sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O Banquete (i)

Escrito por Soren Kierkegaard








Apresentação de Álvaro Ribeiro

«(...) Soren Kierkeggard é um escritor que faz pensar. Fazer pensar, é, aliás, o intento primacial do escritor e o sinal verídico do seu êxito. Se por vezes alguns leitores, e algumas leitoras, dizem procurar livros amenos que libertem de preocupações intelectuais, manifestando assim preferência pelas obras erroneamente designadas de artifício ou de ficção, tais leitoras e tais leitores desse modo confessam que o seu pensamento tende mais para a passividade do sonho, do devaneio, da fantasia do que para a actividade intelectiva, mas esquecem que imaginar também é pensar. A prova de que o leitor de boa ou má literatura requer obras que o façam pensar, imaginando ou concebendo, está exactamente na facilidade com que se aborrece não só dos livros já lidos mas também de encontrar semelhanças e repetições nas obras de fabulação.

(…) Ocorre imediatamente a quem pense a já muitas vezes repetida comparação entre a conversa com os livros e a conversa com as pessoas amigas e amadas, comparação que leva à adunação: – no íntimo só queremos conversar com quem, ou com o que, essencialmente nos fale de amor. Ora é a pensar no amor que nos convida esta obra do filósofo dinamarquês.

(…) A série de vivências, experiências e vicissitudes por que passa o homem que ama, ou que não ama, altera, contradiz e desmente a doutrina adoptada na adolescência ou na mocidade. Esta instabilidade mental será tanto maior quanto mais o homem viver em curiosidade pela literatura e pelos seus sucedâneos, mais ou menos espectaculares. Cada um de nós está assim a ser permanentemente convidado a repensar o problema do amor, que não é um problema dos livros, próprio só de interessados ou especialistas em restritos domínios da cultura, porque é um problema humano, no significado universal da palavra, porque é, enfim, um problema filosófico.

Há até pensadores para os quais o problema do amor, no estrito sentido das reacções do homem com a mulher, será aquele pelo qual se determina a autenticidade dos sistemas filosóficos e o valor das obras de filosofia. Quem pertencer a esta escola, corrente, ou tendência terá de se dedicar a estudos dificílimos para conseguir chegar ao âmago dos sistemas de filosofia. Raros são os escritores que assim pensam, muitos não atribuem alta dignidade a este problema de antropologia, e quase todos o abstraem das suas obras especulativas.

Eliminar o problema do amor, não o mencionar em livros que parecem de estrutura didáctica e de finalidade educativa, parece-nos omissão contraproducente no plano da cultura superior e na fase actual da civilização. A falta de meditação corajosa sobre um problema a que ninguém se pode recusar terá por consequência a admissão de noções erróneas que se difundem por simplismo ilusório ou por auto-sofismação. Os preconceitos, ou falsos conceitos, e os prejuízos, ou falsos juízos, que estruturam a opinião das pessoas consideradas bem pensantes, se fossem submetidos a um momento de elucidação, mereceriam a imediata repulsa do pensador envergonhado. É indispensável um esforço intelectual da categoria do heroísmo para manter sempre presente a mais elevada doutrina do amor.

Temos de tolerar – na rotina da vida quotidiana, em que maior é o número das horas de desatenção à mais alta verdade – a doutrina fácil, medíocre e baixa que, por correr entre o vulgo, não suscita controvérsia nem discussão. A doutrina entre nós vigente é a doutrina naturalista, segundo a qual as relações do homem com a mulher, que englobamos no termo de amor, se explicam pelo instinto de reprodução nas espécies biológicas. Doutrina naturalista, dizemos, aceitável para os que não lobrigam a distinção entre a Natureza decaída e a Natureza redimida. Apresenta-se a ideia de instinto com palavras de condescendência e indulgência, apresenta-se a ideia de reprodução como um bem para a família e para outras colectividades mais amplas, completando-se a biologia com a demografia. A extrair desta doutrina, a que falta a ideia de génese, todas as consequências lícitas, chegaríamos a admitir o que se encontra descrito em certas utopias imaginadas e raciocinadas, mas que repugna à consciência e ao inconsciente da maioria das pessoas cultas. Escusamos de transformar a alusão compreensível em descrições de realista crueza.

Alarmam-se os moralistas que, por engenho, inventam o manto propício para cobrir os aspectos desgostantes das relações animais, e, sem que analisem os motivos profundos dos ritos etnográficos, parecem querer fundamentar e legitimar a moral em fixos e infixos preconceitos sociais. Assim se estabelece na consciência do moralista a duplicidade – aliás tão frequente –, de consentir que os instintos se satisfaçam a ocultas e de respeitar as conveniências morais. Nada impede, porém, o homem de confessar a amigos e a conhecidos o que deveria ficar para sempre em segredo, e na inconfidência desmentir a professada moral.


José Ortega y Gasset



Fazendo passar o problema do amor por estas duas instâncias, a Ciência e a Moral, dão-se por contentes muitas pessoas que deveriam pensar em termos de maior elevação. Infelizmente, porém, nos nossos ambientes de mediana cultura é mais conhecida a Metafísica do Amor de Schopenhauer do que A Verdade do Amor de Soloviev, mais estimado o De l’Amour de Stendhal do que os Estúdios sobre el Amor de Ortega y Gasset, apenas porque domina ainda entre nós o preconceito calvinista de que o pessimismo moral coincide com a máxima lucidez intelectual.

Há certamente, algumas almas superiores às quais repugna esta doutrina medíocre e que pressentem, se é que não sentem, a luz difusa de remota verdade. É-lhes difícil conceber e exprimir a doutrina por que anseiam, doutrina a opor à banalidade. No entanto, fácil lhes seria ver que a doutrina vulgar, de deficiente ciência e de deficiente moral, tem sido sempre desmentida pela arte, pela filosofia e pela religião, nas quais o amor humano, além de ser apresentado em radiação de beleza, assume uma significação real e transcendente.

(…) É evidente que, na obra de Kierkegaard, se aprofundam os conceitos de sedução e monogamia, entre os quais parece situada a ética das relações do homem para com a mulher. A sedução é segredo, a monogamia é instituição ética. A sedução não é actividade, nem é exclusivamente masculina. A mulher sabe que permanecendo imóvel, silenciosa e vestida pode seduzir tanto ou mais do que desnudando-se, tagarelando ou dançando. Sedução é atracção, e nesta palavra se diz um conceito que a ciência não esclarece. O problema da sedução obsediava Kierkegaard, e dentro do problema da sedução o donjuanismo. Todos conhecem a lenda de D. Juan que aliás tem dado motivo a várias obras literárias e que atingiu a mais subtil expressão artística na ópera musical de Mozart. Poucas pessoas, porém, encontraram por aprofundamento a causa ou a motivação fundamental do movimento que impele D. Juan Tenório pela série infinita das seduções. Ora este problema não pode deixar de ser enunciado e resolvido por quem se considere uma pessoa culta. Claro está que o momento moral da sedução é o do abandono, ou desamparo, da mulher pelo homem; até esse momento não há que formular juízos morais, tudo é lícito, porque decorre sem drama no plano estético, no plano da promessa ainda não renegada. A vileza moral do homem, quando existe, revela-se no momento da inconfidência e da ingratidão.

(…) Já a designação de matrimónio nos rememora a doutrina (tão dignamente preservada pela Igreja Católica, conforme foi expresso pela Comissão Bíblica em 30 de Junho de 1909), da formatio primae mulieris ex primo homine, doutrina que contém a chave do segredo da atracção e da sedução, o qual não pode ser explicado pelo naturalismo. Matrimónio é preferível a casamento. Aliás, na língua portuguesa, casamento significa muito mais a mudança de residência, a junção de pessoas e bens, porque "quem casa quer casa". O casamento exprime maliciosamente, para muita gente, mais uma situação de facto do que uma situação de direito. Se o casamento fosse apenas um rito, como vulgarmente julga quem inclina a religião para o plano da moral, justificar-se-ia plenamente a degenerescência do registo cultural em profano registo civil. Mas se o matrimónio é, mais do que um rito, um sacramento, temos de admitir que ele é de graça que opera no mundo sobrenatural. A vida conjugal pode, pois, aparecer como condição indispensável para que o homem e a mulher cooperem na redenção, segundo o que foi prescrito por leis divinas. Todo o mistério do amor está acima das teorias biológicas e sociológicas com que os educadores mal informados nutrem o lúcido pessimismo dos adolescentes.


Tem o matrimónio fins sobrenaturais, mas se os não tivesse, conforme pensam os descrentes, estaria ainda assim ordenado para auxiliar a evolução da humanidade, isto é, para ir transformando os homens inferiores em homens superiores. Se este fim, que é o fim da família, nem sempre é atingido realmente, outro problema, o da frustração do casamento, tem de ser resolvido à parte. Tal era o que preocupava as gerações retratadas numa literatura que vai a pouco a pouco perdendo a sua melhor significação.

Referimo-nos à literatura romântica, não só porque ela se demorava a descrever em verso e em prosa os impedimentos à união dos amantes, mas ainda porque atribuía ao drama antropológico uma significação que encontrava equivalência na cosmologia e na teologia. O romantismo não é já entendido, e o desentendimento resulta de ter sido esquecida a razão da sociedade tradicional. Esta sabia perfeitamente que a vida conjugal é difícil, porque exige a união nos três planos do composto humano: no espírito, na alma e no corpo. A comunidade de afectos e de sentimentos para que o conjunto não se dissolva por influências previsíveis e imprevisíveis. A fidelidade conjugal, contrariada por mil oportunidades e por mil circunstâncias, só pode ser garantida por uma fé religiosa. Esta verdade, expressa em outros termos, demonstra que o divórcio é o fim natural do casamento.

A decadência da literatura romântica corresponde ao desinteresse pelo problema do amor, o que é evidente na literatura actual em que o problema da morte lenta ou violenta, do assassínio individual ou colectivo, aparece como principal ingrediente da fabulação. O que se observa no livro é ainda mais evidente no espectáculo teatral e no cinematográfico. Assim chegamos, sem obrigação de passar por difíceis nomenclaturas técnicas, aos assuntos que constituem a temática específica da filosofia existencial, filosofia de crise para os homens e os povos que deixaram de ver no amor infinito o primeiro atributo de Deus.

Eis as razões que nos levaram a considerar O Banquete, e, também, os outros livros que compõem a série intitulada Estádios na via da vida, como a melhor introdução ao estudo da obra de Soren Kierkegaard e da reacção que o existencialismo exerceu, exerce e exercerá no desenvolvimento da filosofia portuguesa» (in apresentação da tradução portuguesa de O Banquete, de Soren Kierkegaard, Guimarães Editores, 1953).

Álvaro Ribeiro



Discurso de Johannes o Sedutor






«(...) Meus caros amigos: Para falar dignamente da divindade, é preciso estar entusiasmado, inspirado pelo sopro ou espírito divino, e dele receber o que se vai comunicar. Análogo acontece quando se fala da mulher. A mulher não é mera ideia que surgisse do cérebro do homem, sonho em pleno dia, fantasia intelectual, tema para discussão pro et contra. Não; o que se sabe a respeito da mulher foi a mulher que o ensinou; por isso quem mais sabe da mulher é quem teve mais amantes que o instruíssem. À primeira vez é-se um aprendiz; à segunda, já se está mais seguro da sua pessoa, como quem, nas discussões dos doutores, aproveita as amabilidades do primeiro adversário para as voltar contra o seguinte. Apesar destas concessões, nada fica perdido. Porque, se o beijo é um jogo e o abraço uma façanha que acabam como tudo tem de acabar, na escola das mulheres nunca se chega a dar todo o programa, nem a doutrina se resume numa proposição matemática, sempre idêntica, através das variações literárias dos métodos de demonstração. É que tais métodos são bons para as matemáticas e para os fantasmas, não para o amor e para a mulher. A verdade é que o sexo fraco, longe de ser inferior, é pelo contrário, o mais perfeito. Darei todavia ao meu discurso a forma de um mito, e, defendendo o partido da mulher que ofendeste de tão injusto modo, dar-me-ei por feliz se as minhas palavras representarem o pensamento das vossas almas quando chegardes a ver a aparição da volúpia, que fugirá de vós, tal como os frutos se afastam de Tântalo, porque ofendeste a mulher. É que não há outro modo de ofender a mulher, senão o vosso, se bem que ela esteja acima de todas as injúrias, se bem que o castigo vingue quem teve audácia tão impiedosa. Não quero melindrar ninguém. Mas as vossas ideias são meras invenções, calúnias próprias de homens casados, não as minhas, porque eu honro a mulher muito mais do que um marido seria capaz de a venerar.

«No princípio havia só um sexo; dizem os gregos que era o sexo masculino. Dotado de faculdades magníficas, era uma criatura admirável em que se reviam os deuses; os dons eram tão grandes que aconteceu aos deuses o mesmo que por vezes acontece aos poetas que gastaram todas as forças na criação de uma obra: tiveram inveja do homem. O pior é que tiveram receio dele; temeram que ele não estivesse disposto a aceitar de bom grado o jugo divino; tiveram medo, embora sem razão para isso, que o homem chegasse a abalar o céu. Haviam feito surgir uma força nova que lhes parecia estar a ser indomável. A inquietação e a perplexidade dominavam então no concílio dos deuses. Mostraram-se primeiro de uma generosidade pródiga ao criarem o homem; mas agora tinham de recorrer aos meios mais violentos para legítima defesa. Os deuses pensavam que o seu poderio estava em perigo, e que não podiam voltar atrás, como um poeta que renegue a sua obra. O homem já não podia ser dominado pela força, porque se o pudesse ser, os deuses teriam resolvido facilmente o problema; e era isso precisamente o que lhes causava desespero. Era preciso cativá-lo pela fraqueza, por um poder mais fraco e mais forte do que ele, capaz de o subjugar. Que poder espantoso e que poder contraditório não havia de ser! A necessidade também ensina os deuses a transcenderem os limites do engenho. Pensaram, meditaram, encontraram. A nova potência foi a mulher, maravilha da criação, que aos próprios olhos dos deuses era superior ao homem; e os deuses, ingénuos e contentes, mutuamente se felicitaram pela nova invenção. Que mais poderei eu dizer em louvor da mulher? A mulher foi tida por fazer o que parecia impossível aos deuses; além disso, a verdade é que desempenhou admiravelmente o seu papel; que maravilha não deve ser a mulher para conseguir os seus fins! Tal foi a astúcia dos deuses. A encantadora foi formada e dotada de uma natureza enganadora; mal encantou o homem, logo se transformou, enleando-o entre todas as dificuldades do mundo finito; era isso mesmo o que os deuses queriam. Que seria possível imaginar de mais fino, de mais atraente, de mais arrebatante, do que este subterfúgio dos deuses que querem salvaguardar um império, do que este processo para seduzir o homem? Tal é a realidade; a mulher é a sedução mais poderosa do céu e da terra. Comparado com ela, o homem é um ente muito imperfeito.


«A astúcia dos deuses veio a dar resultado. Nem sempre, porém, com êxito igual. Em todos os tempos surgiram homens que estiveram atentos à fraude. Uns ficaram isolados; outros observavam a graciosidade da mulher, e, mais do que os primeiros, viram de perto a armadilha. A estes chamo eu eróticos, e conto-me no número deles; os homens chamam-lhes sedutores, e as mulheres não lhes dão classificação especial, porque, para elas, representam o inefável. Os eróticos são os homens felizes. Vivem com maior magnificência do que os deuses, porque se alimentam de um manjar muito mais delicioso do que a ambrósia, e bebem um licor mais inebriante do que o néctar; nutrem-se do que é divino, porque vão comendo o astucioso pensamento dos deuses que os queriam seduzir; gozam o delicioso sabor da isca, e entre prazeres inigualáveis vão levando uma vida de felicidade, sem que passem além da isca, sem que nunca mordam o anzol. Os outros homens correm para o engodo, e devoram tudo, à maneira do aldeão que come salada de pepinos, e ficam presos pela boca. Só o erótico é dotado de delicadeza para fruir o gosto da isca e atribuir-lhe um valor infinito. A mulher distingue-o e estima-o; entre ambos se forma um entendimento secreto. Mas o erótico sabe que lhe cumpre guardar o segredo, se não quiser sofrer, mais cedo ou mais tarde, a vingança terrível dos deuses.

«Que nada se pode imaginar de mais maravilhoso, de mais encantador, de mais sedutor do que a mulher, os deuses o afirmaram e da afirmação nos deram garantia. O próprio embaraço que os obrigou a dobrar de engenho é mais uma prova de que eles jogaram tudo quanto removeram o céu e a terra para formar a mulher (O Banquete, Guimarães Editores, pp. 133-136).

Continua


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