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domingo, 23 de outubro de 2022

Da necessidade metafísica

Escrito por Artur Schopenhauer


«A FILOSOFIA é aquilo que seus fundadores quiseram, não aquilo que seus sucessores fizeram dela. Só em Sócrates, Platão e Aristóteles você pode obter uma imagem veraz do que é filosofia.

(...) Não é isso o que lhe dirão os professores, mas eles mentem ou não sabem do que falam...».

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).


«(...) não têm faltado pessoas que se esforcem por tirar a sua subsistência desta necessidade metafísica e a explorem quanto podem: em todos os povos se encontram personagens que fazem dela um monopólio e a consolidam: são os sacerdotes. Mas, para assegurarem completamente o seu tráfico, precisam de alcançar o direito de insinuar cedo aos homens os seus dogmas metafísicos, antes que a reflexão saia das suas trevas, isto é, na primeira infância, porque então todo o dogma, uma vez enraizado, perdura, qualquer que seja a sua insânia. Se os padres tivessem que esperar que o juízo amadurecesse para realizarem a sua tarefa, veriam desmoronar-se todos os seus privilégios.

Uma segunda categoria de indivíduos, embora não menos numerosa, que tira a sua subsistência desta necessidade metafísica da humanidade, é a dos que vivem da filosofia. Entre os gregos chamavam-lhes sofistas; e, entre os modernos, professores de Filosofia. Aristóteles inclui, resolutamente, Aristipo entre os sofistas e Diógenes Laércio dá-nos a explicação disso: é que ele foi o primeiro, da escola socrática, que fez pagar as suas lições. Ele próprio quis pagar a Sócrates, que lhe devolveu o presente.

Entre os modernos – ao menos em geral e salvo raras excepções – os que vivem da filosofia são não só muito diferentes dos que vivem para ela, mas também, muitas vezes, seus adversários, seus inimigos irreconciliáveis, porque todo o estudo, pura e profundamente filosófico, projectaria demasiada sombra sobre os seus trabalhos e não se subordinaria às vistas e regulamentações da confraria. Por isso em todos os tempos ela se tem esforçado por abafar esses estudos, e, conforme a época e as circunstâncias, tem empregado habitualmente contra eles, quer o silêncio, quer a negação, a difamação, as invectivas, as calúnias, as denúncias e as perseguições. É assim que se têm visto grandes génios arrastarem-se penosamente pela vida, desconhecidos, e sem glória, até que por fim, depois da morte, o mundo os fica conhecendo e aos seus inimigos. Todavia, estes atingiram o seu objectivo, impedindo-os de se revelarem, e viveram da filosofia com suas mulheres e seus filhos, ao passo que o grande homem desconhecido vivia para ela. Mas, logo que morre, produz-se uma reviravolta completa: a nova geração de professores de Filosofia faz-se herdeira dos seus trabalhos, talha neles uma doutrina à sua medida e põe-se a viver dela. Se Kant pôde viver ao mesmo tempo para e da filosofia, foi devido a uma rara circunstância que só se produziu uma vez depois dos Antoninos e de Juliano. Apenas sob tais auspícios poderia ter aparecido a Crítica da Razão Pura.

Mas, mal o rei morreu, vemos logo Kant tranzido de pavor, porque pertencia à confraria. Modifica a sua obra-prima, na 2.ª edição, mutila-a, estraga-a, e, afinal de contas, está em riscos de perder o lugar, a ponto de Campe o convidar a vir para sua casa, em Brunsvique, para ali viver como em família.

Em geral, a filosofia das universidades é esgrima em frente de um espelho; no fundo, o seu verdadeiro fim é dar aos estudantes opiniões ao sabor do ministro que distribui as cadeiras. Nada melhor, no ponto de vista do homem de Estado; mas a consequência é que tal filosofia é, por assim dizer, nervis alienis, mobile lignum; não poderia considerar-se como séria: é uma filosofia para rir.

É certo que esta vigilância ou esta direcção se limitam à filosofia de escola e não se estendem à verdadeira, à filosofia séria. Porque, se há alguma coisa de desejável no mundo - e de tão desejável que até a multidão grosseira e estúpida, nos seus momentos lúcidos, a aprecia mais do que o ouro e a prata, – é ver tombar um raio de luz na obscuridade da nossa existência; é encontrar alguma solução para o misterioso enigma da nossa vida, em que só vemos miséria e vaidade. E, contudo, este benefício seria impossível se alguém, admitindo que isso fosse viável, impusesse determinadas soluções ao problema».

Artur Schopenhauer («Da Necessidade Metafísica»).


«(...) a obra, “O mundo como Vontade e como Representação”, publicada em Lípsia, em 1818, (...) contra a expectativa do autor, que nela tinha posto o melhor do seu talento, não obteve o menor êxito. A maior parte da edição foi vendida, dezasseis anos mais tarde, como papel velho. Schopenhauer sentiu amargamente este inêxito e, para se reconfortar, empreendeu uma viagem a Itália. Mais tarde, aludindo certamente a este facto, escreve ele: “Quanto mais um homem pertence à posteridade – ou, por outras palavras, à humanidade em geral – tanto mais incompreendido ele é dos seus contemporâneos, porque, desde o momento em que o seu trabalho lhes não é destinado como contemporâneos, mas apenas porque fazem parte da humanidade, nada há nas suas produções com a cor local, familiar, que poderia seduzi-los.”».

Prefácio de Lobo Vilela (in Artur Schopenhauer, «Da Necessidade Metafísica»).





«De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da conversa estereotipada e trazer os dialogantes de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efetiva. A conquista desse vocabulário pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta. Ao incorporar-se à cultura ambiente como atividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força originária de atividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se ergue entre pensamento e realidade.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).


«As principais críticas de Aristóteles a todas as doutrinas da imobilidade encontram-se agrupadas nos livros da Metafísica, e com razão vemos incluída nessa miscelânea literária uma das mais belas obras de pura teologia. Só Deus é verdadeiramente imóvel, segundo a doutrina de Aristóteles. A Física é um desenvolvido tratado do movimento e do repouso, da quietação e da inquietação. Erro lamentável foi sempre o de confundir com a física a ciência da natureza, limitada esta aos entes que vivem sob as leis do nascer e do morrer, quer dizer, ao tempo. Erram os tradutores quando escrevem naturalmente por fisicamente, como na primeira frase do primeiro livro da Metafísica. Tudo está em movimento; imóvel, só Deus; impiedosas, efémeras ou falsas serão quaisquer representações da imobilidade.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).


«A partir do escrito Introdução à metafísica de 1935, o termo metafísica assume assim em Heidegger uma conotação decididamente negativa: metafísica é todo o pensamento ocidental que não soube manter-se ao nível da transcendência constitutiva do Dasein, ao colocar o ser no mesmo plano do ente. Por outras palavras, o conhecimento do ente pressupõe no estar-aí uma constitutiva compreensão prévia do ser (o projecto), e isto é o que se entende por transcendência do estar-aí a respeito do ente; essa transcendência reflecte-se no facto de, desde os começos da história do pensamento ocidental, a filosofia formular o problema do Ser do ente, isto é, daquilo que constitui o ente como tal (a sua “essentidade”; basta pensar na problemática aristotélica da ousía e, antes, em Parménides e em Platão; precisamente Ser e Tempo tem como epígrafe uma passagem de O Sofista de Platão [Platão, O Sofista, 244a: “Com efeito, é claro que há pouco tempo estais familiarizados com aquilo que entendeis quando empregais a expressão ‘ente’; também nós pensávamos antes que a compreendíamos, mas agora caímos na perplexidade”]; mas, ao levantar-se este problema, o pensamento tende imediatamente a resolvê-lo de uma maneira errada, a conceber o ser como uma característica comum de todos os entes, como uma espécie de conceito exageradamente geral e abstracto (daqui o desvanecimento do próprio conceito de ser e, por exemplo, a caída do ser no nada da Lógica de Hegel) que se obtém devido à observação daquilo que todos os entes têm de comum. Mas os entes são concebidos – e já se verá porque – como simples presenças; de maneira que também o ser se concebe em toda a história da filosofia ocidental como simples presença; isto é, de acordo com o modelo do ente, que, por sua vez, é entendido de uma maneira, conforme se viu em Ser e tempo, simplesmente “derivada”. Vista assim, a metafísica coincide com a compreensão (ou não compreensão) do ser que tem a existência inautêntica; esta conexão de metafísica com existência inautêntica está explicitamente indicada na Introdução à metafísica, ainda que esta obra expresse uma tese já implícita em Ser e tempo e nos escritos imediatamente posteriores; o termo metafísica chega a converter-se em sinónimo de esquecimento do ser, Seinsvergessenheit, um termo que no posterior desenvolvimento do pensamento heideggeriano adquire uma posição central.»

Gianni Vattimo («Introdução a Heidegger»).




«A observação é de Nietzsche: “(...) até aqui ainda em nenhuma filosofia se tratou da verdade”. Qualquer que seja o sentido que se atribua à observação, e embora se lhe possa contrapor que nenhuma filosofia tratou nem pôde tratar de outra coisa, ela fica aí.

Fugazmente nos fala Platão da “verdade em si”. Fugazmente nos diz Hegel que “a verdade é o todo”. Terá suposto, um, que o pensamento é sempre pensamento da verdade, tal como ninguém existe que não reconheça que sem a verdade não há pensamento possível? Terá suposto, o outro, que a todo o real, ao múltiplo real, até o mais imediato e dado naturalmente, não é possível entendê-lo se alheio à verdade? E nesse pressuposto ambos descansaram apesar de um deles ter recusado valor filosófico a toda a suposição?

Logo, aliás, ambos tornaram suspeito o que fugazmente disseram. Da verdade que seria o todo, depressa Hegel recua numa daquelas impressivas expressões de que possuía o segredo, a de que “a verdade não tem pressa”. Se é o todo não pode ser vagarosa nem apressada e a sua presença está dispersa sem limites, tornando-se indeterminável.

Por sua vez, ao falar da “verdade em si”, Platão utiliza a expressão com que fala das ideias. Em si significa realidade plena e independente que distingue as ideias do que, no mundo sensível, delas apenas participa e depende. Que distingue, por exemplo, o belo do que é belo, o movimento do que se move. Ora a verdade não é uma ideia porque, a haver dela participação, também as ideias participam, o que contradiz a realidade.

Um filósofo mais recente, e o mais divulgado na filosofia contemporânea que se ensina nas escolas, o alemão M. Heidegger, concebe romanticamente a verdade segundo a imagem da “flor azul” dada pelo poeta Novalis no romance Heinrich von Ofterdingen. Seria a verdade descobrimento ou desvelamento, bruma que se rompe, véu que se afasta, não o encoberto, não o velado. Estamos, pois, longe da verdade em si, de Platão, e da verdade que é o todo, de Hegel, um e outro filósofo muito suspeitos ao pensador contemporâneo. Firma ele a sua concepção, atribuindo-a aos mitólogos pré-socráticos, na etimologia da palavra grega aleteia, que traduzimos por verdade. Aleteia significaria desvelar ou descobrir. O que desvela e descobre, diz Heidegger, é o ser, o oculto ser.

Na linha do pensamento alemão, que se desvia do idealismo que culminou em Hegel, linha que encontra os seus mais notáveis representantes em Schopenhauer e Nietzsche, esta concepção integra-se numa tão absorvente filosofia do ser que os mesmos orientais viram nela “um traço de união” entre o Oriente e o Ocidente, entre o orientalismo e a filosofia. [Entrevista dada por Heidegger ao L’Express, n.º 954, de 22-26 de Outubro de 1969]. Compreende-se portanto que, ao mesmo tempo que atribui à verdade uma essência própria, Heidegger a veja como uma ilusão que, como o mundo real para os orientais, vela e encobre o ser.




Teremos de concluir que a filosofia cessa onde o pensamento se depara com a verdade? Teremos de concluir que ao pensamento está vedado o saber da verdade?

Esta interrogação está implícita em toda a filosofia, até a mais confiante nos poderes ilimitados do pensamento e do espírito. Isso explica que a filosofia não deixe de se dizer filosofia, isto é, amor do saber e não o saber, quando não há um sem o outro. Que ela seja o que José Marinho disse da razão, “o pequeno pensamento com que pensamos” e, não transpondo o limite dos múltiplos que compõem o todo, não ouse apresentar-se como metafísica.

Pouca coisa será, então, a filosofia, justificando que, na sequência de uma teologia que a tinha por instrumento e de uma mais remota mitologia do mundo sensível anterior ao seu aparecimento, modernas arrogâncias das ciências de certas regiões do real ou do múltiplo a tenham dado por acabada e interpretem a sua anterior, pertinaz existência como abusiva do menor saber de Deus, que dizem morto, e da menor ciência do mundo, que dizem exclusiva.

É certo que os autênticos pensadores nunca, com firmes razões, deixaram de confiar que o pensamento filosófico, alcance ou não o saber dela, é sempre pensamento da verdade. E que sempre dele resulte algum saber, sob pena de não haver saber algum, nenhuma ciência, pois não há saber que não seja obtido pelo pensamento. Todavia, Hegel, talvez prevendo a negação da filosofia que o kantismo, para defender a ciência, preparara e em breve se iria declarar, não hesitou em sistematizar o seu pensamento filosófico como saber, já não como amor do saber, e em apresentá-lo e defendê-lo como uma metafísica. E talvez prevendo também que a negação viesse da teologia segura da sua linhagem, lembrou aos teólogos que quando Deus está morto – e sempre Deus vive para morrer e morre para reviver – a filosofia é “a sexta-feira santa da paixão especulativa”. Da morte de Deus guarda a religião, muito especialmente o cristianismo, a imagem e o símbolo, mas da “paixão especulativa” que preenche a morte de Deus é a teoria da verdade que, como veremos, tem o seguro pensamento.

Quanto ao saber da verdade, não o pode a filosofia alcançar enquanto a verdade não tem o saber de si. O ponto de partida da teoria da verdade é isso mesmo: não ter ela o saber de si. E aí reside também, já não a originalidade mas a mesma origem não apenas do pensamento mas de todo o real. Aí a verdade se impõe, já não como a veracidade ou o verdadeiro, mas como o que Platão imperfeitamente designou por “verdade em si”. Imperfeitamente, dizemos, porque a verdade não tem o saber de si e nada é em si sem o saber de si.»

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).





«Desviados da linha medieval, erraram os escolásticos modernos quando aplicaram à Física de Aristóteles o canon de escrituras sagradas, lendo como texto perene os livros que haviam resultado de sérios processos de observação e experimentação naturais. A obra lógica, ética e metafísica de Aristóteles permaneceu válida nas suas linhas essenciais e resistiu a todas as críticas impertinentes; assim o entenderam os componentes do escol nos povos peninsulares; mas seja-nos permitido afirmar que a interpretação portuguesa da filosofia de Aristóteles é superior à interpretação alemã. Lida directamente, e não através de comentadores que adaptaram às circunstâncias contingentes e às oportunidades pretéritas, a obra de Aristóteles refulge no brilho do seu pensamento essencial, e continua a ser saudada por quantos actualizam a sua cultura.»

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).



Da necessidade metafísica


A física (no sentido mais lato do termo) também se ocupa em explicar os fenómenos do mundo. Mas a própria natureza das suas explicações é a causa da sua insuficiência. A física não poderia viver duma vida independente. Por mais desdenhosa que seja a sua atitude em face da metafísica, tem necessidade do seu apoio. Ela própria explica os fenómenos por qualquer coisa de mais desconhecido ainda do que eles, – por leis naturais, de que a força vital é um espécime.

Sem dúvida, o estado actual de todas as coisas do mundo ou na natureza deve poder explicar-se por causas puramente físicas. Mas uma tal explicação, ainda que se conseguisse, seria necessariamente contaminada por duas imperfeições essenciais e, por assim dizer, por duas taras que fazem que todos os fenómenos fisicamente explicados continuem, na realidade, inexplicados. Também Aquiles era vulnerável no calcanhar; e o Diabo ainda se representa com patas de cavalo.

Em primeiro lugar, nunca poderia atingir-se o começo desta série de causas e de efeitos, isto é, de modificações ligadas entre si: este começo recuaria sem cessar até o infinito, como os limites do mundo no espaço e no tempo.

Em segundo lugar, o conjunto das causas efectivas pelas quais se pretende explicar tudo assenta sobre qualquer coisa de absolutamente inexplicável. Quero referir-me às qualidades primordiais dos objectos e às forças naturais que neles se manifestam, forças que permitem às qualidades agir de um modo determinado. Tais são: a gravidade, a solidez, a força de impulsão, a elasticidade, o calor, a electricidade, as energias químicas, etc. Toda a explicação física dá estas forças como resíduo, tal como uma equação algébrica em que todos os outros termos fossem resolvidos, mas em que subsistisse uma quantidade desconhecida e indeterminável. Segue-se daqui que nem o mais ínfimo fragmento de argila deixa de ser composto por qualidades tão inexplicáveis como as outras.

Estas duas irremovíveis imperfeições de toda a explicação física, quer dizer, causal, mostram que tal explicação não pode deixar de ser relativa e o método das ciências positivas não é o único, o último, o método suficiente, o que conduz a uma solução satisfatória do difícil problema das coisas, à verdadeira inteligibilidade do mundo e da existência, mas que a explicação física, como tal, carece de uma explicação metafísica que lhe dê a chave de todas as suas suposições. Somente resulta daí que o método metafísico deve diferir profundamente do método físico.






O primeiro passo a dar nesta nova via é compenetrarmo-nos nitidamente, e de uma vez para sempre, da diferença, entre física e metafísica. Esta diferença assenta, no essencial, na distinção kantiana do fenómeno e da coisa em si. Kant declarava esta absolutamente inexplicável e por isso não poderia haver, segundo ele, nenhuma metafísica: só é possível, o conhecimento imanente, por consequência a física, e, a par dela, a crítica da razão, nas suas aspirações metafísicas.

Permita-se-me que note, desde já, o ponto de contacto da minha filosofia com a doutrina kantiana e que Kant, na sua bela explicação da coexistência da liberdade e da necessidade (1), demonstra que a mesma acção que, por um lado, é perfeitamente explicável como consequência necessária do carácter do homem, das influências que ele sofreu durante a vida e dos motivos actuais que o solicitam, deve, por outro lado, ser considerada como obra da sua livre vontade. No mesmo sentido, diz no § 53 dos Prolegómenos:

«Sem dúvida, a necessidade natural será inerente a toda a combinação de causas e de efeitos no mundo sensível, mas a liberdade será conferida às causas que não sejam fenómenos (embora sirvam de fundamento a fenómenos). Por consequência a necessidade (literalmente a natureza) e a liberdade podem ser atribuídas, sem contradição, ao mesmo objecto, conforme se considere sob aspectos diferentes, ou como fenómenos ou como coisa em si.»

O que Kant diz do fenómeno do homem e da sua actividade torna-o a minha doutrina extensivo a todos os fenómenos da natureza, dando-lhes por fundamento comum a Vontade como coisa em si. O que justifica, em primeiro lugar, esta maneira de proceder é a impossibilidade de admitir que o homem seja especificamente distinto (toto genere e radicalmente) de todos os seres e objectos da natureza: não pode haver entre eles senão uma diferença de grau.

Deixo agora esta digressão para voltar às minhas considerações sobre a importância da física para fornecer a explicação última das coisas. Digo pois: sem dúvida, tudo é físico, mas então nada é explicável. Do mesmo modo que o movimento da bola de bilhar que se impele, a função pensante do cérebro deve comportar, em última análise, uma explicação física que a torne tão inteligível como o movimento da bola. Ora, mesmo este movimento, que julgamos compreender tão plenamente, é, no fundo, tão obscuro como o pensamento, porque a última essência da expansão do espaço, da impenetrabilidade, da faculdade de ser movido, da resistência, da elasticidade e do peso, continua a ser, depois de todas as explicações físicas, um mistério como é o pensamento. Somente, como a impossibilidade de explicar este último nos choca à primeira vista, se apressaram a dar um salto da física para a metafísica e a hipostasiar uma substância de natureza inteiramente diferente da das coisas corporais. Transportou-se para o cérebro uma alma.

Se o nosso intelecto não fosse tão embotado que é preciso um fenómeno extraordinariamente surpreendente para o chocar, teríamos explicado a digestão por uma alma estomacal, a vegetação por uma alma vegetativa, as finalidades electivas pela presença de uma alma nas reacções, a queda de uma pedra pela presença de uma alma nessa pedra, porque as propriedades de qualquer corpo inorgânico são tão misteriosas como a vida no ser vivo. Deste modo, a explicação física vem cair sempre numa explicação metafísica que a suprime, quer dizer, que lhe rouba o seu carácter de explicação. Em rigor, poder-se-ia dizer que todas as ciências da natureza se limitam, como a botânica, a reunir e classificar os objectos da mesma espécie.

Uma física que sustentasse que as suas explicações das coisas (em pormenor, por meio de causas e, de um modo geral, por meio de forças) são verdadeiramente suficientes e, por consequência, esgotam a essência do mundo, seria naturalismo propriamente dito. De Léucipo, Demócrito e Epicuro, até o «sistema da natureza», e depois a Lamarck, a Cabanis e ao materialismo requentado dos últimos anos, podemos seguir a tentativa, sempre continuada, de estabelecer uma física sem metafísica, quer dizer, uma doutrina que faça do fenómeno a coisa em si. Mas todas as explicações destes físicos não são mais do que tentativas para dissimular, tanto aos explicadores como ao público, que elas supõem simplesmente a coisa essencial.

Os naturalistas esforçam-se por mostrar que todos os fenómenos, mesmo os fenómenos espirituais, são físicos e nisso têm razão; o seu erro está em não verem que toda a coisa física é igualmente, por outro lado, uma coisa metafísica. Sem dúvida, é difícil reconhecer esta verdade, visto que ela supõe a distinção do fenómeno e da coisa em si. No entanto, Aristóteles, apesar da sua tendência para o empirismo e afastado como estava da hiperfísica platónica, soube, mesmo sem o socorro dessa distinção, manter-se fora desta estreita concepção: «portanto, se não existe alguma outra substância, além daquelas que constituem a natureza, a física será, seguramente, a primeira ciência; porém, se existe alguma substância imóvel, a filosofia será a primeira e, assim, universal, precisamente porque é a primeira; e, como o ser provém do ser, a especulação é própria deste» (2).

Uma física absoluta, tal como a que acabámos de descrever, que não deixaria lugar para nenhuma metafísica, faria da Natura naturata a Natura naturans: seria uma física implantada no trono da metafísica; mas é provável que, neste lugar elevado, ela se comportasse como o estanhador de Holberg depois de ser nomeado burgomestre. É esta ideia obscura duma física absoluta sem metafísica que inspira, no fundo, a censura insípida, e as mais das vezes malévola, de ateísmo; é ela que lhe dá sentido íntimo de verdade e, portanto, de força. Tal física seria, certamente, destruidora de toda a ética, e, se é falso considerar o teísmo inseparável da moralidade, esta não pode, aliás, conceber-se sem uma metafísica qualquer, isto é, sem uma doutrina que reconheça que a ordem da natureza não é a única nem a ordem absoluta das coisas. Por isso, o Credo obrigatório de todos os justos e de todos os bons pode formular-se assim: «Eu creio numa metafísica.»

Neste sentido, é importante e necessário que o homem esteja persuadido da impossibilidade de se agarrar a uma física absoluta, tanto mais que esta, o naturalismo por excelência, é um modo de ver que por si mesmo se impõe continuamente ao homem e só pode ser destruído por uma especulação profunda, especulação que os diversos e as diversas religiões desenvolvem, de acordo com a sua força e enquanto supostos verdadeiros.

O que nos explica como uma concepção radicalmente falsa pode impor-se por si mesma ao homem e deve ser afastada, por meios artificiosos, é que o intelecto não se destina, primitivamente, a instruir-nos sobre a essência das coisas, mas apenas mostrar-nos as relações com a nossa vontade; o intelecto não é mais do que o centro dos motivos. É acidentalmente que nele o mundo se esquematiza de maneira completamente diferente da ordem absolutamente verdadeira e não poderia censurar-se por isso o intelecto, visto que nos mostra apenas o invólucro exterior, não o nódulo das coisas; a censura seria tanto mais injusta quanto é certo que o intelecto encontra em si mesmo o meio de rectificar este erro, estabelecendo a distinção do fenómeno e da coisa em si. Esta distinção, a bem dizer, foi percebida sempre; mas, as mais das vezes, só se teve dela uma noção imperfeita e, por consequência, exprimiu-se insuficientemente, apresentando-se algumas vezes até sob estranhos disfarces. Já os místicos cristãos, por exemplo, recusam ao intelecto (designando-o pelo nome de luz da razão) a faculdade de apreender a verdadeira essência das coisas. Ele é, de certo modo, uma simples força superficial, como a electricidade, e não penetra no âmago das realidades.

Mesmo no ponto de vista empírico, a insuficiência do naturalismo puro manifesta-se logo no facto de que a explicação física vê, já o dissemos, a razão do facto particular na sua causa, e a série destas causas, como sabemos, com inteira certeza, a priori, desenvolve-se numa regressão ao infinito, de modo que nenhuma coisa pôde ser a primeira, dum modo absoluto. Depois, a acção desta causa é reduzida a uma lei natural e esta a uma força natural, que fica absolutamente sem explicação. Mas este elemento inexplicável, a que são reduzidos todos os fenómenos, desde o mais elevado até o mais ínfimo, deste mundo tão claramente dado e tão naturalmente explicável, não estará aí para nos revelar que todas as explicações deste género são condicionadas, de certo modo ex concessis, e que não são a explicação verdadeira e suficiente? Por isso eu disse que fisicamente tudo é explicável e nada o é.



Este elemento absolutamente inexplicável que atravessa todos os fenómenos, que aparece com tanto brilho nos fenómenos superiores, os da geração, por exemplo, mas que se encontra também nos mais rudimentares, nos fenómenos mecânicos, entre outros, é o índice de uma ordem de coisas inteiramente diferente da ordem física e que lhe serve de fundamento. Esta ordem, a que Kant chamava a ordem das coisas em si, é o termo da metafísica.

Em segundo lugar, a insuficiência do naturalismo puro resulta desta verdade filosófica fundamental que estudámos em pormenor na primeira parte de «O Mundo como Vontade e como Representação» e constitui também o tema da «Crítica da Razão Pura», isto é, que todo o objecto é condicionado pelo sujeito pensante, tanto na sua existência objectiva como na forma particular dessa existência, e, por consequência, que o objecto é um simples fenómeno, não uma coisa em si. Isto foi largamente exposto no § 7 do 1.º volume, onde se mostrou a inépcia dos que, à maneira dos materialistas, tomam dum modo inconsiderado o objectivo como dado absolutamente, sem atenderem ao elemento subjectivo por meio do qual apenas, direi mesmo, no qual somente o objectivo existe.

O materialismo hoje em moda fornece numerosos exemplos deste processo; por isso mesmo é uma filosofia de aprendizes de cabeleireiro e de praticantes de farmácia. Na sua ingenuidade, ele vê a coisa em si, na matéria que toma inconsideradamente por qualquer coisa de absolutamente real; segundo ele, a força de impulsão é a única faculdade de uma coisa em si, visto que todas as outras qualidades não podem ser senão fenómenos desta força.

O naturalismo ou a física pura nunca será, portanto, uma explicação suficiente; poder-se-ia compará-lo a um cálculo cujo último termo nunca se encontrasse. Séries causais sem fim nem princípio, forças insondáveis, um espaço infinito, um tempo sem começo, a divisibilidade da matéria ao infinito, todas estas coisas determinadas por um cérebro pensante, só no qual elas existem, do mesmo modo que o sonho, e sem o qual desaparecem: tal é o labirinto em que nos passeia, sem cessar, a concepção naturalista.

As ciências da natureza chegaram, na nossa época, a um grau de perfeição que os séculos precedentes estavam longe de prever, espécie de cume a que a humanidade ascende pela primeira vez. Mas, por maiores que sejam os progressos da física (compreendida no sentido lato que os antigos lhe atribuíam), não contribuirão nada para nos fazer avançar um passo para a metafísica, do mesmo modo que uma superfície, por mais que se prolongue, não se converterá em volume.

Os progressos da física só completarão o conhecimento do fenómeno, ao passo que a metafísica aspira a ultrapassar o fenómeno para estudar a coisa que se apresenta como tal. Ainda que a nossa experiência fosse absolutamente acabada, a situação não se modificaria. Quanto maiores forem os progressos da física, tanto mais vivamente se sentirá a necessidade de uma metafísica. Com efeito, se, por um lado, um conhecimento mais exacto, mais extenso e mais profundo da natureza mina e acaba por derrubar as ideias metafísicas em curso até então, serve por outro lado para pôr mais nítida e mais completamente em relevo o problema da metafísica, para desembaraçá-lo melhor de todo o elemento físico.

Quanto mais completo e exacto for o nosso conhecimento da essência dos objectos particulares, tanto mais imperiosamente se nos imporá a necessidade de explicar o conjunto e o geral; e quanto mais justo, preciso e completo for o conhecimento empírico deste elemento geral, mais misterioso e mais enigmático ele nos aparecerá. É verdade que o sábio ordinário, o que se confina num ramo especial da física, não tem a menor ideia do que acabámos de dizer; dorme feliz ao lado da serva que escolheu na casa de Ulisses, sem um pensamento para Penélope.




Assim, nos nossos dias, a casca da natureza é estudada minuciosamente: conhecem-se por miúdos os intestinos dos vermes intestinais e a vérmina da vérmina. É-se tentado a chamar esmiuçadores da natureza a estes físicos microscópicos e micrológicos. E certamente os que pensam que o cadinho e a retorta são a verdadeira e única fonte de toda a sabedoria não têm o espírito menos pervertido do que o tinham outrora os seus antípodas – os escolásticos.

Do mesmo modo que estes estavam prisioneiros na rede dos seus conceitos abstractos, fora da qual não conheciam nem examinavam nada, os nossos físicos conservam-se inteiramente confinados no seu empirismo, não admitem como verdade senão o que vêem com os seus olhos e julgam ter penetrado, assim, na essência última das coisas. Não suspeitam que entre o fenómeno e aquilo que se manifesta, a coisa em si, há um abismo profundo, uma diferença radical; que para se elucidar a este respeito é preciso conhecer e delimitar, com precisão, o elemento subjectivo do fenómeno e chegar a compreender que as últimas informações, as mais importantes sobre a essência das coisas, só podem procurar-se na consciência de nós mesmos; sem estas operações preliminares é impossível dar um passo para além do que é imediatamente dado aos sentidos, ou, por outras palavras, ultrapassar o problema.

Notemos todavia que, por outro lado, para pôr com precisão o problema da metafísica, é necessário um conhecimento da natureza tão completo quanto possível. Por isso, ninguém deveria tentar abordar a metafísica antes de ter adquirido um conhecimento, pelo menos geral, mas exacto, claro e coordenado dos diversos ramos do estudo da natureza, pois o problema precede, necessariamente, a solução. Porém, uma vez posto o problema, é preciso que o olhar do investigador se volte para dentro, porque os fenómenos morais e intelectuais são mais importantes que os fenómenos físicos, do mesmo modo que o magnetismo animal, por exemplo, é um fenómeno incomparavelmente mais importante que o magnetismo mineral.

O homem traz no seu íntimo os mistérios últimos e fundamentais e é o seu íntimo que lhe é mais imediatamente acessível. Só ali ele pode encontrar a chave do enigma do mundo e o único fio que lhe permite apreender a essência das coisas. O domínio próprio da metafísica é, pois, o que se chama filosofia do espírito.

(1) «Crítica da Razão Pura» e «Crítica da Razão Prática».

(2) Metafísica, V-I.

(In Artur Schopenhauer, Da Necessidade Metafísica, Editorial Inquérito, pp. 43-57).



terça-feira, 15 de novembro de 2011

O génio da espécie (ii)

Escrito por Arthur Schopenhauer








«... o génio da espécie medita a geração futura; e a grande obra de Cupido, que especula, pensa e procede incessantemente, é preparar-lhe a constituição futura».

Arthur Schopenhauer («Metafísica do Amor»).


«O orientalismo de Schopenhauer é a resposta da sua inteligência às exigências, fatais mas irremediavelmente insatisfeitas, da sua vontade ocidentalista de domínio, do seu humanismo antropolátrico».


Leonardo Coimbra («A Rússia de Hoje e o Homem de Sempre»).


«Todos quantos admiramos as obras literárias de Goethe, Schiller e Novalis, todos quantos admiramos as obras científicas de Fichte, Schelling e Hegel, todos quantos admiramos as obras místicas de Eckhart, Boehme e Silésius, lamentamos que a cultura oficial alemã esteja prejudicada por demasiado apego à Terra».


Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).





O génio da espécie


Em primeiro lugar, deve-se considerar que o homem é temperamentalmente sujeito à inconstância no amor, a mulher à sua constância. O amor no homem diminui de um modo perceptível, desde o momento que obtém satisfação: dir-se-ia que todas as outras mulheres lhe oferecem mais atractivos do que aquela que ele já possui; aspira à mudança. O amor da mulher, inversamente, aumenta a partir do momento da posse. É essa uma consequência do fim da natureza que visa a conservação e portanto o maior acréscimo possível da espécie. O homem, de facto, pode facilmente gerar mais de cem crianças num ano, se tiver outras tantas mulheres à sua disposição; a mulher embora tivesse o mesmo número de maridos, não pode dar à luz mais do que uma criança nesse ano, exceptuando gémeos. Por isso, o homem anda sempre à procura de outras mulheres, enquanto a mulher permanece dedicada a um só homem; porque a natureza a condiciona pelo instinto e sem reflexão a manter para si aquele que deve alimentar e proteger a pequena família futura. Daí resulta que a fidelidade no casamento é artificial para o homem e natural para a mulher, e portanto o adultério da mulher, devido às consequências que acarreta, agindo contra a natureza, é muito menos desculpável que o do homem, tanto objectivamente, tendo em vista as suas consequências, como subjectivamente, porque é contrário a essa mesma natureza.






Quero ir ao âmago da questão e acabar de os convencer, demonstrando que o prazer proporcionado pelo outro sexo, por muito objectivo que possa parecer, não é senão instinto dissimulado, isto é, o sentido da espécie que se esforça por lhe manter o tipo. Devemos observar com detalhe e examinar mais especialmente os aspectos que nos dirigem para a obtenção desse prazer, ainda que representem algo de singular numa obra filosófica as particularidades que passamos a indicar. Estas considerações dividem-se em várias categorias: há as que dizem respeito directamente ao tipo da espécie, isto é, a beleza; há as que visam as qualidades psíquicas, e por último as que são meramente secundárias, pela sua necessidade em corrigir e em neutralizar umas pelas outras as insuficiências e as anomalias de dois indivíduos. Examinemos separadamente cada uma destas divisões.

A consideração fundamental que condiciona a nossa apetência e a nossa escolha, é a idade. Em geral a mulher que elegemos encontra-se na idade compreendida entre o fim e o começo das menstruações; damos todavia uma preferência decisiva ao período que decorre dos dezoito aos vinte e oito anos. Nenhuma mulher provocará a nossa atracção se não estiver nas condições anteriores. Uma mulher de idade, ou seja, aquela mulher já incapaz de ter filhos, só nos causa um sentimento de afastamento. Mesmo desprovida de beleza a juventude tem sempre atractivo: a beleza sem juventude não tem nenhum. – É evidente que o objectivo inconsciente que nos orienta é manifestamente a capacidade em si de ter filhos; portanto, qualquer indivíduo perde possibilidades de atracção para o outro sexo, segundo se encontra mais ou menos próximo do período próprio para a reprodução ou para a concepção. A segunda consideração é a saúde: as doenças agudas só perturbam as nossas inclinações de um modo passageiro; as doenças crónicas, as maleitas, pelo contrário, assustam ou afastam, porque se transmitem à criança. – A terceira consideração é a estrutura óssea, porque é a matriz do tipo da espécie. Depois da idade e da doença, o que mais nos afasta é uma constituição defeituosa: nem o mais belo rosto pode compensar um corpo deformado; há mais, um rosto feio num corpo normal será sempre preferido. O que se nota mais é sempre um defeito do esqueleto, por exemplo uma estatura baixa e gorda, pernas demasiado curtas, ou ainda o coxear, quando não tiver origem num acidente externo. Pelo contrário, um corpo notavelmente belo compensa muitos defeitos, encanta-nos. A extrema importância que todos atribuímos aos pés pequenos também se relaciona com estas considerações; são, efectivamente, uma característica da essência da espécie, pois nenhum outro animal tem o tarso e o metatarso reunidos tão pequenos como o homem, o que lhe proporciona a deslocação vertical; é um plantígrado. O Eclesiastes diz a este respeito (XXVI, 23, segundo a tradução correcta de Kraus): «uma mulher de corpo bem proporcionado e com bonitos pés é igual a colunas de oiro sobre socos de prata». A importância dos dentes não é menor porque servem para a alimentação e são particularmente hereditários.

A quarta consideração é uma certa abundância de carne, isto é, o predomínio da faculdade vegetativa, da plasticidade, porque promete ao feto um alimento rico: é por isso que uma grande magreza desagrada de um modo surpreendente. A plenitude dos seios exerce um fascínio considerável sobre os homens, pois relaciona-se directamente com a função geradora da mulher, proporcionando ao recém-nascido uma alimentação abundante. As mulheres excessivamente gordas provocam o nosso afastamento, porque esse estado físico é sinal de atrofia uterina, indicadora de esterilidade; não é a inteligência que o sabe, é o instinto.



Diane Kruger



A beleza do rosto é a que se considera em último lugar. É igualmente a estrutura óssea que se observa antes de mais; procura-se essencialmente um nariz bem proporcionado, ao passo que, um nariz pequeno, arrebitado, altera tudo. Uma ligeira inclinação no nariz, em cima ou em baixo, tem determinado a sorte de um sem número de mulheres, pois, com razão, se trata de conservar o tipo da espécie. Uma pequena boca, apoiada em pequenos ossos maxilares é determinante, como característica específica do rosto humano, em oposição à bocarra dos animais. A quase ausência de queixo, como se tivesse sido cortado, é nitidamente feio, visto que um queixo proeminente, mentum prominulum, é um traço característico da nossa espécie. Considera-se por último a beleza dos olhos e a face, que se relaciona com as qualidades psíquicas, essencialmente as intelectuais, que fazem parte da herança materna.

Não podemos enumerar com tanta exactidão as considerações inconscientes às quais se liga a preferência das mulheres. Eis o que se pode determinar em termos gerais: é a idade de trinta e cinco anos que elas preferem a qualquer outra, mesmo à dos mais jovens, apesar de possuírem a essência da beleza humana. A causa é serem orientadas, não pelo gosto, mas pelo seu instinto, que identifica nessas idades o apogeu da sua força genética. Na maior parte dos casos, dão pouca importância à beleza, principalmente à do rosto: como se só por elas se encarregassem de a transmitir aos filhos. É, acima de tudo, a coragem ou a força nos homens que as conquista afectivamente, porque essas qualidades são a garantia de uma geração de filhos robustos, e parecem assegurar-lhes no futuro um protector corajoso. Qualquer defeito físico do homem, qualquer desvio do tipo, pode a mulher suprimi-los na criança durante a geração, se os aspectos correspondentes da sua constituição, defeituosas no homem, são nela irrepreensíveis, ou ainda exageradas em sentido contrário. É necessário considerar apenas as qualidades do homem inerentes ao sexo masculino, e que a mãe pela sua natureza não pode transmitir por si só aos filhos; como, por exemplo, a estrutura masculina do esqueleto, uns ombros largos, as ancas estreitas, as pernas direitas, a força dos músculos, a coragem, a barba, etc. Daqui procede que as mulheres são atraídas muitas vezes por homens feios, mas nunca por homens desprovidos de qualidades viris, porque não podem neutralizar tais insuficiências.

A segunda ordem de observações relevantes no amor, diz respeito às considerações psíquicas. Indicaremos que são as qualidades de coração ou de carácter do homem que constituem a herança paterna. É, antes de mais, uma vontade determinada, a capacidade de decisão e coragem, talvez ainda a lealdade e a bondade do coração que seduzem a mulher. As qualidades intelectuais, pelo contrário não exercem sobre ela nenhuma acção directa ou instintiva, dado que o pai as não transmite aos filhos. A falta de inteligência não prejudica os homens junto das mulheres: um espírito superior, ou mesmo um génio, pela sua desproporção, têm muitas vezes um efeito contrário. Sucede com frequência um homem feio, estúpido ou grosseiro suplantar junto das mulheres um outro bem constituído, espirituoso, amável. Verificam-se, do mesmo modo, uniões bem sucedidas entre seres tão diferentes quanto é possível sob o ponto de vista das respectivas qualidades intelectuais: ele, por exemplo, brutal, robusto e estúpido; ela, meiga, impressionável, pensando elaboradamente, instruída, artista, etc; ou então ele, muito sábio, talentoso; ela alheia a tudo o que seja de natureza intelectual:


«Assim o julgou Vénus, que se comprazia com cruel alegria a subjugar ferreamente, diferentes formas e almas» (Horácio, Carmina I, 33, 10).



Sócrates e Xantipa



A razão é que os aspectos que aqui predominam nada possuem de natureza intelectual e pertencem ao domínio do instinto. No casamento, o que se tem em vista não é uma vivência espiritual, é a procriação de filhos: o casamento é uma união de corações e não de inteligências. Quando uma mulher afirma que está enamorada do espírito de um homem, é uma pretensão vaidosa e ridícula, ou porventura a exaltação de alguém degenerado. – Os homens, pelo contrário, no amor instintivo, não são determinados pelas qualidades de carácter da mulher; é por essa razão que tantos Sócrates encontraram as suas Xantipas, por exemplo Shakespeare, Albrecht, Dürer, Byron, etc. Contudo, são as qualidades intelectuais que apresentam uma grande influência, porque dependem da herança materna; mas essa capacidade de influência é excedida com facilidade pela da beleza física que actua directamente em pontos mais essenciais. Sucede, apesar disso, que muitas mães, inspiradas pela intuição ou pela experiência dessa influência, procuram ensinar às filhas as belas-artes, as línguas, etc., a fim de as tornar mais atraentes aos homens; tentam deste modo ajudar a inteligência por meios exteriores, assim como, em caso de necessidade, procurarão desenvolver fisicamente as ancas e os seios. Observemos que neste caso apenas se trata de atracção instintiva e imediata, a qual dá origem ao sentimento amoroso propriamente dito. Que uma mulher sensata e instruída aprecie a inteligência e o espírito num homem, que um homem equilibrado e reflectido valorize o carácter da mulher e o tenha em consideração, isso nada influi neste caso: procede assim a razão no casamento quando é ela que actua, mas não a paixão do amor de que nos ocupamos exclusivamente (ob. cit., pp. 30-38).


domingo, 13 de novembro de 2011

O génio da espécie (i)

Escrito por Arthur Schopenhauer







«No homem propriamente dito há qualquer coisa de não-biológico que activa o processo do sexo no momento em que atinge e movimenta o elemento físico conduzindo à fecundação. O instinto da procriação é um mito, sobretudo se o considerarmos à luz do finalismo selectivo imaginado pelos darwinistas ou por Schopenhauer. Não existe nenhuma ligação directa, isto é, vivida, entre o amor e a procriação».

Julius Evola («A Metafísica do Sexo»).


«...as necessidades da acção comum não são as mesmas para um formigueiro e para uma sociedade humana».


Henrique Bergson («A Evolução Criadora»).


«Da imitação da civilização das térmitas, o homem decadente passou à imitação da mais baixa das civilizações dos insectos: a das abelhas.

As velhas religiões conhecem sem dúvida os três estados:

As térmitas, que conservam o macho como incitador de forças numa autocracia perfeita;

As formigas, que se desinteressaram do macho para se democratizarem;

As abelhas, que suprimiram o macho e se mecanizaram totalmente.

Mais abaixo ainda estão as aranhas e os escorpiões, que devoram o macho».


Denis Saurat («A Religião dos Gigantes e a Civilização dos Insectos»).


«O socialismo é um matriarcado. Envolve, absorve e destrói as singularidades pessoais na uniformidade colectiva, como um grande seio maternal, e rodeia essa absorção de cuidados em que o Estado se imagina como uma grande mãe, providencialista, bonificadora, a todos obrigando, como as mães aos filhos, a viver em segurança: segurança contra a velhice, e substitui a família natural pelos lares da terceira idade; segurança contra a falta de habitação, e encerra toda a gente em bairros sociais a tantos metros quadrados por cabeça; segurança contra a invalidez e a doença, e cria as instituições da chamada "segurança social". Mas as coisas são o que são, e toda essa segurança matriarcal redunda em pobreza e servidão para todos. Sobre isso, redunda na mais desesperante banalidade. Banalidade, servidão e pobreza são as imagens dos países socializados. Mas o socialismo é terrível e, também, como as mulheres, tem a crueldade que foi simbolizada nas Amazonas, nas Euménides, nas Medeias, nas fúrias infernais, e assiste impávido ao cruel espectáculo da banalidade, da pobreza e da servidão a que sujeitou a sociedade dos homens».


Orlando Vitorino («Mulheres, Socialismo e Matriarcado», in A Capital de 4/11/85).





O génio da espécie




Qualquer inclinação amorosa, seja qual for a atitude etérea que afecte, tem, na realidade, todas as suas raízes no instinto sexual; e não é mesmo outra coisa senão um instinto especial, determinado, e perfeitamente individualizado. Deste modo, observemos o papel importante que o amor representa em todos os graus e em todas as fases, não só nas comédias e nos romances, mas também no mundo real, onde é, com o amor da vida, a mais poderosa e mais activa de todas as forças; ocupa continuamente as forças da parte mais jovem da humanidade, é o último fim de quase cada aspiração humana, tem uma influência perturbadora nos assuntos mais importantes, interrompe constantemente as actividades mais sérias, por vezes perturba as maiores inteligências, não tem escrúpulo em lançar as suas futilidades nos negócios de Estado e nos trabalhos dos sábios, chega até a introduzir as suas cartas meigas e as suas madeixazinhas de cabelo nas pastas dos ministros e nos manuscritos dos filósofos, não impede de ser todos os dias o causador dos piores e mais intrincados problemas -, rompe as mais preciosas relações, quebra os mais sólidos laços, torna vítimas ou a vida ou a saúde, a riqueza, a situação e a felicidade, faz do homem honesto um homem sem honra, do fiel um traidor, parece ser qual demónio hostil que se esforça por alterar, transtornar e destruir tudo; - sentir-nos-emos então prontos a gritar: Para quê tanto ruído, essa agitação, essa violência, essa angústia e essa miséria? Contudo, trata-se de uma coisa bem simples que cada um encontre a sua uma (1). Porque é que semelhante ninharia representa um papel tão importante e perturba sem cessar a vida regrada dos homens? – Mas, para o pensador consciencioso, o espírito da verdade desvenda pouco a pouco esta resposta: não se trata de uma coisa qualquer; longe disso, a importância do assunto é igual à seriedade e à violência com que é tratado. O fim último de todo o empreendimento amoroso, quer resvale na tragédia ou na comicidade, é de facto, entre as diversas finalidades da vida humana, o mais sério e o mais importante e merece a profunda atenção que todos lhe dedicam. Na realidade, esta questão é nada menos do que a constituição da geração futura.

(…) Todas as paixões amorosas da geração presente não são, portanto, para toda a humanidade, senão a séria meditação da composição da geração futura, da qual, por sua vez, dependem inúmeras gerações. De facto, não se trata, como em qualquer outra circunstância, da felicidade ou da infelicidade dos indivíduos, mas da existência e da constituição própria da humanidade futura: a vontade do indivíduo atinge, neste caso, a sua maior potência, como vontade da espécie. – É sobre este grande interesse que repousam o patético e o sublime no amor, a transcendência dos seus transportes e dos seus sofrimentos, que os poetas através dos milénios não se cansam de representar em exemplos infindos. Que outro assunto seria superior em interesse àquele que trata da felicidade da espécie? Porque o indivíduo é para a própria espécie o que a superfície dos corpos é para os próprios corpos. Eis porque se torna tão difícil motivar o interesse num drama onde se não introduza uma intriga amorosa; e, contudo, apesar da utilização no quotidiano que se lhe dá, o assunto nunca se esgota.

Quando o mero instinto sexual se manifesta na consciência de cada indivíduo de um modo vago e generalizado, sem objectivo preciso, é a vontade de viver em absoluto, exterior a todo o fenómeno, que irrompe. Quando num ser consciente o instinto do amor se apura num indivíduo, é essa mesma vontade que aspira a viver num novo ser, distinto, exacto e determinado. E, neste caso, o instinto sexual, na sua subjectividade, ilude a consciência, e sabe muito bem ocultar-se com a máscara de uma admiração objectiva, porque a natureza necessita desse estratagema para atingir os seus fins, a sua finalidade. Por muito objectiva e muito elevada que possa parecer a admiração por uma pessoa amada, a intenção é, na realidade, gerar um novo ser, determinado na sua natureza: demonstra-o com o facto de o amor não se limitar a um sentimento mútuo, mas exigir a posse, o essencial, ou seja, o prazer físico. A certeza de ser amado não poderia consolar a privação daquele que se ama; e, em semelhante caso, mais de um amante tem posto fim à sua existência. Sucede, pelo contrário, que existem indivíduos muito apaixonados que, não conseguindo ser correspondidos, se contentam com a posse, isto é, com o prazer físico.






É o que se verifica em todos os casamentos de obrigação, nos amores venais ou nos que se obtêm pela violência. Que um filho seja gerado, é esse o fim único, verdadeiro, de todo o romance de amor, embora disso os apaixonados não se apercebam: o modo e os meios para o atingir são acessórios. – As almas nobres, sentimentais, ternamente apaixonadas, podem protestar contra o áspero realismo da minha teoria; os seus argumentos não têm defesa nenhuma. Não é a constituição e o carácter preciso e determinado da geração futura, um fim infinitamente superior, infinitamente mais nobre que os sentimentos transcendentes e as suas quimeras ideais? Entre todos os fins que tem a vida humana, pode haver algum maior e mais importante? Só este explica os intensos ardores do amor, a seriedade com o qual ele se apresenta, a importância que atribui às coisas mais insignificantes que lhe dizem respeito e o condicionam. Não se deve esquecer esta finalidade, se quisermos explicar as inúmeras dificuldades, rodeios, esforços, esses tormentos sem fim visando a posse do ente que se ama, quando, em princípio, parecem tão pouco adaptados à situação. Porque é a geração futura, na sua determinação individual em absoluto, que tende para a existência através desses rodeios e desses esforços.

Sim, é ela própria que se movimenta já na selecção tão prudente, tão precisa, tão obstinada, que procura satisfazer esse instinto sexual que se chama o amor; é já a vontade de viver do novo ser, que os amantes podem e desejam gerar. Já na troca de olhares que se exprimem plenos de desejo se ilumina uma vida nova, se anuncia um futuro ser, completo e em harmonia. O desejo de uma união verdadeira, a fusão num único ser; esse ser que será gerado significará a extensão da sua própria existência e alcance da plenitude. Nele, os factores hereditários dos progenitores sobrevivem unidos. Pelo contrário, uma aversão recíproca e constante entre um homem e uma mulher resulta na impossibilidade de gerar senão um ser mal constituído, privado de harmonia interior, infeliz. O facto de Calderón descrever a impiedosa Semiramis, a quem chama uma filha do ar, como o fruto de uma violação, seguida pelo assassínio do marido, possui pois um profundo sentido.

Esta força imperiosa que atrai um para o outro, exclusivamente, dois indivíduos de sexo diferente, caracteriza a vontade de viver presente em toda a espécie: procura a realização segundo os seus objectivos na criança que esses dois seres podem gerar; terá do seu pai a vontade ou o carácter; da sua mãe, o intelecto, a constituição física provirá de ambos: as feições serão transmitidas algumas vezes pelo seu pai, a figura semelhar-se-á por vezes à da sua mãe, em conformidade com essa lei, aparente no hibridismo animal, que estabelece que o tamanho do feto se adapta ao do útero. Se é difícil explicar o carácter muito próprio e a individualidade de cada homem, não é menos difícil compreender o sentimento igualmente particular e íntimo que impele duas pessoas uma para a outra; na realidade, estes dois factores são apenas um. A paixão é implicitamente, o que a individualidade é explicitamente. O primeiro movimento para a existência, o verdadeiro punctum saliens da vida, é na realidade o instante em que os progenitores começam a amar-se – to fancy each other, como é expresso admiravelmente pelos ingleses, e, como já foi expresso, é da troca e da atracção dos seus olhares cheios de desejo que nasce o primeiro gérmen do novo ser, gérmen frágil, susceptível de desaparecer como todos os gérmens. Esse novo ser é, de algum modo, uma nova ideia platónica; e, como todas as Ideias, empregam um esforço denodado para atingir a sua manifestação no mundo dos fenómenos, ávidos de obterem a matéria favorável que a lei da causalidade lhes proporciona em partilha, assim essa ideia própria de uma individualidade humana tende com avidez e em causa extrema na sua realização fenomenal. Essa energia, essa violência, é objectivamente a paixão que os futuros pais experimentam um pelo outro. Tem graus infinitos cujos extremos poderiam ser caracterizados por “amor vulgar” e “amor divino” (Banquete, 180d-182a): - mas, quanto à própria essência do amor, é sempre a mesma e em toda a parte. Nos seus diversos graus é tanto mais forte quanto mais individualizada, ou seja, é tanto mais poderosa quanto a pessoa amada, pelas suas qualidades e pela sua constituição, é mais apta em satisfazer o desejo do amante e à necessidade que fixa a individualidade própria deste último.






O amor, na sua essência e desde o primeiro impulso, é dirigido para a saúde, para a força, para a beleza, para a juventude que é a sua expressão, porque a vontade deseja antes de tudo criar seres capazes de viver, com o carácter integral da espécie humana; o amor vulgar não vai mais longe. (…) Mas esses graus mais elevados nascem na perfeita sintonia entre dois seres, ou seja, o carácter do pai e o intelecto da mãe consumam na sua união esse ser determinado no qual a vontade de viver em si, presente em toda a espécie, experimenta o desejo; este é proporcional à grandeza da vontade e por este facto ultrapassa os limites de um coração mortal, tal como esses motivos ultrapassam a capacidade do intelecto individual. Eis pois a alma de uma grande e verdadeira paixão. Ora, quanto mais perfeita for a conveniência de dois seres em cada um dos pontos de vista a enunciar, mais forte será sua paixão mútua.

E como não existem dois indivíduos semelhantes em absoluto, todo o homem deve encontrar numa determinada mulher as qualidades em função de um ser a procriar. Quanto mais raro é esse encontro, mais raro é também o amor no qual a paixão é verdadeira. E porque cada um tem em si essa grande paixão, compreende-se a expressão que o génio dos poetas nos faz desse sentimento. Verificando-se que dessa paixão amorosa é unicamente visado o ser futuro e as qualidades que deve possuir, pode suceder que entre jovens, aliás agradáveis e bem conformados, nasça uma afinidade de sentimento, de carácter e de espírito que origine uma amizade alheia ao amor sexual; pode mesmo suceder que, sobre este último aspecto, haja entre eles uma certa aversão. Resultaria na ausência, aos filhos que deles nascessem, de harmonia intelectual ou física, e, em geral, a sua existência e a sua constituição não corresponderiam aos objectivos a que se propõe a vontade de viver no interesse da espécie. Pode suceder, pelo contrário, que apesar das incompatibilidades dos sentimentos, do carácter e do espírito, apesar da repugnância ou da aversão que provoquem, o amor sexual nasça e sobreviva, porque é cego. Se daí resultar um casamento, essa união será forçosamente infeliz.

Passemos agora a um exame mais detalhado do problema – o egoísmo possui em cada homem raízes tão profundas que a motivação pelo egoísmo é a única com a qual se pode contar seguramente para provocar a acção de um ser individual. A espécie, de facto, tem sobre o indivíduo um direito anterior, mais imediato e mais considerável que o efémero da sua individualidade. Contudo, quando se torna necessário que o indivíduo actue e se sacrifique pela sobrevivência e pelo desenvolvimento da espécie, o seu intelecto totalmente orientado para as aspirações individuais, logo que se apercebe da imperiosidade desse sacrifício, submete-se-lhe logo. Para alcançar o seu fim, torna-se necessário que a natureza ludibrie o indivíduo com uma certa ilusão, através da qual ele considere a própria felicidade no que não é, efectivamente, senão o bem da espécie; o indivíduo torna-se assim, inconscientemente, em escravo da natureza, no momento em que julga obedecer apenas aos seus desejos. Uma pura ilusão, desde logo desfeita, paira diante dos seus olhos e faz com que actue. Esta ilusão não é senão o instinto. É o instinto que, na maioria dos casos, representa o sentido da espécie, os interesses da espécie perante a vontade. Mas como a vontade se individualiza, deve ser iludida de modo a que conceba por intermédio do indivíduo o determinismo que o sentido da espécie tem sobre ela; assim, julga actuar em benefício individual, quando efectivamente apenas trabalha para a espécie, no sentido mais restrito. É no animal que o instinto representa o maior papel e que a sua manifestação exterior melhor se pode observar; mas quanto aos percursos secretos do instinto, como para tudo o que é interior, não podemos aprender a conhecê-los senão em nós mesmos. Conclui-se, é verdade, que o instinto tem pouco poder no homem, ou pelo menos que só se manifesta no recém-nascido, ao procurar apoderar-se do seio da mãe. Mas, na realidade, há um instinto muito determinado, bem evidente e principalmente muito complexo, aquele que preside à escolha tão específica, tão séria, tão íntima de um outro indivíduo tendo em vista a satisfação de uma necessidade sexual. Se apenas se ocultasse sob o prazer dos sentidos a satisfação de uma necessidade dominadora, a beleza ou a sua ausência no outro indivíduo seria diferente. A procura apaixonada da beleza, o valor que se lhe atribui, a escolha que se efectua, são alheios ao interesse próprio daquele que escolhe, embora este assim o pense mas, evidentemente ao interesse do futuro ser, no qual importa manter o mais possível integral e puro a forma humana. Na realidade, inúmeros acidentes físicos e inúmeras desgraças morais podem provocar a imperfeição nessa forma: apesar disso, é sempre de novo recuperado, graças a esse sentimento da beleza que vulgarmente dirige o instinto dos sexos, sem o qual o amor não passaria de uma necessidade revoltante.



O "Ovo do Mundo"



Estas considerações esclarecem luminosamente sobre a natureza própria de todo o instinto; como se depreende delas, o seu papel consiste quase sempre em fazer com que o indivíduo proceda para bem da espécie. Porque, evidentemente, a actividade de um insecto em procurar uma certa flor, um determinado fruto, um excremento ou um pedaço de carne, ou então, como o icneumon, a larva de outro insecto para aí depor os ovos; a indiferença com que enfrenta o trabalho e o perigo quando se trata de o conseguir, são muito semelhantes à preferência exclusiva do homem por uma certa mulher, para satisfação do instinto sexual, aquela cuja natureza própria corresponde à sua: procura-a com tão apaixonado zelo que, a despeito da razão, é mais fácil sacrificar a felicidade da sua vida do que perder o seu objectivo; não pondera perante um casamento insensato, nem perante ligações ruinosas, nem perante a desonra ou actos criminosos como o adultério ou a violação, e isto unicamente para servir a finalidade da espécie, sob a soberana lei da natureza, em detrimento do próprio indivíduo. Na generalidade, o instinto parece dirigido por uma intenção individual, embora a ela seja completamente estranha. Sempre que o indivíduo, entregue a si próprio, for incapaz de compreender os determinismos da natureza, ou por impulso lhe resista, ela provoca o instinto; eis porque este é atribuído aos animais inferiores mais desprovidos de inteligência; porém o homem não se lhe submete senão no particularismo de que nos ocupamos. Não porque o homem fosse incapaz de compreender o fim da natureza, mas não o levaria a efeito com todo o zelo necessário, mesmo à custa da sua própria felicidade. Também neste instinto, como em todos os outros, a verdade escuda-se na ilusão para agir sobre a vontade. É na ilusão da volúpia que os olhos do homem brilham perante a imagem mistificadora de uma felicidade sem medida e sem limites nos braços de alguém tão belo que, a seu ver, qualquer outra criatura humana será incapaz de igualar; outra ilusão ainda, quando imagina que a posse de um único ser no mundo lhe assegura, do mesmo modo, a felicidade suprema. Julga sacrificar ao seu próprio prazer todas as dificuldades e esforços, quando na realidade só trabalha para a conservação do tipo específico da espécie, para a procriação de um certo indivíduo perfeitamente determinado que necessita dessa união para se realizar e participar da existência. É tão característico do instinto proceder deste modo – com vista a uma finalidade que não identifica claramente –, que o homem, levado pela ilusão que o invade, por vezes se horroriza perante o fim a que está destinado, que é o da procriação dos seres; desejaria mesmo evitá-lo; é o que sucede em quase todas as ligações ilegítimas. A partir da nossa caracterização precedente da paixão, uma vez satisfeita, todo o amante experimenta uma decepção invulgar; descobre que o objecto de tanto desejo e paixão só lhe proporciona uma vulgar satisfação sexual, a que se segue um rápido desencanto. Esse desejo é comparável com outros desejos que invadem o coração do homem, tal como a espécie o é para o indivíduo, ou como o infinito é para o finito. Só a espécie, pelo contrário, aproveita da realização do desejo, mas disso o indivíduo não toma consciência; todos os sacrifícios a que se impôs, impelido pela vontade da espécie, serviram para uma finalidade que não lhe pertencia. Também todo o amante, após ter realizado a grande acção da natureza, se encontra iludido; porque a ilusão que o tornava vítima da espécie, desapareceu. Eis porque Platão disse muito bem: «O prazer é de todas as coisas a mais vã» (Filebo, 65c).

Estas considerações lançam nova luz sobre os instintos e o sentido estético dos animais. Também estes são dominados por essa faceta da ilusão que lhes oferece a imagem enganadora do seu próprio prazer, enquanto trabalham com tanto empenho e de modo tão desinteressado para a conservação da espécie: eis porque a ave constrói o ninho, o insecto procura o local ideal para a postura dos ovos, ou se entrega à caça de uma presa de que ele não aproveitará, a qual irá servir de alimento às futuras larvas e colocará ao lado dos ovos; assim é também a abelha, a vespa, a formiga, as quais trabalham nas suas engenhosas construções de acordo com a complexidade da sua economia. O que determina todos estes animais, é uma ilusão evidente que coloca ao serviço da espécie a ilusão de um interesse próprio. É esta a única explicação verosímil do fenómeno interno ou subjectivo que determina as manifestações do instinto. Mas, exteriormente, ou de modo objectivo, observamos nos animais mais sujeitos ao poder do instinto, principalmente nos insectos, o predomínio do sistema ganglionar, isto é, do sistema nervoso subjectivo sobre o sistema cerebral ou objectivo; de onde se conclui que os animais são impelidos não tanto por uma inteligência objectiva e exacta como por representações subjectivas geradoras de desejos que provêm da acção do sistema ganglionar sobre o cérebro, o que bem demonstra que se encontram sujeitos a uma espécie de ilusão: e esse será o procedimento fisiológico de todo o instinto. – Irei referir ainda outro exemplo, ainda que menos determinante, do instinto no ser humano: o apetite caprichoso da mulher grávida parece ter origem no facto de que a alimentação do embrião provoca por vezes determinadas modificações específicas do sangue que a ele aflui; deste modo, o alimento que produz esta modificação é representado de imediato no espírito da mulher grávida como objecto de vivo desejo, ainda que ilusório. É assim que a mulher possui a mais um instinto do que o homem: o sistema ganglionar é igualmente bastante mais desenvolvido na mulher. – A maior preponderância do cérebro explica porque o ser humano possui menos instinto que os animais e porque é que os seus instintos algumas vezes se desviam da norma. Assim, por exemplo, o sentido do belo que determina instintivamente a escolha tendo em vista a satisfação sexual, é nulo quando este degenera em vício contra a natureza; este caso é comparável ao da mosca azul (musca vomitoria) que, em vez de dispor os ovos segundo o seu instinto, sobre carne em decomposição, depõe-os sobre a flor do arum dracunculus iludida pelo aroma pútrido dessa planta.




A ideia de que todo o amor tem por fundamento o instinto dirigido para a reprodução da espécie ficará mais evidente se analisarmos em detalhe esse instinto que vamos ver (in Metafísica do Amor, Pequena Biblioteca, 2002, pp. 13-30).


(1) Não me atrevi a exprimir-me aqui com precisão: que a benevolência do leitor traduza pois esta frase na língua de Aristófanes (Nota do Tradutor).

Continua