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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Os Descobrimentos Henriquinos

Escrito por Oliveira Martins










«Quando (...) o Infante expirou em Sagres os portugueses conheciam já, e exploravam comercialmente, toda a costa africana até à Serra Leoa. Quarenta anos mais tarde estavam já na Índia e no Brasil, para doze anos depois atingirem a China e as Molucas. No curto intervalo de três gerações quadruplicara a área do Globo conhecida do Ocidente europeu.

Teria o Infante uma noção clara dos horizontes que para a História Universal ia rasgar o movimento que iniciou?

(...) É que sejam quais forem os objectivos que tenha pretendido alcançar, não há dúvidas que a sua actuação foi decisiva no momento crucial: a passagem do Cabo Bojador e os primeiros passos no desconhecido. É verdade que outros antes dele haviam tentado, igualmente, ultrapassar aquele tradicional limite das águas navegáveis. Em 1291, dois italianos, os irmãos Vivaldi, haviam tentado circum-navegar a África em duas galés; em 1346 fora a vez de um catalão, Jaime Ferrer; mas todos haviam fracassado. As causas do seu insucesso são claras: partiam de portos mediterrâneos, distantes e mal colocados para base de explorações no Atlântico; sobretudo usavam galés, navios de baixo bordo, impróprios para arrostar com a braveza do Oceano, e para mais a remos, inadequados para viagens longas. Portugal estava, sem dúvida, mais bem situado para expedições nesse sentido. Sito na faixa mediterrânica mas virado para o Atlântico herdara, ao mesmo tempo, as técnicas de navegação do Mediterrânico - baseadas no uso da bússola e da carta de marear, ainda desconhecidas do Mar do Norte - e as técnicas de construção naval das costas atlânticas, em que a agitação do mar exigia que os navios fossem sólidos e resistentes. Sito, para mais, na confluência de duas civilizações - a muçulmana e a cristã - dispunha do legado cultural de uma e outra: e a dos árabes era bem rica em matéria de astronomia.

Só com os descobrimentos a política portuguesa se orientará decididamente para Sul - acabando por transformar Portugal num grande intermediário entre a Europa e o resto do Mundo.

É nos preparativos da conquista de Ceuta que D. Henrique nos aparece, pela primeira vez, ligado à empresa ultramarina: El-Rei seu pai confia-lhe em 1411 o levantamento de tropas no Norte e o comando da armada que se formou no Porto.



Montante do Infante D. Henrique



Conquistada Ceuta em 1415, D. Henrique permanece-lhe ligado, e assim virado para Além-Mar, pois D. João I confia-lhe a organização dos provimentos da praça recém-tomada. Em 1418 defende-a do primeiro grande cerco que os mouros lhe vêm pôr.

É por essa época que, tanto D. Henrique como seu irmão D. Pedro, constituem armadas particulares, para a guerra de corso no estreito de Gibraltar. Era uma actividade que, além de lucrativa, era abençoada pela Igreja como uma forma de enfraquecer o poderio naval dos infiéis e assegurar a respiração comercial da cristandade, ainda ao tempo mais ou menos prisioneira do «abraço de ferro do Islão». Foi, com toda a verosimilhança, dessa armada que saíram os primeiros navios e os primeiros marinheiros para a aventura dos descobrimentos.

É possível, até, que tenham sido as dificuldades experimentadas na guerra frontal aos mouros de Marrocos, que tenham sugerido ao Infante a ideia de fazer expedições marítimas para o Sul, e tentar assim uma manobra de diversão e envolvimento. É Zurara quem o sugere no célebre capítulo VI da Crónica da Guiné, em que esquematizou em cinco razões os motivos que levaram ao seu amo a mandar passar o Bojador.

A primeira razão que o moveu foi, segundo Zurara, a curiosidade geográfica: saber ao certo o que havia para além daquele Cabo que até ali ninguém ousara ultrapassar. A segunda, foi uma razão comercial: procurar populações não muçulmanas com quem pudesse estabelecer comércio, já que com os mouros o proibiam os cânones da Igreja - diga-se em abono da verdade nem sempre respeitados. A terceira, de ordem estratégica, liga-se à sua política marroquina: tomar o pulso ao poderio muçulmano, vendo até que ponto, para Sul, se estendia a sua esfera de influência. A quarta, de ordem militar, liga-se mais directamente a tal política: procurar, para com ele fazer uma aliança contra os infiéis, um príncipe cristão que se sabia reinar no interior da África. Trata-se, evidentemente, do famoso Preste João, figura semi-mitológica nascida das vagas notícias chegadas à Europa acerca dos príncipes mongóis cristãos da Etiópia, de que a Europa tomara conhecimento no Próximo Oriente, na época das Cruzadas. A quinta razão, finalmente, é de ordem religiosa: levar a fé cristã aos pagãos que se supunha existirem para lá dos territórios dominados pelos muçulmanos.




As tentativas de passar o Bojador iniciam-se - a aceitarmos os dados de Zurara - em 1422. Em 1419 alguns homens do Infante, no regresso do cerco de Ceuta, haviam iniciado o povoamento do arquipélago da Madeira; mas a Madeira era já conhecida, e provavelmente visitada pelos portugueses desde o século anterior, de modo que o seu povoamento não constitui ainda uma novidade notável.

A grande novidade é, de facto, a passagem do Bojador por Gil Eanes, em 1434, após doze anos de tentativas falhadas. Fica aberto aos portugueses o caminho do Sul, que em breve lhes abrirá as portas do Continente Negro e em seguida, as do Oriente. À expedição de Gil Eanes duas outras se seguem, imediatamente, que levam os homens do Infante até ao rio do Ouro.

Mas em 1436, os projectos da conquista marroquina levam D. Henrique a desviar de novo as atenções do litoral africano. É, com efeito, ele quem em pessoa comanda, no ano imediato, a malograda expedição contra Tânger. O desgosto e o sentimento de culpa que o desastre lhe causa, levam-no a afastar-se da Corte e a estabelecer-se no Algarve. Mas a morte de D. Duarte, em 1439, e toda a questão que se levanta acerca da regência trazem-no de novo à Corte. Superada a crise política pela entrega do governo ao Infante D. Pedro, D. Henrique regressa ao Algarve para prosseguir os seus descobrimentos. Aliás, o próprio D. Pedro, desfavorável às conquistas marroquinas (que desagradavam às classes populares, a quem devia o poder, e teriam posto em perigo a vida de D. Fernando, preso em Fez como refém) estimula o irmão a dedicar-se preferentemente a explorações marítimas e à colonização das ilhas. Mas um novo obstáculo se segue ao prosseguimento das viagens para Sul. A partir do rio do Ouro entra-se na zona constantemente batida ao longo do ano pelos ventos alíseos de Nordeste. Se a viagem de ida é fácil, a de regresso, contra o vento, torna-se praticamente impossível. A dificuldade é vencida com a criação de um novo tipo de navio: a caravela, dotada de velas latinas, e portanto capaz de bolinar, isto é, de avançar contra o vento. O período que vai de 1441 a 1446 é o mais espectacular da história dos descobrimentos henriquinos: nesse curto lapso de cinco anos os navios do Infante exploram todo o litoral sahariano, e em viagens sucessivas, atingem a terra dos negros e chegam ao rio Casamansa.

Foi provavelmente por esta época que os mareantes portugueses começaram a fazer observações empíricas da altura da Estrela Polar, como elemento de correcção da estima do caminho percorrido no mar. Mas só a pouco e pouco esses processos se vão tornando científicos. É verdade que se deve a D. Henrique, como protector e administrador da universidade portuguesa, a criação das primeiras cátedras de astronomia e matemática; mas também é verdade que a ciência náutica portuguesa se desenvolve, preferentemente, em círculos directamente ligados à navegação, para só muito mais tarde, com Pedro Nunes, receber na universidade direito de cidade.









A partir de 1446 o ritmo do avanço para Sul afrouxa. Chegara-se a terras povoadas, o comércio tornava-se rendoso. A empresa ultramarina começa a interessar os particulares: primeiro, pequenos nobres da casa do Infante, depois burgueses de Lisboa e até italianos, começam a interessar-se pelo trato da Guiné. Muitas expedições ficam-se pelas terras já conhecidas, onde o lucro é certo, em vez de se aventurarem no desconhecido. A distância e a dificuldade de abastecimentos tornam trabalhosas as viagens. O próprio Infante se distrai um momento da empresa africana, para tomar parte com Afonso V, seu sobrinho, numa última aventura marroquina, a conquista de Alcácer Ceguer. Por tudo isto, o avanço torna-se mais lento; mas não chega a parar: ano após ano vão-se descobrindo novas léguas de costa até à Serra Leoa. Por aí andavam os seus navios, sob o comando de Pero de Sintra, quando nos finais de 1460 o Infante expirou, na sua vila em Sagres.

O sinal seguro de que esse fulgurante avanço para Sul em muito se deveu ao seu esforço e persistência está no que sucedeu após a sua morte: continuaram as expedições comerciais às terras conhecidas, mas ninguém se aventurou durante nove anos a continuar a exploração da costa. Só em 1469 - quando D. Afonso V fez contrato com um certo Fernão Gomes, armador de Lisboa, para em troca do exclusivo do comércio da Guiné descobrir anualmente cem léguas para diante - os descobrimentos recomeçaram. D. Henrique e os seus navegadores haviam, com efeito, não só aberto o caminho físico para a circum-navegação da África, como também lançado as bases para que com os descobrimentos se auto-financiassem e pudessem seguir em frente.

E assim começou, na História da Humanidade, uma nova era».

«Homens que transformaram o mundo» (Coordenação de Roland Göök, Círculo de Leitores, 1978).


«Incidências aristotélicas são patentes na Crónica de D. Pedro I e na Crónica de D. Fernando, de Fernão Lopes, cuja teoria do conhecimento é aristotélico-platonizante, e cuja prática hermenêutica manifesta, na sua obra de historiador, o realismo peculiar à lógica de Aristóteles. O aristotelismo político aparece no Livro Velho, do conde D. Pedro de Barcelos, na obra de Gomes Eanes de Azurara, e nas de outros escritores da mesma época. D. Duarte, que tinha Aristóteles na sua livraria, cita-o algumas vezes; o infante D. Pedro, no Da Virtuosa Benfeitoria, mostra influência aristotélica mais ampla, citando, já os livros lógicos, já os de ciências naturais, enquanto D. Duarte preferiu os lógicos, os éticos e os políticos. A presença de mestres franciscanos, como Fr. João Verba, junto destes autores, leva-nos a considerar a sua influência neles e, também, o valor que as escolas franciscanas dariam, nesse tempo, ao pensamento de Aristóteles. Da mesma geração é o infante D. Henrique, o qual, sem ter deixado trabalho escrito, estava ciente do valor medianeiro do realismo aristotélico, quanto a uma teoria das causas, sendo muito significativo que tivesse mandado reservar uma sala do Estudo Geral de Lisboa, para aí ser pintado o retrato de Aristóteles».

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).





Cruz da Ordem de Avis





Viseu


«Os navegadores portugueses descobriram o caminho marítimo para a Índia, fazendo o percurso pelo cabo da Boa Esperança, em 1498. Em face dos documentos coevos, pode assentar-se que era triplo o objectivo que levara os Portugueses ao Oriente - comercial, político e religioso, este estreitamente ligado ao fim político. Desviou-se deste modo o comércio do Oriente com a Europa, feito por Suez e pelo Mediterrâneo, e traçou-se-lhe uma nova rota pelo Atlântico, fazendo de Lisboa um empório comercial. O facto traria a decadência às repúblicas italianas e diminuiria o poderio turco. Por outro lado, enfraquecer o poderio turco, tornando insegura a retaguarda no mar Vermelho e no Índico, e aliviar assim a pressão exercida na Europa, consideraram-no os Portugueses da época mais eficaz que a resistência frontal que foi durante muitos anos a estratégia das potências do Ocidente. Por último, "fazer cristandade", missionar os povos, levar-lhes a mensagem de Cristo era como um imperativo da Nação portuguesa, fielmente traduzido nas ordens emanadas dos Reis. Quando se lêem, por exemplo, as cartas de Afonso de Albuquerque (1507-1515) e de D. João de Castro (1538-1548), mais vivas por sua natureza que os depoimentos dos historiadores, é-se empolgado pela largueza das concepções políticas, pela audácia e ao mesmo tempo realismo dos planos e por essa ânsia de levar a todo o Oriente a fé, a cultura, a alma ocidental. O empreendimento revela-se, no fundo, mais idealista que utilitário: o monopólio comercial não era, enquanto pudesse manter-se, senão a fonte indispensável dos recursos para fazer face às duas outras finalidades.

A conquista de novas terras, a sujeição de novas gentes não estavam nos desígnios dos Portugueses. Decerto a questão foi levada mais de uma vez aos conselhos da Coroa, e aí se debateram modos de ver divergentes; mas a linha geral da política da Índia não sofreu variação de vulto a este respeito. Compreende-se que, para os fins indicados, não houvesse necessidade de mais que de ocupar em terra alguns pontos estratégicos para apoio das armadas que vigiavam os mares e garantiam a segurança das novas rotas do comércio, como se compreende também que essa base territorial se obtivesse geralmente por cedência dos pequenos reinos locais em troca de serviços prestados.

Na dispersão das soberanias de tipo feudal que dividiam entre si e em cacho o Indostão, eram constantes as rivalidades e lutas entre os pequenos reinos, as disputas familiares pela sucessão do poder. Precisamente em Goa, o Português foi o aliado do Hindu contra o Mouro, cujo domínio e abusos de autoridade pesavam na vida das populações, ansiosas por libertar-se do jugo daquele. Nos tratados negociados com os soberanos locais, Portugal contentava-se com a licença de erguer fortaleza e com a porção de território necessária à sua defesa; o reconhecimento, à moda do tempo, da soberania do Rei de Portugal, mediante o pagamento de um tributo simbólico, e a liberdade de pregação da fé dos missionários. Em troca, a amizade do Rei de Portugal, ou seja, a segurança dos mares e dos portos e a liberdade de comércio, garantidas pelas suas esquadras. Não havia imposições quanto à vida e às instituições locais: estas eram as existentes, sujeitas à sua evolução natural, influenciadas, como é bom de ver, pela presença do Ocidente, cristão e socialmente mais avançado, naquelas paragens.
O que se chama o Império Português do Oriente foi assim um império absolutamente sui generis: um império de mar que cessaria quando nações concorrentes se apoderassem do comércio e quando enfraquecesse o poderio naval que o canalizava e defendia. Pode dizer-se que terminou quando aqueles dois factores deixaram de pertencer a Portugal em supremacia. Não obstante, Portugal, pioneiro dos descobrimentos e condutor de uma civilização, enraizou-se por muitos modos nos países do Oriente - da Índia à Malásia, à China e ao Japão, sem apoio de uma extensa soberania territorial».

Oliveira Salazar («Portugal, Goa e a União Indiana»).


«(...) Destruir Meca afigura-se muito fácil a Albuquerque, nem se precisaria de muita gente para o fazer. O xerife não era poderoso e em Meca não havia guerreiros, mas devotos apenas que... "todos sam de contas na mão e de unhas alfenadas...".

(...) Não se esquecia de que a Abissínia possuía o curso superior do Nilo. Disso se podia tirar vitória certa sobre o Egipto. "Se el Rei nosso senhor daa maneira d'oficiaes, esses que cortam as aguoas pellas serras da Ilha de Madeira, que lancem ho crecimento do Nillo per outro cabo, que nom vá reguar as terras do Cairo, em dous anos he desfeito o Cairo, e a terra toda perdida".

Um golpe no Islão, como aquele que Albuquerque pretendia vibrar-lhe, seria a libertação da Cristandade do espectro que durante sete séculos a oprimia. Para compreender todo o alcance deste facto precisamos de vê-lo através dos olhos daqueles que viveram há quatrocentos anos, quando a tomada de Constantinopla pelos Turcos estava ainda bem viva na memória. Os assustadiços do nosso tempo têm falado no perigo amarelo, mas a ameaça muçulmana à Europa daquele tempo não era papão imaginário. Era realidade palpitante e medonha. Exercendo pressão nos confins da Cristandade através de toda a Idade Média, lá estavam as terríveis cimitarras, brandidas por mouros árabes, ou turcos - raça estranha, fé estranha e civilização estranha - sempre à espera de esmagar e absorver. Quantas vezes não tinham eles já, de facto, passado como o furacão e quantas não tremera a balança do destino do mundo ocidental? Basta ler a História para nos lembrarmos. O ímpeto da maré tinha sido detido, mas ainda não tinha virado. O grande império cristão a construir no Oriente - Portugal apoiado no Preste João - vibraria um golpe mortal no flanco do inimigo e alcançaria a vitória final para a Cruz. Não é de estranhar que os (...) portugueses se julgassem instrumentos dos desígnios de Deus.


Numa noite escura, no Mar Vermelho, quando a armada ancorada fora do porto, esperava pela brisa, surgiu no céu uma cruz luminosa, que brilhou sobre a terra do Preste João. Viu-se, nitidamente, de cada uma das naus, e todos caíram de joelhos. "Eu tomey daquy que a Nosso Senhor aprazia fazermos aquele caminho, e que nos mostrava aquele synall pera aquela parte" - escreveu Albuquerque -, "per onde s'avia por mais servido de nos". Mas, não obstante, não se levantou vento que levasse a armada a Maçuá.

As funções de governador da Índia obrigavam Albuquerque a regressar lá depois da monção. A armada de Portugal chegava à Índia entre Agosto e Outubro, e era preciso receber o correio e dar-lhe resposta, despachar a armada do reino e tratar de mil outros assuntos. A insuficiência de tempo para realizar todos os serviços que tinha às costas peava Albuquerque tão seriamente como a falta de outras coisas mais materiais. Em 1513, regressou do Mar Vermelho à Índia, em Setembro, inteiramente resolvido a voltar de novo logo no princípio do ano seguinte. "Em janeiro me convém partir para o Streito" - escrevia ele ao rei -, "se nele ouver de fazer fruyto". Mas verificou que as naus estavam absolutamente incapazes de navegar tão cedo - tinham todos os costados de madeira empenados e crestados e cheios de fendas abertas pelo Sol escaldante do Mar Vermelho. Por grande felicidade, todas, menos uma, sobreviveram à viagem de regresso, mas nenhuma delas poderia fazer-se de novo ao mar sem uma completa reparação. O tal forte de Maçuá, de que tanto se esperava, não podia ser construído por enquanto.

Este projecto passou a ser a ideia fixa de Albuquerque durante os dois últimos anos da sua vida. Pensou nele durante todo o ano de 1514, na Índia, enquanto se entregava ao jogo complicado da política indiana. E quando, em 1515, um conjunto de circunstâncias o obrigou a construir uma fortaleza em Ormuz, em vez de seguir para o Mar Vermelho, apenas adiava para o ano seguinte o caso do Preste João e de Maçuá.

"Nom temos já outra pemdemça na India, senam a do mar Roxo e Adem..." - escrevia ele de Ormuz ao rei em 23 de Setembro -, e "prazerá a nosso Senhor" - diz ele noutra página da mesma carta - se fizermos asemto em Meçua, porto do Preste Joham". A essa data, Albuquerque devia já ter compreendido que ele próprio tinha poucas probabilidades de o fazer; todavia, quando, no dia 8 de Novembro, partiu, gravemente doente, do Golfo Pérsico para a Índia, parece que se agarrava ainda a esta ideia: Disse-me, escreve o capitão de guarnição de Ormuz, que no primeiro de Janeiro "lhe mandasse parte da gente e naaos pera entrar o estreito..." Se conseguisse quaisquer melhoras, é claro que não tencionava gastar tempo na convalescença, mas arrastar-se de qualquer forma até Maçuá e construir a tal fortaleza!

O Marte Português


E, se o tivesse feito, que aconteceria? Poderia executar-se o resto do seu programa? Ter-lhe-ia sido possível destruir Meca e entregar o Egipto ao deserto, alterar a história do Mundo e modificar o aspecto do mapa?

Parece-nos, certamente, coisa fantástica, mas Albuquerque não tinha nada de visionário aéreo. Em todas as ocasiões manifestou uma firme compreensão das coisas concretas e um sentimento apurado da realidade. Tudo quanto se propunha fazer, fazia-o e muitas das coisas que realizou pareciam impossíveis. Em vão especularemos sobre se este seu último plano era realizável, porque o homem que tinha o génio de o poder levar a cabo morreu, no auge da glória, e a visão deslumbrante desvaneceu-se, quando a luz dos seus olhos se apagou».

Elaine Sanceau («Em Demanda do Preste João»).





Os Descobrimentos Henriquinos


Desde o meado do XII século que se propagara na Europa a notícia da existência de um império cristão no Extremo Oriente. O núncio da Igreja da Arménia falara ao Papa (Eugénio II) em um príncipe, chamado João, cujos domínios estavam situados para além da Arménia e da Pérsia, e que reunia ao Império o sacerdócio: era um Papa do Extremo Oriente, e fizera numerosas conquistas, o Preste-Joham (1). Esta lenda, espalhada na Europa, excitava tanto mais a pia curiosidade dos cristãos, quanto essas distantes regiões se pintavam como paraísos carregados de ouro e encantos.

Durante a Idade Média, vogavam também extravagantes lendas acerca do Atlântico (2). As tradições obliteradas pela ignorância davam caracteres fantásticos às antigas viagens dos cartagineses ao longo das costas de África e às ilhas do mar atlântico (3). Esse infinito de águas, onde mergulhavam todas as costas conhecidas, povoava-se de monstros e sombras extravagantes: era o Mar Tenebroso! Os homens do norte, que nas suas barcas tinham descido desde os mares gelados do pólo a piratear nas costas da França, foram caindo para o sul; e já no XV século tinham chegado às Canárias (4), já comerciavam ao longo da costa africana, para cima do cabo Bojador, onde também, por terra, chegavam os berberes de Marrocos (5).











O Oceano Atlântico, dividido em Norte e Sul pela linha do Equador





As quatro viagens de Cristovão Colombo


As tradições dos geógrafos antigos, idealizadas pela imaginação bretã, tinham dado lugar à formação de lendas maravilhosas. O mar tenebroso era um oceano de luz, semeado de ilhas verdes, onde havia cidades com muralhas de ouro resplendente: ao cabo das longas e perigosas viagens estava o paraíso terreal. Para os geógrafos árabes, menos fecundos em fantasias, o mar tenebroso era uma vasta e infinita campina, a acabar num caos de nevoeiros e vapores aquosos; e «ainda que os mareantes, diz Ibn-Khaldun, conheçam os rumos dos ventos, não havendo, para além, país algum habitado, perder-se-ão irremediavelmente porque o limite do oceano não é outro senão o próprio oceano».

Além destas tentações marítimas, havia a ambição do Oriente e do seu comércio, acendida em toda a Europa pelas Cruzadas; e mais particularmente na Espanha, pelo contacto íntimo em que a ocupação árabe a pusera com os monopolizadores desse comércio, durante a Idade Média. Hormuz (6) [Ormuz] era o empório mercantil de todos os mercados do Oceano Índico. Daí as carregações se dirigiam para a Europa e para a Ásia do Norte, seguindo derrotas diversas. As da Ásia iam em cáfilas, caminho da Arménia, por Trebizonda, engolfar-se na Tartária; as da Europa, ou vinham por mar a Suez, e daí em caravanas, pelo Cairo, a Alexandria, ou seguiam por terra o vale do Eufrates a Bagdad, passando em Damasco, no seu caminho de Beirute, sobre o Mediterrâneo.

Tinha, porém, no começo do XV século, a empresa encetada com tamanho vigor e tino pelo infante D. Henrique, o pensamento determinado de chegar por mar - como veio a chegar-se - ao império do Preste-João das Índias? Parece-nos que não. Devassar o mar tenebroso em demanda das ilhas de que havia uma notícia mais ou menos vaga, reconhecer e ir ocupando gradualmente a costa ocidental da África - parecem ter sido empresas ainda não ligadas nesse tempo com a da viagem aos reinos do Preste-João. Esta viagem, contudo, não ocupava menos o espírito do príncipe, que pensava levá-la a cabo por caminho diferente: por terra. A conquista de Ceuta prende-se directa e principalmente a este pensamento. Arquitectos árabes da Espanha tinham ido pelo interior da África até Tombuctu, cujos palácios rivalizavam com os de Córdova ou de Granada. Ceuta era a chave marítima do império de Marrocos; e, porventura, através da África se poderia chegar ao dourado Oriente. Em todo o caso a terra oferecia um campo de exploração mais definido do que esse mar incógnito, infinito, cheio de trevas.

No ambicioso espírito do infante, cabiam as duas empresas: conquistar o império marroquino, ou pelo menos o seu litoral, para garantir o monopólio do comércio do Sudão (7); e ao mesmo tempo conquistar às trevas as ilhas desse mar desconhecido, seguindo também o longo das costas ocidentais para as visitar e explorar. Tenaz e até duro de carácter, D. Henrique sacrifica tudo aos progressos da sua empresa; nem o dobram as lágrimas do irmão infeliz sacrificado em Tânger (8), nem as súplicas do outro irmão, o nobre D. Pedro, talvez por sua culpa morto em Alfarrobeira. Às conquistas da África imola os dois príncipes; às navegações os seus ócios, as rendas da Ordem de Cristo, e as vidas obscuras dos muitos que morreram ao longo das costas, ou na vasta amplidão dos mares terríveis. Dominado por um grande pensamento, é desumano, como quase todos os grandes homens; mas, no limitado número dos nomes célebres, o de D. Henrique está ao lado do primeiro Afonso e de D. João II. Um fundou o reino, outro fundou o império efémero do Oriente; entre ambos, D. Henrique foi o Herói pertinaz e duro, a cuja força Portugal deveu a honra de preceder as nações da Europa na obra do reconhecimento e vassalagem de todo o globo.








Batalha de Aljubarrota (14 de Agosto de 1385). Ver aqui




D. João I de Portugal










Bandeira de D. João I com a sua divisa: «Pour bien».




Casamento de D. João I com D. Filipa de Lencastre.



A cândida nobreza de Nuno Álvares, a sabedoria do grão-doutor João das Regras, a explosão da força nacional, tinham feito de D. João I quase um herói; os seus ilustres filhos fazem dele o mais feliz dos pais. Ditoso homem medíocre a quem tudo fornece, deu-lhe a sorte uma esposa virtuosa e nobre na princesa, cuja lição e cujo exemplo põem a semente das suas grandes acções no coração dos infantes - D. Pedro, acaso o tipo mais digno de toda a história nacional; D. Fernando, cujos méritos desaparecem perante o martírio que o santificou; D. Duarte o rei sábio e infeliz; D. Henrique, finalmente, em cujo cérebro ferviam os destinos futuros de Portugal. É uma plêiade de homens célebres, presidindo a uma nação constituída e robusta. Com tais elementos consegue-se tudo no mundo. Bons guerreiros, à antiga, os infantes não se parecem, contudo, já com as antigas personagens. A corte apresenta uma fisionomia diversa: dir-se-ia uma Academia. D. Duarte ocupa-se em coisas sábias, escreve o seu Leal Conselheiro; D. Pedro, cujas dilatadas viagens chegaram a formar lenda, traz consigo vasta lição, muitos livros, cartas, conhecimentos; a literatura e a geografia ocupam-no por igual, e também escreve: dedica ao irmão primogénito o seu tratado da Virtuosa Benfeitoria. À noite, nos serões, lêem-se, pouco, passo, e bem apontado, como D. Duarte manda na sua obra, as histórias sedutoras de Galaaz, de Merlim, de Tristão. Não é uma corte da Idade Média, é já uma corte da Renascença, cheia de ideias novas e de uma cultura eminente. A educação transforma a política, e as teorias monárquicas da Itália são aplaudidas e adoptadas. Bole-se na legislação, limitam-se os privilégios aristocráticos e burgueses, adianta-se a obra da unidade do corpo nacional. Os príncipes, valentes e sábios, são estadistas, no moderno sentido da palavra; e o rei, que na mocidade obedecera aos impulsos de Nuno Álvares, às lições de João das Regras, obedece agora aos incitamentos dos filhos, que lhe mostram, com os livros e os mapas, a conveniência de ir tomar Ceuta - primeiro acto de uma longa e ambiciosa história que desenrolavam perante os ouvidos sôfregos do antigo Mestre de Avis. A rainha, orgulhosa nos filhos, aprova tanto, que, já moribunda, ainda obriga o marido a partir. D. João I, passivo agora e sempre, obedece; e, do princípio ao fim da sua fecunda existência, parece fadado a ornar-se com os louros por outrem ganhos, a ceifar a seara, que outrem semeou. Tinha, porém, a habilidade própria dos homens de juízo - a de pesar, ver, e julgar com rectidão.

Os planos de D. Henrique mereciam a plena aprovação do rei, que lhe dava ampla liberdade para prosseguir; e até o incitaria, se o infante carecesse de estímulo. Já no próprio ano de Ceuta, D. Henrique fizera uma primeira tentativa, enviando uma frota a sondar e reconhecer a costa da África (9).

Terminada a empresa de Ceuta, pôs decididamente mãos à obra, e estabeleceu-se em Sagres. Era uma língua de rocha cravada nas ondas e acoitada pelas ventanias do noroeste. Estava-se ali como a bordo; e a academia do Infante parecia uma nau, em que vogaram os destinos ainda ignotos da nação. Os antigos tinham chamado sacrum, sagrado, a esse promontório, e o nome de agora também traduzia, no pensamento e na linguagem, a passada denominação. Sagres ia ser no XV século, como fora nos velhos tempos, o pedestal de um templo. Acreditavam os antigos celtas, do Guadiana espalhados até à costa (10), que no templo circular do promontório sacro se reuniam às noites os deuses, em misteriosas conversas com esse mar cheio de enganos e tentações, aberto ao capricho dos homens para os tragar. Agora, os modernos herdeiros dos druidas erguiam em Sagres um novo templo, onde também às noites, não deuses, mas homens se entretinham em falas com os ignotos mares, com as regiões desconhecidas. O espírito era o mesmo, a religião era outra: - era a da Renascença - a ciência, a tentação irresistível que arrastava os homens para a natureza que os fazia extenuarem-se a desflorar a virgindade dos mares, a interrogar a mudez das noites, na sua ânsia de saber, de dominar, de conhecer o mundo inteiro e os seus segredos: «quantas vezes estive metido debaixo das bravas ondas, por saber o fundo das barras e para que parte endereçavam os canais!».

Fortaleza de Sagres



Rosa-dos-Ventos (Fortaleza de Sagres).




O Infante de Sagres (quadro de Malhoa).




Brasão de Armas do Infante D. Henrique




Em Sagres reunira o infante todos os recursos de que então dispunham a cosmografia e a arte de navegar. D. Pedro trouxera-lhe das suas viagens o manuscrito das peregrinações de Marco Polo. Esses livros, os mapas de Valseca, as obras de João de Müller, (de Koenigsberg) (11), de Jorge Purbach, as narrativas e roteiros dos pilotos, as rudes cartas marítimas, faziam vergar as mesas, a que o infante, tendo ao lado o seu cosmógrafo Jaime de Maiorca, então célebre, rodeado de discípulos, passava os dias a discorrer, as noites a interrogar, silenciosamente, os enigmas propostos nos textos e nos desenhos. Como Raimundo Lúlio entre as drogas e retortas do seu laboratório se extenuava a buscar o princípio da vida, os corpos simples ou elementares da matéria para obter o segredo da existência física e orgânica: assim o infante procurava desvendar os segredos das ilhas e dos continentes, dos golfos e enseadas, velados pelo manto azul-negro do Mar Tenebroso.

Essa paixão naturalista da Renascença nos seus primeiros tempos, essa tenaz curiosidade científica, diferia essencialmente do misticismo religioso da Idade Média, eivado de fantasias cabalísticas, e da ingenuidade das mitogenias primitivas. O homem já preferia a ciência da imaginação: rejeitava fábulas, e confiava tudo aos processos e aos meios positivos. «Ora manifesto é, diz, um século, depois, Pedro Nunes, que estes descobrimentos de costas, ilhas e terras firmes não se fizeram indo a acertar; mas partiam os nossos mareantes mui ensinados e providos de instrumentos e regras de astrologia e geografia, que são as coisas de que os cosmógrafos hão-de andar apercebidos. Levavam cartas mui particularmente rumadas, e não já as que os antigos usavam, que não tinham mais figurados que doze ventos, e navegavam sem agulha». A bússola, o astrolábio e o quadrante já guiavam as expedições marítimas enviadas anualmente de Sagres pelo infante, a sondar o Oceano, ou a descer a costa para o Sul. Porto Santo, a Madeira e os Açores foram por esta forma arrancados às trevas do mar. (12). Mas, apesar das sucessivas investidas, não se conseguira ainda dobrar o cabo Bojador, limite extremo até onde a costa era conhecida: havia doze anos que os navios iam e voltavam sem resultado. Era uma barreira natural, junta a um muro de terrores fantásticos.

Gil Eanes parte, afinal, em 1434, e volta com a desejada nova. O mundo não acabava ali, sabia-se já; mas seria possível ir além desse finis terrae, da África? Gil Eanes voltou para responder afirmativamente. Dissiparam-se, portanto, os sustos; e os navios foram seguindo, costa abaixo, por Cabo Verde, a Guiné, onde, cheios de satisfação, os mareantes aprisionam os primeiros negros - os azenegues do Senegal (13).



Estátua de Gil Eanes na sua cidade natal: Lagos.









Era um antegosto das horrorosas façanhas a que as tentações do mar os haviam de conduzir; mas as perdas de gente e dinheiro, já sensíveis, o dilatado das viagens, as consequências fecundas, esfriavam nos ânimos o entusiasmo do princípio. Não acabava, jamais, a costa de África! E o Preste-João e os encantos do Oriente traduziam-se apenas pela malagueta da Guiné (14).

O infante morreu em 1460, e com a sua morte parou o movimento das navegações. A empresa, primeiro esboçada, parecia colossal de mais para as forças da nação: não podiam eles vencer de todo, nem o Mar, nem Marrocos; e o que se tinha conseguido, perante os resultados práticos, desanimava e fazia sentir cansaço.

Antes de nos alongarmos na história dessa empresa, cabe-nos o dever de registar brevemente a da formação das forças navais portuguesas, indispensáveis para o empreendimento das viagens de descoberta e das expedições militares à costa da Berbéria.

Pode dizer-se que, até ao fim do XII século, não há marinha na Espanha ocidental. As lutas da reconquista, então feridas, eram-no por terra exclusivamente; e a imperícia marítima dos cristãos, junta aos relativos progressos dos árabes, concorriam para tornar difícil a conservação das praças litorais conquistadas. Os primeiros dispunham apenas de pequenas lanchas costeiras, enquanto os segundos tinham navios regularmente armados e equipados, com que percorriam toda a costa ocidental, refrescando nos seus portos, abastecendo-os de munições e gente quando estavam cercados, e desembarcando amiúde, com o fim de talar os campos dos cristãos e cativar os tardívagos ou indefesos. Já, porém no XI século o bispo de Compostela tinha mandado vir de Génova pilotos, sob cuja inspecção construiu duas galés que foram às costas de Al-Gharb sarraceno pagar em moeda igual antigas e grossas dívidas. Os genoveses foram os nossos mestres na arte de navegar.

Mas desde o meado do XII século o exame das armadas de Cruzados, com cujo auxílio Lisboa e depois Alcácer foram tomadas, tinha vindo acrescentar os conhecimentos; demonstrando ao mesmo tempo que, sem o império no mar, jamais poderia levar-se a cabo a conquista do sul do reino. À empresa de Silves, no tempo de Sancho I, vão já navios portugueses; e o que escrevemos sobre o carácter mais regular e sistemático da política e das campanhas desse reinado leva-nos a crer que daí deve datar-se a fundação da marinha militar portuguesa. Com efeito, essa marinha existe nos reinados de Sancho II e de Afonso III, como o provam as expedições marítimas que terminaram pela conquista definitiva do Algarve, e as façanhas do lendário Fuas Roupinho (15). Havia então já um corpo de tropas especiais de embarque.















Cerco de Lisboa por Roque Gameiro (1 de Julho a 25 de Outubro de 1147), com a vitória decisiva dos Portugueses e dos Cruzados.












Que eram esses navios, porém? O leitor decerto viu alguma vez, de tarde, ao cair do sol, o recolher dos barcos, voltando do mar, nas praias de Ovar ou da Póvoa de Varzim. Viu a construção e os tipos desses navios primitivos, e as pitorescas fisionomias dos seus tripulantes: eis aí uma esquadra do XIII século (16). Vê-la-á, real e verdadeiramente, se, com a imaginação, substituir por armas os utensílios da pesca. E quando os barcos, encalhados na areia húmida, descarregarem - hoje o peixe, então as presas, os mantimentos e a gente - homens e mulheres fincadas as mãos sobre os joelhos, curvados, com o dorso contra o costado do barco, em linha ao longo dele, impelem-no, manobrando ao som de um canto rítmico, para o fazer rolar sobre os toros até ficar seco, distante dos perigos das ondas. Essa cena repetia-se para pôr enxuto, e para pôr a nado as embarcações; e Sancho II realizou um progresso, ainda hoje desconhecido nas nossas praias de pescadores: mandou construir debadoiras (cabrestantes) para encalhar, tirados por cabos, os navios. No tempo de Afonso III já o poder marítimo português é de tal ordem, que os nossos navios vão em socorro a Castela, e o Papa nos convida a acompanhar as gentes do Norte à Cruzada.

O reinado de D. Dinis marca uma segunda era na história da marinha nacional. Reciprocamente indispensáveis a marinha mercante e a militar, os cuidados do rei administrador dirigem-se principalmente a fomentar a primeira, cuja importância o tratado de comércio, feito em 1308 com a Inglaterra, acusa. Além disto o rei aplica-se a melhorar o Porto de Paredes, na costa ao norte do cabo da Roca, defendendo-o contra as dunas, que, apesar de tudo, o invadem e destroem. Com este mesmo pensamento mandaria semear o pinhal de Leiria. Também no seu tempo, por morte do conde do mar, Nuno Cogominho, em cuja família esse cargo andara, vem tomar o almirantado da armada portuguesa o genovês Pezzagna. Nacionalizada, a família dos Peçanhas tem por largos tempos o condado do mar, ou almirantado, como já, à moda árabe, se dizia então.

Os progressos realizados no XIV século preparam os recursos poderosos, com que, no seguinte, o infante D. Henrique pode levar de frente as duas empresas a que votara a sua existência. D. Fernando, o amavioso e infeliz rei, merece nesta história uma menção condigna. Apesar das quimeras da sua política tornarem em derrotas as suas empresas, a sabedoria e o alcance económico da sua legislação dão-lhe o direito de preeminência na história da formação do poder naval dos portugueses. Já então a alfândega de Lisboa rendia, por ano, de 35 a 40 mil dobras (17): o que demonstra o progresso comercial do reino e comprova a opinião expressa do livro anterior, da deslocação do centro de gravidade nacional do norte para o sul, e da nova fisionomia adquirida depois do antigo caso da separação do condado português do corpo da monarquia leonesa.

O rei que pretendia, com justiça, impedir aos proprietários a detenção improdutiva das terras, obrigando-os a lavrá-las ou a dá-las a quem por eles o fizesse, era o mesmo que, num corpo de leis, protegia e fomentava o comércio marítimo de Lisboa, já então uma cidade cosmopolita. Os genoveses, os lombardos, os aragoneses, os maiorquinos, milaneses, corsos, biscaínhos, gentes de tão variadas partes - de toda a Espanha e das costas circum-mediterrâneas - fixavam-se em Lisboa a comerciar. Pelo Tejo saíam cada ano para cima de doze mil tonéis de vinho, sem contar o dos navios da segunda carregação, em Março. Os navios eram já maiores e tinham coberta. O cronista chama à capital «grande cidade de muitas e desvairadas gentes». Era uma Veneza que se formava, para suceder à antiga; e, como nas cidades republicanas da Itália, também o comércio era privilégio dos mercadores, proibido aos nobres e clérigos, sendo vedado aos estrangeiros negociar fora do porto-franco de Lisboa.




O rei D. Fernando assistia ao pleno desenvolvimento de uma potência comercial e marítima; e o que fez em favor do seu progresso demonstra a lucidez do seu espírito. O rei em pessoa era armador e negociante de certos géneros exclusivos. Criou bolsas de seguros marítimos, mútuos, em Lisboa e no Porto, com o produto de uma taxa especial lançada sobre o comércio, instituindo o cadastro ou estatística naval. Reduziu a metade os direitos de importação dos géneros trazidos por navios nacionais, estabelecendo assim um direito diferencial de bandeira, a cuja sombra se multiplicou o número de navios mercantes portugueses. Deu, aos que desejassem construí-los, a faculdade de cortar madeiras nas matas reais. Isentou de direitos os materiais de construção naval, e os navios construídos fora, por conta de nacionais; e o mesmo concedeu à exportação dos géneros do primeiro carregamento de navios novos. Por sobre esta protecção eficaz e enérgica, emprestava ainda aos armadores capitais para comerciarem, ficando interessado com eles no dízimo dos lucros, que se liquidavam duas vezes ao ano.

Noutro lugar dissemos que o governo de D. Fernando fora um cesarismo, e com efeito o foi de todos os modos: na sábia protecção dada ao fomento material da nação, na violência das medidas de salvação pública, na desordem dos costumes da corte, e no carácter bondoso e ingenuamente devasso do rei. Este César do fim da Idade Média preparava o caminho à nação, cuja vida brilhante de dois séculos, afastada da estrada ordinária da agricultura e da indústria, ia ser a vida de uma Roma, imperial, de uma Cartago, de uma Veneza: metrópole acanhada de um império colossal, subordinada nos seus destinos ao merecimento individual dos governantes autocratas, mais do que à força espontânea de um espírito nacional, ao maquinismo activo de um sistema de instituições e classes, organicamente construído e funcionando normalmente. De todos os fundadores de Portugal marítimo D. Fernando é o maior; e se as queixas formuladas, ao decair do XVI século, contra os que afastaram os portugueses do arado para o leme, do campo para o mar, têm razão absoluta - a sabedoria de D. Fernando foi como o pior dos erros. Camões fulminava, pela boca do velho do Restelo, os que arrastavam Portugal para o mar; como Plutarco condenou Temístocles por ter lançado os atenienses no caminho das empresas marítimas.

Mas esses lamentos do espírito utilitário, se têm um cunho de verdade positiva, têm também um escasso merecimento histórico. Não tivesse a Grécia sido colonizadora e marítima, e a sua voz educadora jamais se teria ouvido no mundo. Outro tanto diremos nós. Não tivéssemos alargado pelo mar um nome sem razão de ser na Europa, e, jungidos à Galiza virente e à Castela farta, teríamos tido menos fome e menos dores, menos misérias decerto, mas nenhuma honra, também, na história. O próprio nome de Portugal não teria existido, senão como lembrança erudita de um certo condado, que, nas mãos de príncipes astutos e atrevidos, conseguira viver alguns séculos separado do corpo da nação espanhola.

Traduzirá isto apenas uma vaga e sentimental banalidade? Não, decerto. Infeliz de quem não viveu; e viver, para os homens e para as nações, difere do absorver, digerir e segregar, porque é mais do que satisfazer as necessidades orgânicas. Além disto, o destino, fatalidade, providência, determinação, ou como se queira dizer - traduzido com sucessivas palavras, antigas, actuais ou futuras, um mistério eterno - elege ou condena - escolham também os sectários entre as duas expressões - os homens e as nações a uma determinada obra. Nós fomos elegidos ou condenados a conquistar para o mundo esse Mar Tenebroso que o enchia de vagas ambições ou de fúnebres terrores.


Era este o momento oportuno de dizermos todo o nosso pensamento acerca da empresa nacional, do seu destino, da sua missão, ou como aprouver melhor chamar-lhe. A viagem das Índias, que vamos contar - descrevendo previamente a derrota, por Ceuta e Tânger, e, no reino, pela consolidação do poder cesáreo dos reis - necessitava ser julgada: agora que, ainda no molhe os tripulantes, sobre a amarra os navios, se não desferrou o pano, nem se deram as salvas da partida.

Essa esquadra, que fundeia no Tejo, era já poderosa ao tempo de D. Fernando. Os cuidados do rei em favor da marinha mercante abraçavam também a marinha de guerra. A armada que foi bloquear Sevilha (1372) era, no dizer do cronista, formosa campanha de ver. Mice Lançarote Peçanha, da linhagem do genovês, ia de almirante; e o cosmopolitismo da nova pátria portuguesa vê-se bem no nome dos capitães: um João Focin castelhano, um Badasal de Spínola, um Brancaleon. Como Roma, Lisboa recebia no seu seio e nacionalizava gentes de toda a parte; e deste aglomerado de caracteres, naturalmente inorgânico, sairá, no momento culminante do XVI século, um espírito superior ao espírito nacional-natural e a noção de uma pátria moral ou ideal, como foi a pátria de Virgílio.

A esquadra de Sevilha contava trinta e duas galés, trinta naus redondas, afora as que vieram per ella da costa do mar. Vinte e três meses teve bloqueado o Guadalquivir, e retirou com a paz. Outra frota, quase tão poderosa como esta, foi ainda ao Mediterrâneo, na seguinte guerra de Castela, para sofrer o desastre de Saltes (1381), consequência da temeridade do fanfarrão Afonso Telo.

Agora, fundeada no Tejo, a armada espera o rei e os príncipes para ir conquistar Ceuta, em África («O Infante D. Henrique», in História de Portugal, Guimarães Editores, 2007, pp. 129-138).


Notas:

(1) V. As Raças Humanas, O. C., pp. 168 a 170.

(2) V. História da Civilização Ibérica, O. C., pp. 1 a 13, e Elementos de Antropologia (3.ª ed.), pp. 126-7 e 215-17.

(3) V. As Raças Humanas, L.º IV, 2.

(4) Na relação que o franciscano P. Bontier deixou acerca da ocupação das Canárias por João de Bethencourt e Gadifer de la Salle, há referência a uma viagem dos ocupantes à costa de Marrocos, por altura do cabo de Jubi. Será isto bastante para se afirmar que os homens do Norte (se é a estes franceses que o A. se quer referir) «já comerciavam ao longo da costa africana»? Se é aos Normandos, porém, que a referência diz respeito, mais agravado fica o categórico da afirmação, pois que o asserto do A. é relativo ao século XV.

(5) Ibid., O. C., pp. 171 e segs.

(6) Seguiremos em geral a ortografia de KIEPERT nos seus Atlas, com referência aos nomes geográficos do Oriente, traduzidos nas nossas crónicas pelo ouvido dos soldados da Índia.

(7) V. As Raças Humanas, I, O. C., p. 166 e O Brasil e as Colónias Portuguesas, O. C., pp. 245 a 253.

(8) Cf. João ÁLVARES, Crónica do Infante Santo.






Brasão de Armas do Infante D. Fernando cuja divisa era: «Le bien me plaît».




(9) Cf. O Manuscrito de Valentim Fernandes.

(10) V. Raças Humanas, O. C., pp. 268 a 284.

(11) Regiomontano

(12) V. A cronologia particular das viagens de descoberta no Brasil e as Colónias Portuguesas, O. C., pp. 6 e 7.

(13) V. As Raças Humanas, I, O. C., pp. 188 e 189.

(14) V. O Brasil e as Colónias Portuguesas, O. C., pp. 8 e 9.

(15) Almirante do Mar no Reinado de D. Afonso Henriques.

(16) V. no Regime de Riquezas, O. C., pp. 89 a 103, a evolução dos veículos marítimos.

(17) A dobra continha 4 libras e dois soldos; 50 dobras compunha o marco de ouro cujo valor moderno [ca. 1880] é de 120$000 rs.; a dobra equivaleria pois a 2$400 rs.; e o rendimento da alfândega a de 84 a 96 contos. Havendo no porto, como diz o cronista, 400 a 500 navios de carregação e em Sacavém e no Montijo, à carga do vinho e do sal, 60 ou 70 em cada lugar, supondo que esses navios se substituíssem quatro vezes, fazendo quatro viagens num ano, e sabendo nós que a sua lotação média regularia por 100 toneladas - vemos que o movimento do porto atingia mais de 200 000 toneladas de géneros diversos. Comparando-o com o rendimento da alfândega, faremos ideia do grau de franquia do porto.


sexta-feira, 29 de março de 2013

Afonso de Albuquerque (ii)

Escrito por Oliveira Martins 








«Quem for senhor de Malaca tem a mãao na garganta de Veneza».

Tomé Pires


«A meu parecer, vos tendes a Himdia aguora em maior-rrisquo pello casso d'Afonso d'Albuquerque que pollo dos rumes...».

António de Sintra ao rei D. Manuel, Dezembro de 1508.


«Quando, em Novembro de 1513, António Raposo passava por Cananor, abordou Albuquerque com certo embaraço e confiou-lhe que Gaspar Pereira lhe pedira para juntar o seu nome a uma lista de queixas já assinada por mais seis pessoas. Entre esses nomes, alguns dos fiéis de Albuquerque, como D. João de Lima e Manuel de Lacerda. António Raposo só pudera obter uma cópia que mostrou ao governador. Imediatamente convocados, os pretensos signatários declararam nunca terem ouvido falar de nada e consideravam Gaspar Pereira um perigo público. Depois, começaram a falar à vontade, e um tal António Madeira disse que tinha visto uma carta escrita por Diogo Pereira, ditada por António Real e enviada ao rei um ano antes. Trazido à presença do governador, Diogo Pereira perdeu a cabeça e solicitou perdão. Foi-lhe concedido, mas na condição de dizer a verdade. Em resposta, entregou ao governador a cópia da carta, de que se fez leitura pública na presença de António Real. Este só jurava sobre os Evangelhos que era tudo falso e atribuía as culpas ao diabo que o tentara.

A análise destas acusações, caluniosas na grande maioria, esclarece o comportamento de Albuquerque e, também, o estado de espírito dos contemporâneos. Ele próprio classificava os detractores em três categorias: invejosos, despeitados e ofendidos. Se os primeiros constituem uma legião na sombra dos vencedores, os outros manifestavam reacções fáceis de entender. Viviam todos numa época em que o entusiasmo criado por novas empresas era travado pelo forte peso das antigas. O prestígio dos altos feitos da cavalaria não se apagara ainda no coração dos fidalgos. Colocavam a honra ao serviço de combates singulares e tornavam a iniciativa de acções militares desconexas que lhes tinham valido severas chamadas à ordem. Albuquerque denunciava o individualismo de tal comportamento e a emulação que os levava a folgar com as quebras e desastres que acontecem aos outros.

As técnicas da guerra moderna, introduzidas na Índia pela gente de ordenança, tinham sido rejeitadas por um grupo de nobres. A chegada de um exército profissional representava pôr em causa a função social da nobreza e originou tantos melindres que foram inúmeras as sabotagens e lanças partidas. Diante de Adem, o governador mandara separar em barcos distintos os soldados de ofício e os homens de armas ligados aos fidalgos».

Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque: Leão dos Mares da Ásia»).


«Eu sam pessoa pera que se meterem doze reynos na mão pera os governar com muita prudência, descriçam e saber... tenho hidade pera saber ho bem e ho mall».

Afonso de Albuquerque





Só e livre, absoluto senhor do império nascente, Albuquerque entregou-se com franqueza e decisão ao seu projecto. A primeira condição dele era a fundação de uma cidade, uma capital portuguesa - coisa que até então não existira. Cochim, cujo rajá desde o princípio se abraçara aos novos invasores, era uma cidade índia, onde possuíamos apenas uma fortaleza, abrigo da feitoria e guarda de um porto amigo. Albuquerque elegeu Goa para capital. Colocada a meia altura da costa ocidental da península, bom porto, a cidade reunia as condições desejáveis. Fazia ele então parte do reino de Vijajapur (Bijapor), fracção que no fim do XV século se separara do de Dekkan, declarando-se o seu Cã independente, sob o título de adil-xá (Adil-Khan, Hidalcão); e o adil-xá do Vijajapur, ao tempo de Albuquerque, tinha por seu nome Iusuf. Por este governava em Goa Sipahdar, a quem os nossos chamaram Sabaio. Em Fevereiro de 510, Albuquerque tomou Goa por surpresa; e pela primeria vez houve no Oriente um Estado português. Até então, depois de uma batalha, a tomada de um lugar significava apenas a substituição da suserania indígena pela nossa; e o estabelecimento de feitorias e a construção de fortalezas, tinham somente em vista assegurar o comércio e a cobrança das páreas ou tributos de vassalagem, segundo o plano do primeiro vice-rei. Albuquerque iniciava um sistema diferente: criava uma cidade propriamente portuguesa; e com o novo governador, o nosso domínio desembarcava dos navios para a terra firme. A um sistema de colónias, como fora em volta do Mediterrâneo o dos fenícios ou o dos gregos, substituía-se um império, como Aníbal o sonhara na Itália, e Alexandre o fundou na Ásia. Albuquerque, porém, não pensava em fazer de Goa uma cidade portuguesa, no sentido de ser exclusivamente habitada por europeus: seria quimérico. Faltava-lhe gente, e para obviar a isto fomentou os cruzamentos de portugueses com mulheres indígenas, criando, tanto em Goa como depois em Malaca (7), uma população de mestiços, que mais tarde se tornou um dos elementos de dissolução do nosso império. Sob o domínio português, os naturais viveriam livremente na sua religião, com as propriedades garantidas, mas sujeitos ao império protector e soberano de Portugal (8). Era um plano correspondente ao que mais tarde os ingleses puseram em prática, sem todavia cruzarem com os indígenas; da mesma forma que os holandeses preferiram os planos marítimo-comerciais de D. Francisco de Almeida.

Goa ocupou ao governador todo o ano de 510; porque o Sabaio, tomado por surpresa em Fevereiro, voltou no Verão; e os soldados de Albuquerque não quiseram resistir-lhe. Apesar do desespero e das maldições, da fúria e das ameaças do governador, abandonaram a cidade e embarcaram. Os planos de Albuquerque pareciam loucuras aos bandidos e piratas da Índia, que além de lhes não compreenderem o alcance, se viam privados de saques, apenas fartos de guerra. Goa perdeu-se em Agosto; mas logo tornou para o domínio português, ganha por assalto em Novembro. Os soldados obedeciam, porque o comando do governador era terríbil, desapiedada a sua crueldade genial, fervorosa a sua fé católica. Alexandre cria-se um deus, Albuquerque viu mais de uma vez os milagres do céu nas horas do combate. Em Goa viu Santiago: um cavaleiro de armas brancas, no manto uma cruz vermelha, pelejando contra os mouros (9) - conforme a tradição histórica portuguesa. Nas cidades da costa da Arábia, viajando para Ormuz, as suas crueldades tinham sido bárbaras: em Goa não o foram menos. Além queria impor pelo medo; aqui destruía como político. Todos os mouros de ambos os sexos, de todas as idades, mais de seis mil, foram mortos (10); e queimados vivos os que se tinham refugiado na mesquita, sendo a terra assim «despejada», porque para sossego dela só devia conter gentios. Era o lugar escolhido para capital do império dos novos gregos pelo moderno Alexandre.



Santiago, o Apóstolo guerreiro



Consolidada a posse da capital, no coração da Índia, Albuquerque voltou-se rápido para as duas empresas que rematariam o seu império: Malaca e Ormuz. Embarcou, logo no princípio de 511, e tocando em Ceilão, a terra encantada das pedras preciosas, delícias do mundo, pátria da canela e das pérolas, achamo-lo, já em Maio, em frente de Malaca, no Extremo Oriente.

Malaca, na ponta da península da Indochina, sobre o estreito a que dá o nome, era para esta região, como Ormuz, a norte-leste, para a outra. Assim como além se permutavam os géneros da Índia com os da Arábia e da Pérsia, e em Adém com os dos Egipto; assim em Malaca se faziam todas as trocas dos produtos ocidentais da China e das Molucas, e de todo o Extremo Oriente. De Malaca iam as naus a Ternate e a Tidor, a Banda e a Ambon, em procura do precioso cravo; e o estreito andava coalhado de juncos de Java, conduzindo à cidade o arroz, as carnes, a caça e os crises tauxiados de fino aço, em troca dos damascos e brocados, que levavam de retorno para as ilhas do arquipélago. Anfíbios, os malaios viviam no mar em permanência, com a casa e a família a bordo; e os seus juncos, com enxárcias de verga, iam buscar a Malaca os panos de Paleakat e de Mahabalipurum (Meliapor), na costa de Coromandel, e as drogarias de Kambai.

Do saque de Malaca, o governador reservou para si apenas seis leões de bronze, destinados ao seu túmulo. Sem se demorar, avassalou todo o arquipélago malaio, levantando fortalezas e deixando guarnições; e, segura a porta oriental da Índia, voltou-se a Goa, de caminho para Ormuz e Adém, a consolidar o império pelo Ocidente. Em Fevereiro de 513, sai com uma armada para Adém, que não consegue tomar; viaja em torno do Mar Vermelho, incendiando e bombardeando as costas; mas não sente forças para levar a cabo o seu plano de conquistar a Arábia, indo a Meca despedaçar a santa Caaba. A campanha de 513 não tem portanto resultado positivo, desde que Adém consegue resistir às investidas do governador. Adiou pois para outra vez esses planos, que eram a cúpula do seu edifício e a chave do império que vinha construindo. Conquistada Adém, as duas empresas que meditava eram relativamente fáceis na sua simplicidade temerária. Levaria quatrocentos homens de cavalo em taforeias ou caravelas e iria desembarcar em Liumbo, partindo num galope até Meca, lugar santo mal guardado por gente prostrada em adorações. Roubaria o tesouro sagrado e o próprio corpo do profeta: com ambos se resgataria o Santo Sepulcro de Jerusalém, cativo. Consumar-se-ia a obra malograda das Cruzadas, tradição piedosa que na Renascença passara das nações do norte para a Itália e para a Espanha, arrastando mais tarde Portugal a Alcácer Quibir. Ao mesmo tempo, e por outro lado, a grande empresa do Mar Vermelho descarregaria um golpe mortal no Egipto, que era a jóia do império dos turcos e o arsenal de onde vinham as armadas à Índia. O seu plano consistia em «cortar uma serra mui pequena que corre ao longo do rio Nilo, na terra do Preste-João, para lançar as correntes dele por outro cabo que não fossem regar as terras do Cairo» (11). Desviando o Nilo secaria o Egipto (12). Já pedira a D. Manuel que lhe mandasse oficiais da Madeira, onde os havia mestres no corte das serras para formar as levadas de rega dos canaviais. Tudo isto continha a empresa de Adém, cujo malogro cortou os voos às ambições grandiosas do herói.


Embora no céu, lá para os lados das terras do Preste abexim, tivesse fulgurado aos olhos do místico e terrível herói uma cruz vermelha, Cristo abandonara-o na empresa. Quando o famoso milagre surgiu, Albuquerque e todos, ingenuamente, crentes na missão divina em que andavam, caíram de rastos adorando a cruz (13). E o capitão, para corresponder ao céu, mandou tanger os coros de trombetas, responder com artilharia aos cumprimentos de Jesus. Lavrou-se um estromento assinado pelas guarnições, que veio para D. Manuel, com carga de pimenta, afervorar a piedade mística da corte cartaginesa (14).

Como, porém, apesar do milagre, nada se fez, Albuquerque em 514 volta-se para Ormuz, cujo domínio não estava seguro. Outro Alexandre em Persépolis, o herói condenou-se em Ormuz: a grandeza das suas façanhas tinha-lhe feito nascer um orgulho, que já não distinguia o bem do mal. Orientalizado com o imperador, cujos exemplos seguia, não lhe bastavam já a crueldade, nem a força: apelava para a perfídia; e intrometendo-se nas miseráveis políticas dos persas, chamou à sua tenda para uma festa o ministro que então governava o príncipe idiota de Ormuz, e assassinou-o covarde e friamente, substituindo-se-lhe. Estava próximo da cova: e a sorte não queria que à história deste herói faltasse o epílogo frequente na história dos heróis: uma abjecção. Tão-pouco a verdade consente que se esconda um fraco de vaidade e fraqueza comum. Alexandre mimoseava os literatos de Atenas para que o exaltassem: Albuquerque mandava anéis de pedras preciosas ao cronista Rui de Pina «para escrever com melhor vontade os memoráveis feitos da Índia».

Da volta de Ormuz a Goa morreu na viagem: a morte salvava-o, como fizera a D. Francisco de Almeida, dos ferros que tinham servido a Duarte Pacheco. A corte de Lisboa já o mandara substituir no governo por Lopo Soares de Albergaria, que, chegando, começou por condenar o seu predecessor, exaltando todos os que lhe eram inimigos. Antes de acabar, Albuquerque pegou na pena e dirigiu uma carta ao rei - «quando esta escrevo a V. A. estou com um soluço que é sinal de morte!». E pedia-lhe que lhe honrasse a memória e protegesse o filho; o que o rei fez, honra lhe seja. Agonizando, via-se incompreendido pela tacanha corte de Lisboa, e aceitava de bom grado a morte: «Mal com os homens por amor de el-rei, mal com el-rei por amor dos homens, bom é acabar». E acabou, à vista de Goa. Era homem de meã estatura, rosto comprido e corado. Era avisado latino e de grandes ditos: falava e escrevia muito bem: mui fácil na conversação, muito grave no mandar, muito manhoso no negociar com os mouros, muito temido e amado de todos.




Nascera filho segundo de uma família de sangue nobre, e educara-se na corte militar de Afonso V, viveiro da geração dos capitães da Índia amestrados nas guerras de África. Fora em 1480 na esquadra mandada a Nápoles em auxílio do rei Fernando contra os turcos, e nove anos depois partira para África a defender a fortaleza da Graciosa, em Larache, contra os mouros. Era estribeiro-mor de D. João II e já um grande fidalgo quando, em 1503, D. Manuel o mandou à Índia pela primeira vez. Foi, voltou com bons créditos, mas sen nada ter feito de singular; provavelmente observou e aprendeu muito, levando já um plano formado quando o rei o mandou como capitão na esquadra de Tristão da Cunha. Dessa ida começa a história que narrámos e que termina agora com a sua morte.

Os soldados, a bordo, amortalharam-no no hábito de Santiago com borzeguins e esporas, espada à cinta, na cabeça uma carapuça de veludo e aos ombros uma beca também de veludo. O enterro subiu em lanchas, e era tamanho em todos o choro e pranto, que parecia fundir-se o rio de Goa. Ao desembarcar, foi levado aos ombros dos soldados, sob o pálio, pelas ruas da cidade que conquistara; e os gentios, vendo-o com os olhos meio abertos, a longa barba caída (15) até à cinta, flutuando, não o criam morto: Deus o chamara para alguma façanha no céu! Voltaria breve. E por muito tempo houve romarias ao sepulcro do herói, vindo os naturais pedir-lhe justiça contra os desmandos e perfídias dos portugueses, oferecendo-lhe boninas e azeite para a sua lâmpada. Do Extremo Oriente, desde o Pegu até à China, ficaram-lhe chamando o Leão do Mar (16).

Ormuz, Goa, Malaca, os três pontos cardeais do império fundado por Albuquerque no breve período de cinco anos (1507-11), valiam o domínio em todo o mar das Índias e a vassalagem de todas as costas, desde Sofala, em África, até o Golfo Pérsico; desde o Indo até ao cabo Kumari (Comorim); daí às bocas do Ganges, e descendo pelo Arakan e pelo Pegu, até Malaka com as ilhas dispersas de Madagáscar e Socotorá, Angediva, os arquipélagos de Lakkha (Laquedivas) e de Malaja (Maldivas), Simhala (Ceilão) (17), e Sumatra e Java, Bornéu e as Molucas até os pontos extremos de Banda e Ambon. Com efeito, depois de Malaca e da viagem remerosa mas estéril de 513 a Adém, todo o Oriente pasmava e tremia de Albuquerque, o terríbil. A Goa vinham de toda a parte embaixadas e tributos; todos os príncipes queriam a amizade do português, e a seus pés arrastavam a coroa os rajás de Ahmednagar, e de Kambai, de Vijajapur e de Narsinga (18), o xá da Pérsia e os sultões de Sião, do Pegu, do Aracan; e até o próprio Hidalcão, o adil-xá do Canará, consentindo a fortaleza de Kalikodu, comprada com tanto sangue, seguia o exemplo do Gujerât, do Konkana, do Karnataka e de Benguela. Desde o Indo até o Ganges, pelo Cabo Kumari, desde Kambai até Golkonda, o litoral da península estava inteiramente submetido ao jugo português.






Entretanto este império não podia dizer-se ainda construído: era um esboço apenas. Como depois de uma vitória brilhante os tímidos se curvam todos perante o vencedor, assim acontecia no Oriente. Lançado na política de conquista, o império português ganhava a primeira batalha; mas não podia decerto ensarilhar as armas, enquanto a costa da Arábia e as margens do Mar Vermelho se conservassem em poder dos inimigos. Os naturais da Índia, avassalados por uma corrupção antiga, aceitavam o domínio de qualquer vencedor; mas era necessário, para o manter, que a vitória fosse decisiva. Ora o inimigo, o mouro, fora batido, mas não fora expulso. Como numa doença, tinham-se debelado muitos sintomas, mas não se destruíra o princípio mórbido. Adém continuava a ser o empório do domínio comercial marítimo dos árabes e egípcios no Oriente; o Mar Vermelho, o Suez, no extremo fundo desse estreito corredor, as bocas sempre abertas, para vazar sobre a Índia navios, artilharia e soldados. O domínio, que os portugueses se propunham substituir, continuava; e do carácter dual ou misto que a ocupação da Índia apresentava, resultaria um estado de guerra permanente com os mouros e com os naturais, que ora os preferiam a eles, ora a nós. Ninguém, nação alguma seria capaz de resistir a um século inteiro de semelhante vida. O destino do império português do Oriente dependia do exclusivo do domínio, desde que era impossível pactuar ou dividir a presa entre os dois caçadores rivais.

O génio de Afonso de Albuquerque adivinhava isto com toda a lucidez; Adém, Meca, o Mar Vermelho eram a sua preocupação: «Três coisas, diz o filho e commentador, há na Índia que são escápulas de todo o comércio das mercadorias daquelas partes, e chaves principais dela. A primeira é Malaca, que está em três graus na entrada e saída do estreito de Singapura; a segunda Adém, que está em vinte e um graus de altura e na entrada e saída do Mar Roxo; a terceira é Ormuz, a qual está em quinze graus e na entrada e saída do estreito do mar da Pérsia. Este Ormuz, a meu ver, é a principal de todas. E se el-rei de Portugal tivera senhoreado Adém pudera chamar-se senhor de todo o Mundo». Dar um golpe mortal no Islamismo era, além de retribuir em Meca a afronta humilhante de Jerusalém, mostrar aos muçulmanos do Oriente que Jesus podia mais do que Mafoma. Mas se o génio excepcional de Albuquerque não bastou para levar a empresa ao fim, como poderiam bastar para isso os pigmeus que lhe sucederam? Valentes muitos ou quase todos, incansáveis no mar e na terra, os governadores da Índia foram extenuando em um século de guerra permanente as limitadas forças da nação, sem pensamento político, sem plano definido, à toa e à mercê de um capricho, ou de uma ideia a que o crime imbecil da corte limitava constantemente os voos. A primeira política, a marítima, fora abandonada com a queda de Francisco de Almeida; a segunda política, a imperial, condenada com a deposição e morte de Albuquerque. Faltava assim a condição essencial de um domínio estável e seguro: uma tradição (in ob. cit., pp. 196-202).






Notas:

(7) V. As Raças Humanas, O. C., I., V., pp. 49 a 50.

(8) «Não consentia o governador A. de A. que os portugueses tratassem (negociassem), dizendo que onde tratassem haviam de querer ser poderosos e valorosos e não ser humildes como mercadores, do que se recreariam males de os matarem e perderem suas fazendas... e também que, se os mouros vissem que lhes tomávamos seus tratos nos teriam mor ódio, e mais, que os homens, andando tratando, andavam fora do serviço de Deus e de El-rei. Com esta pragmática os portugueses eram muito temidos por cavaleiros e não mercadores, e tão temidos e obedecidos que ainda que um só português fosse em uma almadia, se o topassem naus de mouros todas amainavam e lhe iam obedecer, mostrando-lhe seus cartazes que tinham para navegar, que todos eram assinados por A. de A.». (Gaspar CORREIA, Lendas, I, p. 518).

(9) V. Sistema dos Mitos Religiosos, O. C., p. 307.

(10) Diz BARROS, Ásia, Década II, Liv. V, cap. IX: «...assi nesta fugida no rio, como debaixo do ferro dos nossos, dos mouros que morreram mais de seis mil pessoas de idade».

(11) V. História da Civilização Ibérica, O. C., p. 251.

(12) V. As Raças Humanas, O. C., pp. 177 e segs.

(13) V. Sistema dos Mitos Religiosos, O. C., p. 309.

(14) Na extensa carta que, relativamente à sua acção na Índia, envia ao Rei, com data de 4 de Dezembro de 1513, Afonso de Albuquerque penitencia-se de, mediante aquele aviso, não ter prosseguido em o caminho que tomara; «e como homens de pouca fé não ousámos de cometer o caminho, que creio as nossas naus de uma volta na outra o puderam haver: e pecou isto também por ser já homem velho, vadeado da condição e inclinações dos homens» (Alguns Documentos do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, 1892, p. 381).

(15) Até à 3.ª ed., caída. Seguidamente, porém, atada, o que é de aceitar, porque o vice-rei, através do que sabemos pelos retratos existentes, usava de um lacinho no termo das barbas para que estas, certamente, se não desmantelassem na compostura. Mantemos, no entanto, o que o A. deixou escrito até à dita edição, em razão de se dizer logo depois que elas, mesmo assim morto, flutuavam.

(16) Ainda hoje os indianos chamam Afonso de Albuquerque a um certo peixe, do tamanho da corvina, e cujo nome zoológico não pudemos apurar. Diz a lenda que o Leão do Mar não morreu: afundou-se, e revive nesses animais marinhos. A maxila inferior do peixe, descarnada, tem o aspecto aproximado das figuras portuguesas do século XVI; o barrete, as barbas pontiagudas e longas, etc. Os indianos pintam esses ossos, dando-lhes fisionomia humana e guardam os Afonsos de Albuquerque como fetiches.

(17) V. Instituições Primitivas, p. 3.

(18) V. Instituições Primitivas, O. C., pp. 131 e segs.