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domingo, 20 de novembro de 2011

O Banquete (ii)

Escrito por Soren Kierkegaard







«…a terra molhada, fertilíssima, o barro de Adão, a substância elementar de que todo este mundo, grande como é, nós próprios e inclusive a nossa poderosa pedra se compõem, brotam então à luz do dia…».

Heinrich Kunrath


«…esta matéria-prima encontra-se numa montanha, montanha que contém em si uma multitude de coisas não-criadas. Nesta montanha habitam todas as classes do conhecimento com que é possível deparar neste mundo. Não há conhecimento, entendimento, sonho, pensamento, saber, opinião, reflexo, inteligência, filosofia, geometria, modo de governo, poder, valentia, gentileza, satisfação, paciência, educação, formosura, inventiva, boa-fé, dom de comando, precisão, vigilância, domínio, império, dignidade, conselho ou negócio que nela não se achem contidos. Nem tão-pouco há ódio, malquerença, engano, infidelidade, delito, tirania, opressão, corrupção, ignorância, estupidez, baixeza, despotismo ou excesso, nem canto, música, flauta, lira, boda, diversão, arma, guerra, sangue ou morte que nela igualmente não se contenham…».


Abu-l-Qâsim al-Irâqî


«…Porém, ai daquele que, como Jasão, triunfe graças à ajuda de Medeia e que, deixando-se seduzir pela sua perigosa conquista, acabe por se entregar à Natureza, essa grande feiticeira, em vez de permanecer fiel à sua noiva, a sabedoria!... Ao invés, ditoso aquele que, prometido que está à sabedoria, consegue seduzir sem perigo a terrível feiticeira Natureza, isto a fim de descobrir os segredos que ela, em tal caso, não poderá continuar a ocultar-lhe, e regressar depois a casa dono do velo de ouro e fiel à sua pura prometida…».


«Purisima Revelatio»


«…em certas ocasiões, Aristóteles parece referir-se à matéria como o pura e simplesmente indeterminado. Mas o próprio conceito de indeterminação carece de sentido a não ser que se refira a algo determinado ou a uma possibilidade de determinação. Embora se defina a matéria como possibilidade, dever-se-á admitir que é uma possibilidade para algo. Daí a distinção aristotélica entre a matéria – que é um não ser por acidente – e a privação, que é um não ser em si mesmo».


José Ferrater Mora.


«O mundo é feito da mesma matéria de que se fazem os sonhos».


William Shakespeare






«V.I.T.R.I.O.L.: Visita interiore terrae; rectificando invenies occultum lapidem ("Visita ao interior da terra; rectificando virás a encontrar a pedra oculta"».

Basílio Valentino


«Só aos teólogos - e Kierkegaard foi, a seu modo, um teólogo -, é lícito o celibato».


Álvaro Ribeiro




Deixemos o mito. A ideia do homem responde à sua realidade. Podemos imaginar um só homem, e por essa imagem, representarmo-nos a humanidade. A ideia de mulher é, pelo contrário, uma noção geral que na realidade não coincide com nenhuma espécie, com nenhum indivíduo. A mulher nem sequer é um ente da mesma condição que o homem; será talvez uma parte deste, mas é mais perfeita do que ele. Admitamos que os deuses hajam extraído uma parte do homem, enquanto ele dormia um sono profundo; ou admitamos ainda que o dividiram, e que a mulher seja a sua metade; num caso como noutro, foi sempre o homem quem ficou dividido. A mulher não está, portanto, em relação de igualdade com o homem perfeito; a relação de igualdade só aparece depois da divisão. A mulher é um engano, mas só para o homem tal como se encontra nesta segunda fase; a mulher é um engano só para o homem que se deixa enganar. A mulher é o finito; mas no primeiro momento da sua existência, é o finito elevado à potência de um infinito enganador, - a infinita ilusão humana e divina. Nesta ilusão não há mentira; mas se o homem der um passo em falso, fica imediatamente enleado. Ela é o finito, portanto o multiplicável, portanto um ente colectivo: não há mulher, há mulheres. Mas isto é o que só o erótico parece capaz de compreender; por isso é ele capaz de amar muitas mulheres sem se deixar iludir; por isso ele não vai além da volúpia com que os deuses astuciosos o queriam enganar. A ideia de mulher não se encerra, pois, numa fórmula qualquer; é um infinito de coisas finitas. Quem quiser pensar essa ideia, fazê-la passar por todas as categorias lógicas, ver-se-á na situação de quem mergulha os seus olhares profundos num oceano de fantasmagorias em perpétua formação, ou na situação de quem se perde a contemplar as ondas sobre a espuma das quais aparecem as sereias para se rirem constantemente do ingénuo. A ideia da mulher, para o pensador, não é mais do que uma oficina com a categoria do possível, e para o erótico, a categoria é uma fonte inesgotável de fantasia.


«Vou agora dizer-vos como é que os deuses fizeram a mulher: um ser fluído, subtil, etéreo como as exalações de uma noite de Verão, mas que se reveste de formas tão consistentes e palpáveis como a de um fruto amadurecido; leve como a andorinha, consegue transportar o peso do imenso desejo do mundo; na sua levitação vence a gravidade, porque todo o segredo das forças que a animam se encontra no centro invisível da relação negativa, que ela tem consigo própria; altiva na sua estatura de desenho firme, consegue dar nas vistas pela natural ondulação da beleza; perfeita, pela frescura, parece todavia que acabou de sair da génese do mundo; de uma pureza celestial como a neve recentemente caída, e ao mesmo tempo calma e calmante, na coloração suave da epiderme; alegre como a palavra graciosa que faz esquecer os cuidados, consolativa como a plena realização do desejo que ela tão bem apazigua como excita. O homem, ao vê-la pela primeira vez, deve ter sido tomado por inexcedível espanto: - espanto de ver a sua própria imagem, ou uma imagem semelhante, ou uma imagem que lhe era familiar; espanto por ver a sua própria imagem reflectida no espelho da perfeição; espanto de ver o que nunca havia esperado de ver, aquilo de que talvez tivesse tido já um vago pressentimento; espanto de ver um elemento indispensável na sua vida, mas que lhe era, porém, dado como um enigma para a sua vida. É precisamente esta contradição no espanto que vai despertar no homem o impulso erótico. O espanto incita o homem a aproximar-se cada vez mais, a querer ver cada vez melhor, a olhar, a admirar, a contemplar; não lhe é dado, porém, familiarizar-se completamente com esta visão, não lhe é dado deixar de desejá-la, nunca poderá conseguir aproximar-se dela quanto quer.

«Quando os deuses conseguiram imaginar a essência desta forma, recearam não poder dar-lhe a existência. Depois de o conseguirem, por fim, recearam muito mais a própria mulher. Ela estava de tal maneira formosa, que não se atreveram a elogiá-la, com receio de que a inconfidência pusesse em perigo o plano da astúcia. Resolveram então coroar a obra. Concluíram a formosura, mas deixaram a mulher na ignorância da sua inocência, para que ela não soubesse a que fim a destinavam; para maior precaução, envolveram a figura atraente da mulher no mistério impenetrável do pudor. Ficava assim apta para o combate, ficava assim assegurada a vitória. A mulher era por natureza atraente; mais atraente se tornou com ser esquiva, evasiva, fugidia, porque todos os obstáculos servem para excitar o frenesi do homem. Os deuses rejubilavam, estavam radiantes de alegria. Não há no mundo isca tão atraente como a mulher, nenhuma isca tem maior poder do que a inocência, nenhuma tentação é mais fascinante do que o pudor, nenhum engodo iguala o da mulher. Virgem, a mulher tudo ignora; no entanto, já no seu pudor oculta um pressentimento da sua natureza; ela adivinha que está separada do homem, separada pelo pudor, que é uma barreira mais poderosa do que a espada que foi posta entre Aladino e Gulnar. O erótico, porém, procede como Pyrane nas Metarmofoses de Ovídio: admira e contempla o mistério do pudor e pouco a pouco vai vendo confusamente que para além da vedação, se configura na distância toda a volúpia do prazer.








«Tal é a tentação que a mulher representa. Os homens, não sabendo o que de melhor poderiam sacrificar aos deuses, oferendaram-lhes o mais delicioso de todos os manjares; assim a mulher é fruto proibido para que se olha com avidez; os deuses ainda não descobriram termo de comparação com a delícia da mulher. Vemo-la perto de nós, muito próxima, na nossa presença; e no entanto, como está distante, infinitamente distante, separada de nós pelo pudor. É como se estivesse dentro de um esconderijo, que nós ignoramos, até que ela nos diga por onde é a entrada. Como é que tal acontece? Nem ela sabe como se denuncia; a vida encarrega-se de quebrar o segredo. Tal como a criança que joga às escondidas e, sem dizer palavra, espreita com a cabeça fora do esconderijo, a imprudência da mulher é inexplicável, porque inconsciente; a mulher é sempre enigmática, tanto quando baixa pudicamente os olhos como quando dardeja um olhar especial que não pode ser explicado por pensamentos e, muito menos, por palavras. E, no entanto, se há «olhares que são como punhaladas», como poderemos explicá-los, se a linguagem deles nos é incompreensível? A mulher apresenta-se-nos quase sempre tranquila como a paz das horas da tarde, quando já nenhuma folha treme, tranquila como a consciência, ingénua, ignorante e inocente; respira tranquilamente sem que separe no ritmo da inspiração e da expiração; o sangue circula com toda a regularidade, sem que pelas pulsações se conheça o alvoroço do coração; e no entanto o homem erótico, se souber auscultar como lhe convém, há-de perceber os ruídos ditirâmbicos do desejo, como acompanhamento inconsciente do pensamento da mulher. Despreocupada como o vento que passa, serena como a profundidade do mar, não deixa a mulher de ser removida por desejo languescente, de um desejo inexplicado.

«Meus amigos: tenho a alma deliquescente, de maneira que não articulo a expressão. Sei, porém, que também a minha vida corresponde a uma ideia, se bem que vós a não compreendeis. Sim, também eu revelei o segredo da vida; também eu estou a servir, algo que é divino, e certamente, o meu culto não é vão. Já que a mulher é um engano dos deuses, pode com verdade dizer-se que a existência dela consiste em querer ser seduzida; e como ela não é uma ideia ou uma essência, há só uma conclusão a tirar, que é a seguinte: o homem erótico quer amar o maior número possível.

«Só o erótico quer amar o maior número possível, gozar o engano sem ser enganado. Só a mulher conhece verdadeiramente a felicidade que consiste em se deixar seduzir. O que digo e sei, aprendi-o com a mulher, se bem que não tenha agora tempo para maiores explicações; digo e sei porque me mantenho ao serviço da ideia por um rompimento tão decisivo como a morte; porque noivo e renúncia estão na mesma relação que masculino e feminino. Só a mulher é que o sabe, e sabe-o na sua relação com o sedutor. Nenhum homem casado é sequer capaz de conceber tudo isto. A mulher nunca chega a confessar esta verdade ao marido. Casada aceita resignada o novo destino, adivinha que tal é a ordem natural das coisas, admite que não pode ser seduzida mais do que uma vez. No íntimo, apesar de quanto se diga, nunca a mulher volta o seu ódio contra o sedutor. É preciso ver que ele tenha efectivamente realizado acto de sedução, o que implica exprimir a respectiva ideia. A falsa promessa de casamento, e outras mentiras tais, constituem esperteza e expedientes indignos da vida humana, e nada têm que ver com o problema da sedução. Sendo assim, não há grande infelicidade para a mulher no facto de ser seduzida; pelo contrário, a felicidade dela está em ter essa sorte. Uma donzela, seduzida por arte superior, pode vir a ser uma esposa modelar. Se eu não tivesse aptidões necessárias para ser um sedutor, se bem que reconheça as minhas deficiências quando me considero como tal, e se quisesse casar-me, escolheria sem dúvida uma rapariga já seduzida, para não ter o trabalho de começar a seduzir a minha mulher. É que o casamento também exprime uma ideia, e essa ideia tem um significado completamente diferente em relação ao absoluto que a minha ideia exprime. O casamento nunca deveria ser considerado como um ponto de partida, nunca deveria ser confundido com o princípio de uma história de sedução. Enfim, de uma coisa estou certo: é de que para cada mulher há um sedutor possível, mas feliz será aquela que o encontrar.






«O casamento significa, pelo contrário, a vitória dos deuses sobre os homens. A mulher que foi uma vez seduzida vai continuar a sua vida ao lado de um marido; por vezes ela olha para trás, com o coração pleno de desejo; mas resigna-se com a sua sorte, até chegar o termo dos seus dias. Morre, sem que a sua morte se compare com a do homem; desvanece-se e dissolve-se no elemento inefável de que os deuses a formaram; desaparece como um sonho, como imagem efémera, como imagem de tempos passados. Que mais é a mulher do que um sonho, sonho que não deixa de ser a mais alta realidade? É assim que o homem erótico compreende a mulher, é assim que ele a conduz, é assim que ele se deixa conduzir por ela ao momento da sedução, momento que já está fora do tempo, que pertence já à pátria da ilusão, que é a pátria da mulher. Junto ao marido, a mulher vive no tempo, pertence ao tempo, e o marido também.

«Natureza maravilhosa!... Se não te admirasse de há muito, a mulher ensinar-me-ia a admirar-te, porque a mulher é venustidade do mundo! Tu, Natureza, fizeste da mulher um ser esplêndido, mas a tua maior glória está em nunca teres dado ao mundo duas mulheres iguais! No homem, o essencial é essencial, e, portanto, sempre o mesmo; na mulher o essencial é o acidental e, por conseguinte, a inesgotável diversidade. O reinado da mulher dura pouco, mas pouco dura também a dor que cai no esquecimento. Creio que nunca cheguei a observar a dor quando outra vez o mesmo voltava a ser-me oferecido. Há também a fealdade que pode surgir mais tarde; também a vi, também sei que ela existe; mas não é pelo aspecto da fealdade que a mulher é vista pelo sedutor» (in ob. cit., pp. 136-143).


sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O Banquete (i)

Escrito por Soren Kierkegaard








Apresentação de Álvaro Ribeiro

«(...) Soren Kierkeggard é um escritor que faz pensar. Fazer pensar, é, aliás, o intento primacial do escritor e o sinal verídico do seu êxito. Se por vezes alguns leitores, e algumas leitoras, dizem procurar livros amenos que libertem de preocupações intelectuais, manifestando assim preferência pelas obras erroneamente designadas de artifício ou de ficção, tais leitoras e tais leitores desse modo confessam que o seu pensamento tende mais para a passividade do sonho, do devaneio, da fantasia do que para a actividade intelectiva, mas esquecem que imaginar também é pensar. A prova de que o leitor de boa ou má literatura requer obras que o façam pensar, imaginando ou concebendo, está exactamente na facilidade com que se aborrece não só dos livros já lidos mas também de encontrar semelhanças e repetições nas obras de fabulação.

(…) Ocorre imediatamente a quem pense a já muitas vezes repetida comparação entre a conversa com os livros e a conversa com as pessoas amigas e amadas, comparação que leva à adunação: – no íntimo só queremos conversar com quem, ou com o que, essencialmente nos fale de amor. Ora é a pensar no amor que nos convida esta obra do filósofo dinamarquês.

(…) A série de vivências, experiências e vicissitudes por que passa o homem que ama, ou que não ama, altera, contradiz e desmente a doutrina adoptada na adolescência ou na mocidade. Esta instabilidade mental será tanto maior quanto mais o homem viver em curiosidade pela literatura e pelos seus sucedâneos, mais ou menos espectaculares. Cada um de nós está assim a ser permanentemente convidado a repensar o problema do amor, que não é um problema dos livros, próprio só de interessados ou especialistas em restritos domínios da cultura, porque é um problema humano, no significado universal da palavra, porque é, enfim, um problema filosófico.

Há até pensadores para os quais o problema do amor, no estrito sentido das reacções do homem com a mulher, será aquele pelo qual se determina a autenticidade dos sistemas filosóficos e o valor das obras de filosofia. Quem pertencer a esta escola, corrente, ou tendência terá de se dedicar a estudos dificílimos para conseguir chegar ao âmago dos sistemas de filosofia. Raros são os escritores que assim pensam, muitos não atribuem alta dignidade a este problema de antropologia, e quase todos o abstraem das suas obras especulativas.

Eliminar o problema do amor, não o mencionar em livros que parecem de estrutura didáctica e de finalidade educativa, parece-nos omissão contraproducente no plano da cultura superior e na fase actual da civilização. A falta de meditação corajosa sobre um problema a que ninguém se pode recusar terá por consequência a admissão de noções erróneas que se difundem por simplismo ilusório ou por auto-sofismação. Os preconceitos, ou falsos conceitos, e os prejuízos, ou falsos juízos, que estruturam a opinião das pessoas consideradas bem pensantes, se fossem submetidos a um momento de elucidação, mereceriam a imediata repulsa do pensador envergonhado. É indispensável um esforço intelectual da categoria do heroísmo para manter sempre presente a mais elevada doutrina do amor.

Temos de tolerar – na rotina da vida quotidiana, em que maior é o número das horas de desatenção à mais alta verdade – a doutrina fácil, medíocre e baixa que, por correr entre o vulgo, não suscita controvérsia nem discussão. A doutrina entre nós vigente é a doutrina naturalista, segundo a qual as relações do homem com a mulher, que englobamos no termo de amor, se explicam pelo instinto de reprodução nas espécies biológicas. Doutrina naturalista, dizemos, aceitável para os que não lobrigam a distinção entre a Natureza decaída e a Natureza redimida. Apresenta-se a ideia de instinto com palavras de condescendência e indulgência, apresenta-se a ideia de reprodução como um bem para a família e para outras colectividades mais amplas, completando-se a biologia com a demografia. A extrair desta doutrina, a que falta a ideia de génese, todas as consequências lícitas, chegaríamos a admitir o que se encontra descrito em certas utopias imaginadas e raciocinadas, mas que repugna à consciência e ao inconsciente da maioria das pessoas cultas. Escusamos de transformar a alusão compreensível em descrições de realista crueza.

Alarmam-se os moralistas que, por engenho, inventam o manto propício para cobrir os aspectos desgostantes das relações animais, e, sem que analisem os motivos profundos dos ritos etnográficos, parecem querer fundamentar e legitimar a moral em fixos e infixos preconceitos sociais. Assim se estabelece na consciência do moralista a duplicidade – aliás tão frequente –, de consentir que os instintos se satisfaçam a ocultas e de respeitar as conveniências morais. Nada impede, porém, o homem de confessar a amigos e a conhecidos o que deveria ficar para sempre em segredo, e na inconfidência desmentir a professada moral.


José Ortega y Gasset



Fazendo passar o problema do amor por estas duas instâncias, a Ciência e a Moral, dão-se por contentes muitas pessoas que deveriam pensar em termos de maior elevação. Infelizmente, porém, nos nossos ambientes de mediana cultura é mais conhecida a Metafísica do Amor de Schopenhauer do que A Verdade do Amor de Soloviev, mais estimado o De l’Amour de Stendhal do que os Estúdios sobre el Amor de Ortega y Gasset, apenas porque domina ainda entre nós o preconceito calvinista de que o pessimismo moral coincide com a máxima lucidez intelectual.

Há certamente, algumas almas superiores às quais repugna esta doutrina medíocre e que pressentem, se é que não sentem, a luz difusa de remota verdade. É-lhes difícil conceber e exprimir a doutrina por que anseiam, doutrina a opor à banalidade. No entanto, fácil lhes seria ver que a doutrina vulgar, de deficiente ciência e de deficiente moral, tem sido sempre desmentida pela arte, pela filosofia e pela religião, nas quais o amor humano, além de ser apresentado em radiação de beleza, assume uma significação real e transcendente.

(…) É evidente que, na obra de Kierkegaard, se aprofundam os conceitos de sedução e monogamia, entre os quais parece situada a ética das relações do homem para com a mulher. A sedução é segredo, a monogamia é instituição ética. A sedução não é actividade, nem é exclusivamente masculina. A mulher sabe que permanecendo imóvel, silenciosa e vestida pode seduzir tanto ou mais do que desnudando-se, tagarelando ou dançando. Sedução é atracção, e nesta palavra se diz um conceito que a ciência não esclarece. O problema da sedução obsediava Kierkegaard, e dentro do problema da sedução o donjuanismo. Todos conhecem a lenda de D. Juan que aliás tem dado motivo a várias obras literárias e que atingiu a mais subtil expressão artística na ópera musical de Mozart. Poucas pessoas, porém, encontraram por aprofundamento a causa ou a motivação fundamental do movimento que impele D. Juan Tenório pela série infinita das seduções. Ora este problema não pode deixar de ser enunciado e resolvido por quem se considere uma pessoa culta. Claro está que o momento moral da sedução é o do abandono, ou desamparo, da mulher pelo homem; até esse momento não há que formular juízos morais, tudo é lícito, porque decorre sem drama no plano estético, no plano da promessa ainda não renegada. A vileza moral do homem, quando existe, revela-se no momento da inconfidência e da ingratidão.

(…) Já a designação de matrimónio nos rememora a doutrina (tão dignamente preservada pela Igreja Católica, conforme foi expresso pela Comissão Bíblica em 30 de Junho de 1909), da formatio primae mulieris ex primo homine, doutrina que contém a chave do segredo da atracção e da sedução, o qual não pode ser explicado pelo naturalismo. Matrimónio é preferível a casamento. Aliás, na língua portuguesa, casamento significa muito mais a mudança de residência, a junção de pessoas e bens, porque "quem casa quer casa". O casamento exprime maliciosamente, para muita gente, mais uma situação de facto do que uma situação de direito. Se o casamento fosse apenas um rito, como vulgarmente julga quem inclina a religião para o plano da moral, justificar-se-ia plenamente a degenerescência do registo cultural em profano registo civil. Mas se o matrimónio é, mais do que um rito, um sacramento, temos de admitir que ele é de graça que opera no mundo sobrenatural. A vida conjugal pode, pois, aparecer como condição indispensável para que o homem e a mulher cooperem na redenção, segundo o que foi prescrito por leis divinas. Todo o mistério do amor está acima das teorias biológicas e sociológicas com que os educadores mal informados nutrem o lúcido pessimismo dos adolescentes.


Tem o matrimónio fins sobrenaturais, mas se os não tivesse, conforme pensam os descrentes, estaria ainda assim ordenado para auxiliar a evolução da humanidade, isto é, para ir transformando os homens inferiores em homens superiores. Se este fim, que é o fim da família, nem sempre é atingido realmente, outro problema, o da frustração do casamento, tem de ser resolvido à parte. Tal era o que preocupava as gerações retratadas numa literatura que vai a pouco a pouco perdendo a sua melhor significação.

Referimo-nos à literatura romântica, não só porque ela se demorava a descrever em verso e em prosa os impedimentos à união dos amantes, mas ainda porque atribuía ao drama antropológico uma significação que encontrava equivalência na cosmologia e na teologia. O romantismo não é já entendido, e o desentendimento resulta de ter sido esquecida a razão da sociedade tradicional. Esta sabia perfeitamente que a vida conjugal é difícil, porque exige a união nos três planos do composto humano: no espírito, na alma e no corpo. A comunidade de afectos e de sentimentos para que o conjunto não se dissolva por influências previsíveis e imprevisíveis. A fidelidade conjugal, contrariada por mil oportunidades e por mil circunstâncias, só pode ser garantida por uma fé religiosa. Esta verdade, expressa em outros termos, demonstra que o divórcio é o fim natural do casamento.

A decadência da literatura romântica corresponde ao desinteresse pelo problema do amor, o que é evidente na literatura actual em que o problema da morte lenta ou violenta, do assassínio individual ou colectivo, aparece como principal ingrediente da fabulação. O que se observa no livro é ainda mais evidente no espectáculo teatral e no cinematográfico. Assim chegamos, sem obrigação de passar por difíceis nomenclaturas técnicas, aos assuntos que constituem a temática específica da filosofia existencial, filosofia de crise para os homens e os povos que deixaram de ver no amor infinito o primeiro atributo de Deus.

Eis as razões que nos levaram a considerar O Banquete, e, também, os outros livros que compõem a série intitulada Estádios na via da vida, como a melhor introdução ao estudo da obra de Soren Kierkegaard e da reacção que o existencialismo exerceu, exerce e exercerá no desenvolvimento da filosofia portuguesa» (in apresentação da tradução portuguesa de O Banquete, de Soren Kierkegaard, Guimarães Editores, 1953).

Álvaro Ribeiro



Discurso de Johannes o Sedutor






«(...) Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar. Análogo acontece quando se fala da mulher. A mulher não é mera ideia que surgisse do cérebro do homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão pro et contra. Não; o que se sabe a respeito da mulher foi a mulher que o ensinou; por isso quem mais sabe da mulher é quem teve mais amantes que o instruíssem. À primeira vez é-se um aprendiz; à segunda, já se está mais seguro da sua pessoa, como quem, nas discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para as voltar contra o seguinte. Apesar destas concessões, nada fica perdido. Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a doutrina se resume numa proposição matemática, sempre idêntica, através das variações literárias dos métodos de demonstração. É que tais métodos são bons para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a mulher. A verdade é que o sexo fraco, longe de ser inferior, é pelo contrário, o mais perfeito. Darei todavia ao meu discurso a forma de um mito, e, defendendo o partido da mulher que ofendeste de tão injusto modo, dar-me-ei por feliz se as minhas palavras representarem o pensamento das vossas almas quando chegardes a ver a aparição da volúpia, que fugirá de vós, tal como os frutos se afastam de Tântalo, porque ofendeste a mulher. É que não há outro modo de ofender a mulher, senão o vosso, se bem que ela esteja acima de todas as injúrias, se bem que o castigo vingue quem teve audácia tão impiedosa. Não quero melindrar ninguém. Mas as vossas ideias são meras invenções, calúnias próprias de homens casados, não as minhas, porque eu honro a mulher muito mais do que um marido seria capaz de a venerar.

«No princípio havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses; os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o mesmo que por vezes acontece aos poetas que gastaram todas as forças na criação de uma obra: tiveram inveja do homem. O pior é que tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse disposto a aceitar de bom grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para legítima defesa. Os deuses pensavam que o seu poderio estava em perigo, e que não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue a sua obra. O homem já não podia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam resolvido facilmente o problema; e era isso precisamente o que lhes causava desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais forte do que ele, capaz de o subjugar. Que poder espantoso e que poder contraditório não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderem os limites do engenho. Pensaram, meditaram, encontraram. A nova potência foi a mulher, maravilha da criação, que aos próprios olhos dos deuses era superior ao homem; e os deuses, ingénuos e contentes, mutuamente se felicitaram pela nova invenção. Que mais poderei eu dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida por fazer o que parecia impossível aos deuses; além disso, a verdade é que desempenhou admiravelmente o seu papel; que maravilha não deve ser a mulher para conseguir os seus fins! Tal foi a astúcia dos deuses. A encantadora foi formada e dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem salvaguardar um império, do que este processo para seduzir o homem? Tal é a realidade; a mulher é a sedução mais poderosa do céu e da terra. Comparado com ela, o homem é um ente muito imperfeito.


«A astúcia dos deuses veio a dar resultado. Nem sempre, porém, com êxito igual. Em todos os tempos surgiram homens que estiveram atentos à fraude. Uns ficaram isolados; outros observavam a graciosidade da mulher, e, mais do que os primeiros, viram de perto a armadilha. A estes chamo eu eróticos, e conto-me no número deles; os homens chamam-lhes sedutores, e as mulheres não lhes dão classificação especial, porque, para elas, representam o inefável. Os eróticos são os homens felizes. Vivem com maior magnificência do que os deuses, porque se alimentam de um manjar muito mais delicioso do que a ambrósia, e bebem um licor mais inebriante do que o néctar; nutrem-se do que é divino, porque vão comendo o astucioso pensamento dos deuses que os queriam seduzir; gozam o delicioso sabor da isca, e entre prazeres inigualáveis vão levando uma vida de felicidade, sem que passem além da isca, sem que nunca mordam o anzol. Os outros homens correm para o engodo, e devoram tudo, à maneira do aldeão que come salada de pepinos, e ficam presos pela boca. Só o erótico é dotado de delicadeza para fruir o gosto da isca e atribuir-lhe um valor infinito. A mulher distingue-o e estima-o; entre ambos se forma um entendimento secreto. Mas o erótico sabe que lhe cumpre guardar o segredo, se não quiser sofrer, mais cedo ou mais tarde, a vingança terrível dos deuses.

«Que nada se pode imaginar de mais maravilhoso, de mais encantador, de mais sedutor do que a mulher, os deuses o afirmaram e da afirmação nos deram garantia. O próprio embaraço que os obrigou a dobrar de engenho é mais uma prova de que eles jogaram tudo quanto removeram o céu e a terra para formar a mulher (O Banquete, Guimarães Editores, pp. 133-136).

Continua