, sempre foi a característica ou o atributo essencial de Deus, sobretudo a partir de Duns Escoto, que apenas pôde aceitar a famosa prova a priori da existência de Deus de Santo Anselmo (prova renovada por Descartes) depois de a ter «colorido», substituindo o conceito de ser infinito (ens infinitum) ao conceito anselmiano de um ser tal que não pudéssemos conceber um maior (ens quo maius cogitari nequit). Portanto - e isto é particularmente verdadeiro quanto a Descartes, cujo Deus existe em virtude de infinita «sobreabundância da Sua essência», que lhe permite ser a Sua própria causa (causa sui) e dar-Se a Si mesmo a Sua própria existência (29) -, infinidade significa ou implica o ser, e até mesmo o ser necessário. Por isso, ela não pode ser atribuída à criatura. A distinção ou a oposição entre Deus e a criatura é paralela e perfeitamente equivalente à que existe entre o ser infinito e o ser finito (ibidem, pp. 118-125).


Notas:

(12) Correspondance..., p. 121; A.-T., p. 274.

(13) Ibid., p. 123; A.-T., p. 275.

(14) Deuxième lettre de H. More à Descartes, 5, III, 1649; Correspondance..., p. 131; A.-T., pp. 298 e segs.

(15) Correspondance..., p. 137; A.-T., pp. 304 e segs.

(16) Correspondance..., p. 137; A.-T., p. 305.

(17) Ibid., p. 135; A.-T., p. 303. A argumentação de More contra Descartes é uma reedição da de Plotino contra Aristóteles.

(18) Ana - antiga vara francesa equivalente a 1, 188m. (N. do T.).

(19) Ibid., p. 312; cf. supra, cap. II, p. 37.

(20) Correspondance..., p. 159; A.-T., p. 342.

(21) Correspondance..., p. 161; A.-T., p. 343.







(22) Essa foi, em todo o caso, a opinião de Pascal. Mas, apesar de tudo, o que pode ser o Deus de um filósofo senão um Deus filósofo?

(23) Ibid., p. 163; A.-T., p. 344.

(24) Ibid., A.-T., p. 345.

(25) Datada de 23 de Julho de 1649 (Oeuvres, vol. V, pp. 376 e segs.).

(26) Pelo menos, começou a escrever uma resposta - em Agosto de 1649 -, mas não a enviou a Henry More.

(27) Datada de 21 de Outubro de 1649, vol. V, pp. 434 e segs.

(28) É, na realidade, possível que, tendo-se apresentado a 1 de Setembro de 1649 na Suécia, onde morreu a 11 de Fevereiro de 1650, Descartes não tenha recebido esta última carta de Henry More.

(29) Cf. o meu Essai sur les preuves de l'existence de Dieu chez Descartes, Paris, 1923, e «Descartes after three hundred years», The University of Buffalo Studies, vol, XIX, 1951.


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Descartes e Henry More (i)

Escrito por Alexandre Koyré








«Podemos ter (...) duas noções ou ideias claras e distintas, uma de uma substância criada que pensa, e outra de uma substância extensa, desde que separemos, cuidadosamente todos os atributos do pensamento dos atributos da extensão. Também nos é possível possuir ideia clara e distinta de uma substância incriada que pensa e que é independente, isto é, de um Deus, desde que não pensemos que tal ideia represente tudo o nele é, e que a isso não misturemos nenhuma ficção do nosso entendimento: na condição de atendermos simplesmente ao que verdadeiramente está compreendido em a noção distinta que dele temos e sabemos pertencer à natureza de um Ser sumamente perfeito. Na verdade, ninguém há que possa negar que tal ideia de Deus seja em nós, pois não há razão para acreditar que o entendimento humano não possa ter nenhum conhecimento da Divindade».

René Descartes («Os Princípios da Filosofia»).


«(...) para determinar matematicamente a estrutura da natureza, Descartes declara na Sexta Meditação que: "de uma forma geral, todas as coisas que estão incluídas no objecto da Geometria especulativa (purae Matheseos objecto) encontram-se verdadeiramente aí [nas coisas corporais]". Mas é em virtude de Deus "que tem o poder de produzir todas as coisas que nós concebemos clara e distintamente" que estamos em posição de o afirmar. Desta forma, uma vez adquirida a validade objectiva da regra da evidência, Descartes pode garantir a possibilidade de uma física matemática que exclui, de uma vez por todas, a física qualitativa de Aristóteles. É nesta etapa que ele assume definitivamente a essência das coisas corporais como extensão.

Mas a filosofia natural das Meditações não se esgota com a determinação matemática da essência das coisas materiais. Resta ainda "examinar se existem coisas materiais" que correspondam, de facto, à nossa representação da sua essência. Uma coisa é elaborar as ideias das essências das coisas do exterior de nós com vista a aplicá-las, e outra é constatar que elas são realmente como nós as representamos. A contingência das ideias em nós interdita-nos que passemos directamente da essência à conclusão da sua existência. É por essa razão que Descartes se obriga a procurar uma passagem que conduza às coisas exteriores existentes. Para este fim, ele vai pensar em primeiro lugar na faculdade de imaginar que não pertence necessariamente à minha natureza enquanto poder de conceber. Mas o exame aprofundado da modalidade da imaginação força-o a concluir que, pelo seu aspecto formal, ela pertence à ordem do meu pensamento: ela contém "alguma espécie de intelecção" no seu "conceito formal". Além de Descartes não reconhecer à imaginação qualquer função determinante no conhecimento da essência das coisas materiais, ele também não a considera como uma faculdade capaz de abrir uma passagem para a esfera exterior das coisas materiais.


Ficando assim excluída a imaginação, enquanto meio de demonstração da existência dos corpos, Descartes envereda pelo exame dos sentidos. Nesta fase da Sexta Meditação, onde está de posse do conhecimento não apenas do eu, mas também do "autor da minha origem", ele vai admitir que os sentidos, na medida em que também são um produto de Deus, devem conter "alguma verdade". Aqui, a esfera dos sentidos não é entendida à maneira dos filósofos idealistas como estando submetida às construções da intelecção, mas sim como tendo um conteúdo ao qual a intelecção não consegue aceder. A ilação fundamental que Descartes extrai deste exame dos sentidos é a seguinte: "Reconheço também em mim algumas outras faculdades como a de mudar de lugar, a de me colocar em diversas posições e outras semelhantes". Essas faculdades devem estar ligadas a qualquer substância, tal como a faculdade de imaginar o estará à substância pensante. Ora, elas deveriam estar ligadas a qualquer substância corporal ou extensão. Porque, "no seu conceito claro e distinto, há de facto uma espécie de extensão que se encontra contida, mas que não é a inteligência. Além disso, existe em mim uma certa faculdade passiva de sentir, isto é, de receber e reconhecer as ideias das coisas sensíveis", o que não seria possível "se não existisse... uma faculdade activa, capaz de formar e produzir essas ideias". Descartes refere então a especificidade dos nossos sentidos ligada à sua passividade e à posição que o nosso corpo ocupa no mundo. Ele vai, em seguida, aplicar o princípio de causalidade a esta relação assimétrica entre paixão e acção, o que o conduz a assumir a existência de uma substância extrínseca a nós que exerce a acção causal sobre os nossos sentidos exteriores. É por este meio que Descartes chega à conclusão de "que existem coisas corpóreas"».

Michio Kobayashi («A Filosofia Natural de Descartes»).


«Aquilo que denominamos abstracções, concebemo-las da mesma maneira quando consideramos aquilo que é plano, isto é: chato - um nariz chato é por nós concebido sem o separarmos da matéria; se o consideramos em relação à sua concavidade característica e quando o concebemos em acto, exclui, então, o pensamento a carne na qual se encontra esta concavidade - por conseguinte, é assim que os objectos matemáticos, os quais se encontram separados da matéria, são concebidos como sendo separados, sempre que se pensa em abstracções. O intelecto de uma maneira geral, torna-se assim em acto, sendo idêntico aos objectos do pensamento. Quanto a saber se o intelecto pode pensar algum objecto separado do não-extenso, ou se porventura tal será possível, é uma questão que será necessário examinar posteriormente».

Aristóteles («De Anima»).





Extensão indefinida ou espaço infinito?


Henry More foi um dos primeiros partidários de Descartes em Inglaterra, e ainda que na realidade nunca tenha sido um verdadeiro cartesiano, voltou-se mais tarde contra Descartes e chegou mesmo a acusá-lo de favorecer o ateísmo (1). Trocou com o filósofo francês uma série de cartas extremamente interessantes, que iluminam vivamente as posições respectivas dos dois pensadores (2).

More, que começa naturalmente por exprimir a sua admiração pelo grande homem que tanto fez para fortalecer a verdade e dissipar o erro, queixa-se seguidamente da dificuldade que tem em compreender certas partes do seu ensinamento e termina formulando algumas dúvidas e até algumas objecções.

É assim que ele acha difícil de compreender, ou de admitir, a oposição radical estabelecida por Descartes entre o corpo e a alma. Como é que uma alma puramente espiritual, isto é, qualquer coisa que, segundo Descartes, não possui qualquer tipo de extensão, pode ser unida a um corpo puramente material, ou seja, qualquer coisa que não é mais do que extensão? Não seria melhor supor que, se bem que imaterial, a alma é, também ela, extensão e tal como todas as coisas, incluindo Deus, é extensa? Senão, como poderia Deus estar presente no mundo? More escreve então (3):


Definis a matéria ou o corpo de um modo demasiado geral, porque parece que não apenas Deus, mas os próprios anjos e toda a coisa que existe por si própria, é uma coisa extensa; de modo que a extensão parece estar encerrada nos mesmos termos que a essência absoluta das coisas, que pode todavia ser diversificada segundo a variedade das próprias essências. Ora, a razão que me faz crer que Deus é extenso à sua maneira é que ele está presente em toda a parte, e preenche intimamente o universo e cada uma das suas partes; porque como comunicaria ele o movimento à matéria, como fez outrora, e como o faz actualmente segundo vós, se não tocasse por assim dizer precisamente a matéria, ou pelo menos se não a houvesse tocado sem ser assim? O que certamente ele nunca teria feito se não se encontrasse presente em toda a parte e se não houvesse preenchido cada lugar [e cada região]. Deus está, portanto, estendido e distribuído à sua maneira; por consequência, Deus é uma coisa extensa.

Tendo estabelecido que o conceito de extensão não pode ser utilizado para definir a matéria, uma vez que, sendo demasiado amplo, engloba simultaneamente o corpo e a alma, que são ambos extensos se bem que de um modo diferente (para More a demonstração cartesiana do inverso não somente é falsa mas também puramente sofística), More insinua, em segundo lugar, que sendo a matéria necessariamente sensível apenas deve ser definida pela sua relação com a sensação, ou seja, pela tangibilidade.

Contudo, se Descartes julga dever evitar toda a referência à percepção sensível, a matéria deveria então ser definida pela capacidade dos corpos de estarem em contacto uns com os outros, e pela impenetrabilidade que a matéria possui, opondo-se por isso ao espírito. Este último, ainda que extenso, é livremente penetrável, mas impossível de tocar. Assim, espírito e matéria podem coexistir no mesmo lugar e, bem entendido, dois - ou não importa que número - espíritos podem ter uma única e mesma localização e «penetrarem-se» uns aos outros, enquanto isso é impossível aos corpos.

A rejeição da identificação cartesiana da extensão e da matéria leva naturalmente Henry More a rejeitar igualmente a negação cartesiana do vácuo. Porque não seria Deus capaz de destruir a totalidade da matéria contida num determinado recipiente, sem que para isso - contrariamente à afirmação de Descartes - as paredes deste se devessem necessariamente confundir? Descartes explica, decerto, que estar separado pelo «nada» é contraditório e que atribuir dimensões a um espaço «vazio» é a mesma coisa que atribuir propriedades ao nada; More, contudo, não está convencido, tanto mais que «a sábia antiguidade» - Demócrito, Epicuro, Lucrécio - era de uma opinião inteiramente diferente. É com certeza possível que as partes do recipiente se aproximem e se confundam sob a pressão da matéria exterior. Mas se isso acontecesse seria o resultado de uma necessidade natural e não de uma necessidade lógica. Além disso, este espaço vazio não o estará, porque continuará a estar preenchido pela extensão divina. Apenas estará vazio de matéria ou, mais propriamente, de corpos.



Demócrito de Abdera




Em terceiro lugar, Henry More não compreende «a subtileza singular» que constituem, por parte de Descartes, a negação da existência dos átomos e a sua afirmação da indefinida divisibilidade da matéria, combinadas com a utilização de concepções corpusculares na sua própria física. Dizer que ao admitirmos a existência de átomos limitamos a omnipotência divina e que não negar que Deus poderia, se o quisesse, dividir os átomos, nada adianta: porque a indivisibilidade dos átomos significa simplesmente que eles não podem ser divididos por nenhum poder criado, o que é perfeitamente compatível com o poder de Deus para o fazer, se o quisesse. Há toda uma quantidade de coisas que Deus poderia ter feito e não fez, ou mesmo de coisas que Ele pode fazer mas não faz. Se Deus tivesse querido preservar a sua omnipotência absoluta, nunca teria criado a matéria; porque, sendo a matéria divisível em partes que são elas próprias divisíveis, é evidente que Deus nunca poderá pôr termo a esta divisão e que haverá sempre qualquer coisa que escapará à sua omnipotência.

É claro que Henry More tem razão. Insistindo na omnipotência divina e recusando limitá-la ou travá-la, quer seja pelas regras da lógica ou das matemáticas, Descartes vê-se forçado a declarar que há muitas coisas que Deus não pode fazer, ou porque fazê-las constituiria ou implicaria uma imperfeição (por exemplo, Deus não pode mentir ou enganar), ou porque seria um absurdo. É precisamente por isso, afirma Descartes, que o próprio Deus não pode criar um vácuo ou um átomo. Segundo Descartes, Deus teria podido, sem dúvida, criar um mundo completamente diferente e proceder de modo a que duas vezes dois fossem cinco em vez de quatro. Mas, por outro lado, é igualmente certo que Ele não o fez e que no mundo, tal como ele existe, nem mesmo Deus pode fazer com que duas vezes dois não sejam quatro.

A avaliar pela orientação geral das suas objecções, é evidente que More, platónico, ou antes neoplatónico, estava profundamente influenciado pela tradição do atomismo grego, o que nada tem de surpreendente se pensarmos que uma das suas primeiras obras tem o título revelador de Democritus Platonissans... (4).

O que ele pretende é precisamente evitar a geometrização cartesiana do ser e salvaguardar a velha distinção entre o espaço e as coisas que se encontram no espaço, que se movem no espaço, e não apenas umas em relação às outras; que ocupam espaço graças a uma qualidade ou força especial e determinada, a impenetrabilidade, que faz com que elas resistam umas às outras e se excluam umas às outras dos seus «lugares» respectivos.

São grosso modo concepções democritianas, o que explica a profunda semelhança entre as objecções que More opõe a Descartes e as que lhe foram feitas por Gassendi, o mais importante representante do atomismo no século XVII (5). Henry More, contudo, não é um puro democritiano. Não reduz o ser à matéria. O seu espaço não é o vácuo infinito de Lucrécio; está pleno, mas não de «éter» como o espaço infinito de Bruno. Está pleno de Deus; como veremos melhor mais adiante, ele é, em certo sentido, Deus Ele próprio.



Giordano Bruno




Voltemos agora à quarta objecção, a mais importante, que More faz a Descartes (6):

Não compreendo melhor esta extensão indefinida do mundo; porque ou ela é infinita em si própria ou em relação a nós. Se os entendeis no primeiro sentido, porquê envolver-nos em palavras obscuras e afectadas. Se ela não é infinita senão em relação a nós, esta extensão é realmente infinita; porque o nosso espírito não é nem a medida nem a regra das coisas e da verdade; assim, como há uma outra extensão absolutamente infinita que pertence à essência divina, a matéria dos vossos turbilhões afastar-se-á dos seus centros, e toda a máquina do mundo se perderá em átomos e em pequenas partes que se dissiparão aqui e ali [nesta vasta imensidade de Deus] (7).

Tendo assim encurralado Descartes, levando-o a escolher entre os dois ramos do dilema, More continua (8):

Porém, admiro aqui o vosso comedimento, e o vosso temor, em tomar tantas precauções para não admitir uma matéria infinita, enquanto reconheceis partes realmente infinitas e divididas, e quanto o não confessásseis, poderíamos constragir-vos a fazê-lo desta maneira.

por meio de argumentos que Descartes será obrigado a aceitar (9):

Sendo a quantidade divisível até ao infinito, ela deve ter partes realmente infinitas; porque como é absolutamente impossível separar realmente com uma faca, ou qualquer outro instrumento que queirais, um corpo em partes [sensíveis e] palpáveis, e que de todo não sejam assim actualmente, também é contra toda a razão dividir pelo pensamento uma quantidade em partes que de facto não existem realmente e actualmente no todo.

À perplexidade e às objecções do seu admirador e crítico inglês, Descartes responde (10) - num tom espantosamente moderado e cortês - que definir a matéria pelas suas relações com os sentidos é um erro porque, ao fazê-lo, arriscamo-nos a deixar escapar a sua essência verdadeira, que não depende da existência dos homens e que seria a mesma se não houvesse homens no mundo; que, além disso, uma vez dividida em partes suficientemente pequenas, toda a matéria se torna totalmente imperceptível aos sentidos; que a sua prova da identidade extensão-matéria não é de modo algum um sofisma, mas que é tão clara e convincente quanto possível, e que para definir a matéria de modo algum é necessário postular essa qualidade especial que é a impenetrabilidade, uma vez que ela não é mais do que uma consequência da sua extensão.

Passando em seguida ao conceito, formulado por More, de uma extensão imaterial ou espiritual, Descartes escreve (11):

Não é meu costume discutir sobre as palavras; é por isso que se quisermos que Deus seja em certo sentido extenso, porque que está em toda a parte, o consentirei: mas nego que em Deus, nos anjos, na nossa alma, enfim em qualquer outra substância que não é corpo, haja uma verdadeira extensão, tal como todos a concebem; porque por um ser extenso se entende vulgarmente coisa que é do domínio da imaginação; que este seja um ser de razão ou um ser real, isso não importa. Neste ser podemos distinguir pela imaginação várias partes de uma grandeza determinada e figurada, em que uma não é de todo a outra; de modo que a imaginação pode aí transferir uma para o lugar da outra, sem que por isso possamos imaginar duas simultaneamente no mesmo lugar.






Nada disto se aplica a Deus ou às nossas almas, que não são objectos da imaginação, mas sim do entendimento puro e não possuem partes separáveis, e sobretudo não possuem partes dotadas de uma grandeza ou forma determinadas. É precisamente porque não têm extensão que Deus, a alma humana e um qualquer número de anjos podem estar ao mesmo tempo no mesmo local. Quanto aos átomos e ao vácuo, é certo que, sendo a nossa inteligência finita e a potência de Deus infinita, não nos convém impor-Lhe limites. É por isso que devemos afirmar sem hesitação que «Deus pode fazer tudo o que eu concebo possível, sem ter a temeridade de afirmar que Ele não pode fazer o que repugna à minha maneira de conceber». Não é menos certo que apenas podemos ajuizar de acordo com os nossos conceitos e, como repugna ao nosso modo de pensar o conceber que, se se houvesse extraído toda a matéria contida num recipiente, a extensão, a distância, etc., ainda subsistiriam, ou que as partes da matéria sejam indivisíveis, dizemos simplesmente que tudo isso implica contradição (in Do Mundo Fechado ao Universo Infinito, Gradiva, pp. 111-117).


Notas:

(1) Cf. Miss Marjorie H. Nicolson, «The early stages of Cartesianism in England», Studies in Philolgy, vol. XXVIII, 1929. Henry More aceitou a física cartesiana, se bem que apenas em parte, assim como a rejeição cartesiana das formas substanciais, mas nunca abandonou a sua crença na existência e na acção de agentes «espirituais» na natureza e nunca aceitou a rigorosa oposição cartesiana entre a matéria - reduzida à extensão - e o espírito, definido pela consciência de si próprio e pela liberdade. Em consequência, Henry More crê que os animais têm uma alma e que as almas possuem uma extensão não material; cf. também Miss M. Nicolson, The Breaking of the circle, Evaston, III, 1950.

(2) Estas cartas foram publicadas por Clersellier na sua edição da correspondência de Descartes (Lettres de M. Descartes où sont traittés les plus belles questions de la morale, de la physique, de la médicine et des mathématiques..., Paris, 1657) e publicadas de novo pelo próprio Henry More (com um prefácio assaz malévolo) na sua Collection of severall philosophical writings de 1662. Cito-as na tradução de Mme. G. Rodis-Lewis (Descartes, Correspondance avec Arnault et Morus, Paris, 1953), acrescentando a referência à edição Adam-Tannery (Descartes, Oeuvres, V, Paris, 1903).

(3) Lettre à Descartes, II-XII, 1648; Correspondance avec Arnauld et Morus, pp. 97-99; A.-T., pp. 238 e segs.

(4) Nesta obra, escrita em 1646, ele mostra-se um partidário entusiasta da doutrina de Lucrécio e de Bruno sobre a infinidade dos mundos; cf. Lovejoy, op. cit., pp. 125, 347.


(5) Sobre Gassendi, ver K. Lasswitz, op. cit., e R. P. Gaston Sortais, La Philosophie moderne, depuis Bacon jusqu'à Leibniz, vol. II, Paris, 1922; B. Rochot, Les Travaux de Gassendi sur Épicure et l' atomisme, Paris, 1944; Semaine de Synthèse, Pierre Gassendi, sa vie et son oeuvre, Paris, 1955; Actes du Congrès du Tricentenaire de Pierre Gassendi, Paris, 1957. Gassendi não é um pensador original e não desempenhou qualquer papel no debate que apresento. É um espírito muito timorato que aceita, sem dúvida por razões de ordem teológica, a finidade do mundo imerso num espaço vazio; todavia, ao fazer reviver o atomismo epicurista e ao insistir na existência do vácuo, que declarou não ser nem substância nem atributo, ele minava a própria base da discussão, ou seja, a ontologia tradicional que continuava ainda a dominar não somente o pensamento de Descartes e de More mas também os de Newton e de Leibniz.

(6) Lettre à Descartes, Correspondance..., p. 103; A.-T., p. 242.

(7) No mundo cartesiano, os turbilhões que rodeiam as estrelas fixas exercem pressão uns sobre os outros e impedem-se reciprocamente de rebentar e de se dissolverem sob a influência da força centrífuga; se o seu número fosse infinito, e por consequência a sua extensão limitada, primeiro os mais exteriores e seguidamente todos os outros se dispersariam e dissipariam.

(8) Lettre à Descartes, Correspondance..., p. 103; A.-T., p. 242.

(9) Nomeadamente por argumentos baseados na consideração da omnipotência divina.

(10) Descartes à Henry More, 5, II, 1649; Correspondance..., pp. 113-115; A.-t., pp. 267 e segs.

(11) Ibid., p. 115; A.-T., pp. 269 e segs.

Continua