quarta-feira, 8 de maio de 2019

Ensaio sobre o que é o pensamento

Escrito por Orlando Vitorino





Estátua de Aristóteles


«Estranho é também atribuir geração aos seres eternos ou antes isso é uma das coisas impossíveis. Não há necessidade de pôr em dúvida se os pitagóricos lhes atribuem ou não geração, pois claramente afirmam que, quando o uno se consolidou quer a partir de planos, quer da superfície ou de um gérmen ou de elementos que eles não são capazes de exprimir, logo a parte mais próxima do ilimitado começou a ser atraída e limitada pelo limite.»

Aristóteles Met. N 3, 1091 a 12 (DK 58 B 26).


«Parménides de Eleia, filho de Pires, foi discípulo de Xenófanes (e este, segundo Teofrasto, no seu Epítome, foi-o de Anaximadro). Mas apesar de discípulo de Xenófanes, não o seguiu. Juntou-se também, como refere Sócion, ao pitagórico Amínias, filho de Dioquetas, homem pobre mas nobre, a quem preferiu seguir. Quando Amínias morreu, Parménides, que provinha de uma ilustre família e era rico, mandou erigir-lhe um templo. Foi graças a Amínias, e não a Xenófanes, que ele se converteu à vida contemplativa… Atingiu a sua plenitude na sexagésima Olimpíada [sc. 500 a. C.]… Também se diz que estabeleceu leis para os cidadãos de Eleia, segundo refere Espeusipo na sua obra Sobre os filósofos

Diógenes Laércio IX, 21-3 (DK 28 A 1).


«Aristóteles foi durante séculos considerado o fundador da lógica, e só há poucos decénios pretenderam os eruditos destituir a sua fama de tão honroso mérito. Efectivamente, se para seu ensino exotérico Aristóteles compendiou, em livros mais conhecidos, as normas da gramática, da retórica e da dialéctica, em resultado de estudo sobre as obras dos seus antecessores, no ensino superior, ou acroamático, distinguiu as formas de pensamento apropriadas à realidade sensível e suprassensível, em termos difíceis de interpretar, exactamente porque constitutivos de uma ciência nova. A discussão deste problema de história da filosofia depende do que entendermos por lógica e por logos. Se considerarmos a lógica como uma doutrina fixa, normativa e esquemática, teremos de concluir que fora dela se situa o elemento de sensação e de inquietação que caracteriza e explica a alma humana; se, pelo contrário, soubermos ver na lógica a doutrina da modalidade mental, explicável pela finalidade das formas intelectivas, relegaremos para segundo lugar a agitação menos significante de ingredientes subjectivos no pensamento humano. Entre a lógica normal, que abstraída da gramática, da retórica e da dialéctica, regula apenas a coerência do discurso, e a lógica formal, ou morfologia das articulações intelectivas, há-de o estudioso optar como se estivesse no ponto crucial da filosofia.

Quem souber ler, com suficiente atenção, os escritos aristotélicos poderá interpretá-los como elementos dispersos de uma cerrada polémica contra todas as doutrinas da imobilidade. É certo que, nos estudos triviais, Aristóteles exige a obediência ao preceito da identidade, segundo o qual a substância do discurso, aquilo de que se fala, ou o sujeito, não deve ser alterado por qualquer processo de sofismação. Se durante o discurso esquecermos a substância, alterando ou adulterando a acepção da mesma palavra, perderemos o ponto fixo a que deveríamos articular os processos discursivos e intelectivos. Esta exigência de respeito pela memória mostra apenas que a mobilidade pressupõe um imóvel mentado, como termo de pensamento humano. Não é lícito atribuir alcance ontológico, substancialista ou substantivista, a um mero preceito útil da disciplina trivial. O sujeito do discurso não é por isso mesmo, - pode ser ou deixar de ser, - a substância real.

Aristóteles polemiza contra a doutrina da imobilidade professada por Parménides, segundo a qual o ser é uno, indiviso ou átomo. Ainda que tal fosse, seria indispensável explicar por que é que, uno na essência, seja também vário e plural nas aparências. Neste primeiro exemplo se vê o mérito de Aristóteles ao mostrar as leis da inteligência: assim, para a nossa intelecção, a unidade está sujeita à divisão espacial, e nesse caso cinde-se em dois elementos, ou está sujeita à distinção mental pela negação dialéctica que opõe o não-ser ao ser. A contradição, quer incida sobre a cópula, quer sobre o predicado, determina os extremos ou contrários. Este processo lógico de exigir o segundo elemento, ou o segundo princípio, aos fisiologistas que se contentam com a unidade da substância material, é constantemente aplicado por Aristóteles, no seu intento de explicar a manifestação, a geração e a corrupção. Assim como o sujeito nada diz, não constitui discurso, se não tiver predicado, assim a substância, ou a matéria, nada explica sem a forma.

Aristóteles polemiza também contra os filósofos que admitem a imobilidade na pluralidade finita dos seres. Assim, os números de Pitágoras, os átomos de Demócrito, as ideias de Platão, imóveis por postulado, incorruptíveis e eternas como os deuses, exigem outro princípio ou outro elemento que explique a mobilidade aparente no mundo sensível. São elementos simples, mas os compostos formam-se e configuram-se pela intervenção de outro elemento. Fixados em quadros, os números, as figuras geométricas e os substantivos designadores de ideias prestam-nos um excelente serviço mnemónico e didáctico, mas induzem-nos no erro de que o movimento é finito e consiste na deslocação. O movimento ficará reduzido à mudança de ponto para ponto, de lugar para lugar, ou de estado para estado. Contra esta noção de movimento descontínuo, relativo e exterior, protesta toda a obra de Aristóteles para demonstrar que todas as figuras resultam, afinal, de formas em contínua evolução.




Estátuas de Platão e Atenas





Descendo a série dos números inteiros, de um até dez, para estabelecer por limite a década pitagórica, é-nos possível constituir uma escala, ou uma escada, ou um trono sobre o qual outros símbolos podem ser colocados por correspondência ou conveniência. A memória há-de assim fixar pela matemática, ou pela matesiologia, os suportes indispensáveis ao esforço da lembrança e da reminiscência. Esta figuração não pode, porém, ser entendida sem estabelecer, ou restabelecer, o movimento da actividade mental que reconhece, se não pratica, as operações elementares da aritmética, e esse factor intelectivo de divisão, de dedução ou de multiplicação é já um complemento gnosiológico.

A crítica aristotélica que mais abunda de argumentos contra as doutrinas da imobilidade é aquela que incide sobre a relação das ideias de Platão com as coisas denominadas ou definidas. Efectivamente, a quantidade das ideias não poderá ser limitada pelo número se desejarmos uma correspondência com os seres produzidos por acaso, por arte ou por natureza neste mundo sublunar. As ideias não são nomes, nem classes, nem géneros. Depois, a relação entre as ideias inteligíveis e os entes sensíveis é difícil de interpretar e de entender, já que a doutrina da participação, aceitável por análoga com a predicação ética, de origem socrática, não abre caminho para o pensamento categorial, de ampla fecundidade científica.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).


«Nunca foi nem será, pois agora é como um todo, um só, contínuo. Pois que origem lhe poderás buscar? Como e donde cresceu? Não te permitirei que digas ou que penses a partir do que não é: pois é indizível e impensável o que não é; e que necessidade o teria levado a surgir mais tarde, em vez de mais cedo, se viesse do nada? Assim, força é ou que seja inteiramente, ou absolutamente nada. Nem a força da persuasão consentirá que, junto do que é, algo possa surgir alguma vez do que não é. Por isso a Justiça jamais soltou as grilhetas para lhe permitir nascer ou perecer, antes as segura firmemente. E a decisão acerca disto reside no seguinte: é ou não é. Mas decidido está, de facto, como é necessário, abandonar um dos caminhos por impensável e inexprimível (pois não é caminho verdadeiro), mas que o outro é real e autêntico. E como poderia ser no futuro o que é? Como poderia gerar-se? É que, se se gerou, não é: nem é, se alguma vez vier a ser no futuro. Assim se extingue a geração, e a destruição é coisa inaudita.»

Fr. 8, 5-21, Simplício in Phys. 78, 5; 145, 5.


«Dogmáticos e cépticos, monistas e pluralistas, concordam ao admitir o nexo da mobilidade com a sensibilidade e facilmente reconhecem que refutada uma logo fica refutada a outra. Tal era, aliás, a tendência dos filósofos gregos: negar a realidade do mundo sensível e, consequentemente, negar a realidade do movimento. Aristóteles distinguiu-se como filósofo ao querer interpretar e explicar o que os dialectas e os sofistas se contentavam com negar e refutar. A particularidade do sentido, ainda que nominada ou numerada não constitui substância ou suporte para a ciência. É, porém, um estímulo incessante para a inquietação humana, que se explica na acção exterior como na acção interior. Fora da nossa consciência, ou dentro dela, o movimento existe como realidade inegável. Movimento absoluto, afirmado ou negado pelo verbo ser, sem predicados, atributos ou epítetos, é tema inesgotável das doutrinas ontologistas. A Aristóteles interessava, porém, afirmar a existência, que é o modo de ser predicável no tempo e no espaço, e constituir aquela lógica superior que se caracteriza por afirmar a mobilidade não já do sensível, mas do inteligível, como processo único de explicar que em todos os modos de ser, humanos, naturais e divinos, a forma gera a figura. De tudo quanto fica antecedentemente exposto resulta que a filosofia de Aristóteles não poderia progredir sem prévia refutação da escola eleática.

A cidade de Eleia estava situada ao sul da costa ocidental da Itália, então Grande Grécia. Fundada por Parménides e constituída pelos seus discípulos, a escola eleática ensinava a unidade do ser e opunha-se à doutrina da pluralidade numérica, afirmada por Pitágoras de Samos. A divisão da unidade, operação intelectiva que os pitagóricos admitiam e que, na sequência racional, permitira também a divisão das figuras geométricas, para demonstração das respectivas propriedades, abria caminho para a tese da possibilidade de determinação dos fenómenos físicos e dos fenómenos da Natura. Zenão de Eleia, discípulo de Parménides, considerado pelos historiadores da filosofia como fundador da dialéctica, viveu no século V a. C. Teria cerca de 40 anos quando acompanhou seu velho mestre Parménides em viagem à cidade de Atenas, e a este facto ocorrido entre 451-459 assistiu o jovem Sócrates. Tal encontro foi proveitoso para quem aprendeu a arte de refutação dos sofistas. Zenão teria lido, copiado e meditado o poema de Parménides que tem por título Sobre a Física, mas excedeu o mestre ao revelar-se um invulgar espírito analítico no modo de examinar os argumentos da retórica brilhante e fulgurante que era usada pelos sofistas, a julgar pelos testemunhos que nos deixaram os doxógrafos tais como Platão, Aristóteles, Eudemo e Simplicius.

Zenão de Eleia ter-se-ia celebrizado por um tipo de argumentação que consistia em demonstrar a ininteligibilidade, e portanto o absurdo, do movimento. Os argumentos incidem sobre os exemplos do movimento mais simples, isto é, do movimento de deslocação. Para melhor entendimento dos seus ouvintes, Zenão de Eleia escolheu o movimento terra-a-terra, espacial, superficial, horizontal, usando de imagens perfeitamente acessíveis ao homem da rua. É o movimento ao alcance dos olhos, como no exemplo da flecha. Eros, figurado com asas, é substituído por Aquiles, o de pé leve. Como sempre, a desmitificação dá-se em proveito da evemerização, para que o celestial seja explicado pelo terreal.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).







«Por isso é justo que o que é não deva ser imperfeito; pois de nada precisa - se assim não fosse, de tudo careceria. A mesma coisa é pensar e é por isso que há pensamento. Pois, em tudo o que se disse [ou "em que o pensar está expresso"], não encontrarás o pensar sem o que é. Nada há ou haverá para além do que é, visto que o Destino o acorrentou por forma a ser um todo inamovível. Por isso tem sido chamado todos os nomes que os mortais lhe puseram, convencidos de que esses nomes eram verdadeiros - gerar-se e destruir-se, ser e não ser, mudar de lugar e alterar a cor brilhante. Mas uma vez que há um limite extremo, está completo, como a massa de uma esfera bem rotunda de todos os lados, em igual equilíbrio em todas as direcções a partir do centro. Pois força é que não seja um tanto maior ou um tanto menor num ou noutro ponto. De facto, nem há não-ser, que o impeça de atingir o seu igual, nem há ser de uma forma tal, que seja mais num lado e menos noutro, pois é todo inviolável: é que por ser igual a si mesmo por todos os lados, encontra-se uniformemente nos seus limites.»

Fr. 8, 32-49, Simplício in Phys. 146, 5.


«Para comodidade do leitor, vamos transcrever os argumentos de Zenão de Eleia, conforme o texto dado por Aristóteles no livro da Física. Urge que o estudante os apreenda e os aprenda até ao ponto de os fixar de memória para os enunciar facilmente em qualquer oportunidade de controvérsia filosófica. Antepomos aos argumentos umas paráfrases que os tornem mais inteligíveis às pessoas ainda não habituadas a tão abstractos processos de dialéctica. Devemos, porém, notar que os argumentos não são constituídos por processos de sofismação, tais como o uso de homonímias, equívocos, falsificação de definições, subterfúgios, abuso de anfibolias, etc. Zenão de Eleia, tão leal na admissão das premissas como correcto na extracção das conclusões, não infringiu de modo algum as leis do pensamento dialéctico, e não pode ser justamente apodado de sofista. A sua argumentação límpida e forte poderá causar surpresa aos desprevenidos, mas tem por fim demonstrar que um erro existe na noção pitagórica de movimento.


1.º Argumento: A dicotomia


Vemos que sempre um móvel chega ao fim do seu percurso, como, por exemplo, uma pedra mandada ou arremessada pela mão. Não poderemos, porém, prever que ele chegue ao fim do percurso, se nos detivermos a pensar que o móvel terá de passar pelo meio do espaço a percorrer, por metade do meio, e assim sucessivamente. A divisão não tem fim. Há um abismo que é impossível ao móvel transpor.


Tradução do texto de Aristóteles:


"O primeiro argumento, o argumento dicotómico, conclui a impossibilidade do movimento de que o móvel transportado há-de chegar primeiro à metade do que ao termo".


2.º Argumento: Aquiles


Vemos que um corredor mais veloz alcança sempre outro mais vagaroso. Não poderemos, porém, dizer que ele o atinge, se pensarmos que entre um e outro, há uma distância a percorrer. Aquiles, o herói de pés leves, por mais rápido corredor que seja, nunca alcançará a lenta tartaruga, que partiu à frente. A razão é a seguinte. Enquanto Aquiles chega ao ponto onde está a tartaruga, esta avança, por pouco que seja. Há sempre uma distância, uma diferença, que vai diminuindo, a favor da tartaruga. Mas como não há limite para esta diminuição, sempre Aquiles ficará atrás.


Tradução do texto de Aristóteles:


"O segundo é o argumento Aquiles. Ei-lo. O mais lento na carreira nunca será alcançado pelo mais rápido, porque aquele que persegue deve sempre alcançar o primeiro ponto de que partiu aquele que foge, com o que sempre o mais lento tem alguma vantagem. É o raciocínio idêntico ao da dicotomia, com a diferença de que a dimensão sucessivamente alcançada e dividida não o é em dois. Como na dicotomia, conclui-se que não se pode chegar ao limite, dividindo a magnitude de um ou outro modo, mas aqui acrescenta-se que o muito rápido não pode alcançar o muito lento".


3.º Argumento: A flecha


Vemos que uma flecha voa para atingir o alvo. Não poderemos, porém, dizer que ela o atinge, se pensarmos que ela ocupa sempre um espaço igual a si própria, espaço indivisível, e se o ocupa sempre, não se move. Não há movimento.

Para ocupar dois espaços sucessivos, precisaria de dois instantes: mas no primeiro está num espaço no segundo está noutro espaço. O movimento é uma ilusão.


Tradução do texto de Aristóteles:


"O terceiro argumento pretende que a flecha que voa está imóvel, consequência de supor que o tempo se compõe de instantes".

4.º Argumento: O Estádio


Vemos que dois corredores, caminhando em direcções contrárias dentro do estádio, passam um pelo outro ao mesmo tempo. Não poderemos, todavia, dizer que tal acontece, porque há uma ilusão. Efectivamente, se pensarmos que um deles corre em relação ao estádio durante certo tempo, teremos de concluir que corre em relação ao outro durante um tempo duplo. Ora o mesmo tempo do primeiro corredor é simples em relação ao estádio, ou ao estado, ou ao imóvel, e duplo em relação ao outro corredor, o que é absurdo.


Tradução do texto de Aristóteles:


"O quarto argumento, que trata de massas iguais, as quais se movem em sentido contrário ao largo de outras massas iguais, no estádio, umas partindo do fim, outras do meio, com velocidade igual, pretende deduzir a consequência de que metade do tempo é igual ao seu dobro".

Para bem interpretar as "aporias" de Zenão de Eleia, convirá ter sempre em mente que elas foram dirigidas contra a doutrina dos pitagóricos. Ao afirmar a continuidade do ser, o eleata não pode admitir que um seja dois, ou mais, isto é, que a unidade seja dividida ou divisível. A divisão será sempre contrariedade, contradição, oposição do não-ser ao ser. A dialéctica não se compadece com qualquer distinção modal ou categorial; assim se opõe também à quantidade e ao número que a determina.

Admitindo de cada vez uma hipótese contrária, com ela acertando a configuração estilística do novo argumento, Zenão de Eleia pergunta sempre como é que o móvel pode passar de um lugar para outro lugar, sem contradição. A série de lugares, estados ou estações que o móvel tem de percorrer, e que significam, aliás, estacionamentos, figura-se na escrita por uma série de letras e de espaços, ou no desenho por uma série de pontos, entre os quais existem os respectivos intervalos. Subjacente ao móvel haveria, pois, o pleno e o vazio, a impenetrabilidade e a penetrabilidade, o extenso e o inextenso, enfim, os contrários.

Acusado de admitir sucessivamente duas teses contraditórias, isto é, uma inconsequência, não se perturba, agasta ou ofende o pensador sincero que em tal advertência reconhece a chamada para terceira via de afirmação. Cumpre-lhe, por isso, manter a serenidade bastante para analisar os termos da contradição proposta pelo adversário. Assim procedeu Aristóteles na refutação de Zenão de Eleia.

Não nos competindo já apreciar a dialéctica, nem insistir em que ela torna impossível a ciência ao reduzir todas as oposições a contradições, todas as contradições à do ser e do não ser, e consequentemente, a fazer prevalecer uma ontologia, teremos de ver que na distinção modal, já indicada por Platão mas constituída por Aristóteles, está o princípio de toda a matesiologia. As noções matemáticas constituem-se já em plano superior ao da dialéctica, da retórica e da gramática, parecem infringir as normas do discurso ou da discussão, vão para além dos princípios trivialmente chamados de identidade, de contradição e de terceiro excluído. A aritmética estabelecendo a série, o progresso ou a progressão dos números, e designando por verbos as operações essenciais, representa, com muita propriedade, a primeira arte do quadrívio.

Aristóteles conhecia certamente toda a matemática do seu tempo, conforme é lícito inferir dos vestígios deixados nos livros que lhe são atribuídos. O filósofo foi, porém, mais longe do que os professores: estabeleceu os princípios lógicos da matemática segundo uma doutrina simples que se articula racionalmente em todo o seu sistema do saber. Separando os números, e as figuras geométricas para os considerar diferentes das substâncias do mundo sensível, subordina-os principalmente à categoria de relação para os estudar segundo um método que não difere radicalmente da análise moderna. As relações entre números significam ou exprimem operações. A transição do número para a figura geométrica realiza-se pelo acto de construção. O descobrimento de propriedades das figuras geométricas, e, portanto, das relações numéricas ou aritméticas implícitas, realiza-se por transição da potência ao acto, mediante uma linha que separa, ou divide, espaços confusos. Aristóteles ensina, em vários textos que conviria reunir, como é que o pensamento humano procede na construção e no desenvolvimento das ciências matemáticas, sem aceitar a ontologia dos pitagóricos, que desvaloriza o mundo sensível, e sem referir o movimento às figuras, aos ídolos ou às ideias.

Importa agora mostrar como que é Aristóteles interpreta e refuta os argumentos de Zenão de Eleia contra a inteligibilidade da deslocação ou da mudança de lugar. No livro IV da Física existe um capítulo que trata do lugar e do tempo, onde se lê:

"A dificuldade de Zenão tem de ser discutida, pois se todo o ente ocupa um lugar, também o lugar, que é um ente, ocupa um lugar, e assim sucessivamente".

Esta dificuldade é resolvida aristotelicamente pelo método de verificar as várias acepções que uma palavra pode ter ao longo do discurso. Dizer ocupa um lugar, ou está em, é um modo cuja repetição há-de concretizar-se ou determinar-se pelas sucessivas categorias. Existe um sofisma onde o progresso da expressão não corresponde ao progresso do pensamento.

No livro VI da Física expõe Aristóteles a refutação dos argumentos citados, mas a dificuldade do intérprete consiste em aceitar a nomenclatura para a tornar inteligível aos leitores que hajam sofrido as exigências da ciência moderna. Procuraremos seguir de perto o texto.

Contra o argumento da dicotomia, alega Aristóteles que o espaço e o tempo não estão infinitamente divididos, mas caracterizam-se pela sua infinita divisibilidade, o que não acontece aos outros seres. Assim o tempo tem elementos em número infinito.

"De aqui o erro de raciocínio de Zenão, quando supõe que os infinitos não podem ser percorridos sucessivamente, cada um em tempo finito. Com efeito, a extensão e o tempo, e em geral todo o contínuo dizem-se infinitos em duas acepções, seja em divisão, seja com respeito aos seres extremos. Nada há de absurdo, pois, em que se percorra o infinito em um tempo finito, e o infinito existe semelhantemente na grandeza e no tempo".

Contra o argumento de Aquiles, alega Aristóteles que ele é da mesma ordem que o antecedente, com a diferença de que no primeiro o divisor é sempre 2, de onde obteve o nome, enquanto no segundo o divisor está indefinido, porque depende da distância concedida à tartaruga. Se o encontro vier a ser um facto, porque a distância a percorrer é finita, o facto dará prova de que é ilusória a divisão do tempo e do espaço. É preciso ultrapassar ou anular os limites. Esta argumentação de Aristóteles tornar-se-á clara para quem vir a relação do finito com o infinito, que resulta da divisão. Ela pode ter representação geométrica no teorema de Tales de Mileto, que estabelece a lei das figuras proporcionais. É o triângulo de base indefinida, imagem do trono, da escada e da escala.

Contra o argumento da flecha, nega Aristóteles que o tempo seja composto de instantes. Se o tempo não é composto, não há instantes ou momentos de repouso, o que significa que o movimento é contínuo. Aristóteles teve o cuidado de definir a significação da palavra continuidade. Contínuo é aquilo que tanto se pode dividir por aqui ou por ali, visto que não tem partes nem estrutura. Além disso, há que estabelecer a distinção modal entre passar, estar e ser, já que o estado é parcial, enquanto o ser é total. A relação entre a parte e o todo não é uma relação de contrariedade, nem causa de contradição.

Contra o argumento do estádio, alega Aristóteles que seja falso que uma grandeza igual, com uma velocidade igual, se mova em um tempo igual, tanto ao longo do que é movido como ao longo do que está em repouso.

Estes dois argumentos têm de comum o mostrarem a relatividade do movimento, quer dizer, a ignorância da quietação, de qual o termo quieto, ou o ponto fixo.

A refutação aristotélica dos argumentos de Zenão de Eleia contra a inteligibilidade do movimento de deslocação assume especial importância científica por ser a mostração de um esquema representativo das aplicações da mecânica à indústria. A composição das peças de modo a facilitar a recíproca movimentação, pressupõe um ponto fixo, ou ponto de apoio, mas também a máquina se caracteriza por lhe ser exterior o princípio de movimento. A história da aplicação do mecanismo às actividades industriais e às investigações científicas regista êxitos que, pelo menos, demonstram a utilidade prática da representação pelas figuras mínimas fixadas nos seus lugares ou pela deslocação segundo uma ordem fixa e também espacial. A utilidade mnemónica deste esquema ao alcance da mentalidade pueril leva, porém, a opinião a estender para além dos domínios em que se encontra legitimamente circunscrita a abusiva intenção de deduzir geométrica ou mecanicamente todas as operações da vida e todas as estruturas da sociedade, e, mais ainda, de conduzir à dedução cronológica do processo histórico. Assim, por comparação com as séries descontínuas dos lugares, estados e estações ao longo dos quais poderemos representar-nos a deslocação de um móvel, construímos séries descontínuas de segundos, minutos, horas, dias, meses, anos, lustros, séculos, épocas, eras, etc., dentro dos quais figuramos os eventos que pretendemos narrar, interpretar e explicar. A verdade é, porém, que só o espaço foi desmitificado pela ordem geométrica e pela progressão aritmética dos pitagóricos; mas o tempo resiste a qualquer desmitificação conceitual.

A doutrina aristotélica, se admite a realidade do movimento de deslocação, que é o movimento relativo, quer dizer, da relação de um móvel com um imóvel, seja este o lugar ou o espaço, estuda-o porém numa ciência teorética de tipo matemático, metafísico ou teológico. Aristóteles reserva para a física o estudo dos seres que têm em si próprios o princípio do movimento, e quem diz princípio diz razão, causa, força, ou energia. Reagem contra a doutrina aristotélica todos quantos pretendem reduzir ao movimento de deslocação e, consequentemente, à situação privilegiada no lugar e no espaço, os movimentos reconhecidos pela física. Contra esta abstracção ou simplificação, defendem os aristotélicos a irredutibilidade das outras categorias de movimento, como a quantidade e a qualidade, para conferir inteligibilidade aos dados da observação, da experimentação e da construção.



Parthenon (Atenas).



Cada substância é, pois, dotada de vários movimentos, ou de várias categorias de movimento, que lhe permitem realizar a acção que lhe é própria. A doutrina aristotélica foi lucidamente posta em evidência por Leibniz quando este pensador, ao reagir contra o eleatismo, a dialéctica, o pitagorismo e o mecanismo dos sábios seus contemporâneos, estabeleceu a equação entre a substância e a força. Substância não é inércia. A substância não está em repouso, move-se para atingir um fim, e o carácter teleológico do movimento há-de ser mais ou menos declarado aí onde estiver latente a noção de conformidade, conveniência, valor.

Qualquer máquina, figuração singular e sensível de um mecanismo, estará subordinada ao fim preconcebido pelo constructor. As partes ou peças articulam-se para a unidade de um todo, mas coordenam-se e subordinam-se relativamente ao movimento, à força, à energia, que existe para além, ou para fora, da complexidade do engenho. A finalidade formal prevalece sobre a matéria figurativa, mensurável, resistente e fixa.

Admitamos, portanto, que movimento relativo, próprio da mecânica, facilita a representação esquemática das coisas, mas reconheçamos também que ele depende de outros movimentos, ou de movimentos de outra categoria, e concluamos que, em doutrina física, sem finalidade não pode haver inteligibilidade. Aqui se vê a semelhança da inteligência com enteléquia e teleologia. A energia, que significa acto, e a dunamis, que significa potência, completam a descrição explicativa do movimento próprio de cada ser. O movimento é já uma condição da liberdade, mas importa explicá-lo não só pela passagem através de sucessivos lugares, mas também pela aceitação dos modos de potência e acto.

Tal como o ser é dito com várias acepções, coordenáveis pelas categorias, também o agir se explicita em vários verbos que caracterizam os modos de ser das substâncias. A prioridade lógica do acto é um princípio director da doutrina aristotélica. Depois do agir consideremos o poder agir, e verificaremos também que o poder está restrito por várias acepções que são os modos. De aí a flutuação semântica entre potência e possibilidade, entre os poderosos e os possíveis. A noção de potência refuta e anula a noção de não-ser, ou de nada, ainda porque a dialéctica impugna a noção de origem. Se a substância fosse inerte, se não existisse para uma finalidade de acção ou de paixão, não observaríamos no tempo algo mais importante do que o eventual fluir, o frustrado ou logrado trânsito da potência ao acto. A finalidade esconde o tempo, mas encerra-o no seu conceito, como predicado a revelar.

O verbo passar, designativo de deslocação e significativo pela série figurativa dos lugares, não responde nem corresponde ao movimento próprio das substâncias. Ilusório será o quadro estante das idades, ou das fases, se dissermos que através dele passa identicamente o ser vivo. Mais do que ilusório, porque também erróneo e enganador, se dentro dele situarmos o ser humano. É que a doutrina do movimento, ou fisiologia, apela pelo seu complemento que é a morfologia.

Chama-se morfe, ou forma, ou alma aquela força que dentro da substância produz a série teleológica das figuras. Nunca poderá inteligir este segredo natural quem não der preferência intelectiva à cinemática da morfologia sobre a estática da anatomia, porque o estudo dos processos ascendentes de geração deve preceder o dos processos descendentes de corrupção. Já na própria gramática a morfologia significa o estudo, ou a inteligibilidade, das flexões e das variações que a palavra pode assumir. Depois na botânica a noção de metamorfose adquire primado explicativo sobre a análise, a descrição e a classificação das figuras que afinal existem por serem resultados das formas. É na antropologia, porém, que a atenção à alma, ou à forma, ou a morphe, mais clarifica e justifica a transição da potência ao acto, e a realização do acto até ao fim.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).


«Assim que Sócrates isto ouviu [a leitura que Zenão fizera do seu livro], pediu-lhe que lesse de novo a primeira hipótese do primeiro argumento. Após a leitura disse: "Que pretendes dizer com isso, Zenão? Se as coisas que existem são muitas, nesse caso força é que sejam semelhantes e dissemelhantes, o que é impossível - pois nem o que é dissemelhante pode ser semelhante, nem o que é semelhante, dissemelhante. Não é isto o que dizes?" - "Assim é", respondeu Zenão. - "Logo, se é impossível que o que é dissemelhante possa ser semelhante e o que é semelhante, dissemelhante, é também impossível que haja muitas coisas? Pois, se houvesse muitas coisas, estariam sujeitas a impossibilidades. É esta a finalidade dos teus argumentos - rebater precisamente tudo o que comummente se diz, que não há muitas coisas? E consideras tu cada um dos teus argumentos como prova desta mesma conclusão, de modo que, efectivamente, acreditas que aduzes tantas provas, de que não há muitas coisas, como os argumentos que escreveste? É isto o que dizes, ou não te estou eu a compreender correctamente?" - "Não", respondeu Zenão, "compreendeste lindamente a intenção de todo o tratado."»

Platão Parménides 127 D-128 A








«Aristóteles diz, no Sofista, que Empédocles foi o primeiro a descobrir a retórica e Zenão, a dialéctica.»

Diógenes Laércio VIII, 57 (DK 29 A 10).


«Não sabemos nós, portanto, que este eleático Palamedes argumenta com tal habilidade, que as mesmas coisas se afiguram aos seus ouvintes ao mesmo tempo semelhantes e dissemelhantes, uma só e muitas coisas, em repouso e em movimento?»

Platão, Fedro 261 D (Dk 29 a 13).


«(…) a meditação do que descrê e a assumpção da descrença, a meditação do ateísmo são momentos necessários da vida religiosa mais profunda. Esta, porém, não pode assumi-la a alma enganada e enganosa na relação com o corpo e o mundo, ou com a intuição e a razão de si inscientes, mas há-de assumir-se na relação mais funda da velada plenitude da alma e de todo o corpóreo, com o que não é, como vimos, nem alma, nem corpo, nem equívoca ou unilateral substância alguma, na união, dizemos, sempre cindida, e a todo o momento reatada, com o que se disse, onde veridicamente se disse, espírito, o qual, pelas razões expressas e a exprimir ainda, é em nós e para nós o insubstancial substante.»

José Marinho («Teoria do Ser e da Verdade»).


«Para além da razão existe a fé. Num livro de filosofia, o ponto da fé, quer dizer, de quietação e de segurança a que há-de ser referido o movimento da inteligência, nunca pode deixar de ser a existência de Deus. Há que afirmar Deus essente e existente, porque o crer ou acreditar em Deus, confiar nas suas ameaças ou nas suas promessas, implica já questões menores de arbitrária subjectividade. O ateísmo, como já foi dito, não passa de uma forma de analfabetismo, isto é, incapacidade de ler a designação e a significação de uma palavra sagrada.»

Álvaro Ribeiro («Decisão e Indecisão na Casa de Portugal»).





Ensaio sobre o que é o pensamento 


(para abertura da exposição das teses)


Chega um homem, muito velho em anos, os cabelos todos brancos, mas de postura elegante e nobre, um estrangeiro, de seu nome Parménides, vindo da cidade de Eleia, na Grande Grécia, chega e diz: “nada se move”. E o que diz é tomado a sério. Mais do que isso: dizê-lo deu origem à civilização. Como entender? Como é possível?

Quando, mais tarde, ele por sua vez já idoso, Sócrates – que foi a quem Parménides disse que nada se move – adverte Teodoro, que lhe trazia um outro estrangeiro, vindo também de Eleia, mas o qual escondeu ou guardou o nome, o adverte, dizíamos, de que se acautelasse pois nunca se sabe se um estrangeiro não é algum deus passeando-se entre os humanos, o que aconteceu ao que Parménides disse faz-nos compreender a advertência. E compreender também que, observando Teodoro ser o estrangeiro um filósofo, Sócrates tenha acrescentado que, então não seria talvez um deus, mas seria decerto divino, pois divinos são os filósofos, divina a filosofia. Milénios decorridos, o disse Pascoaes de Leonardo. A não ser assim, como entender haver chegado um homem a Atenas, haver dito que nada se move, coisa manifestamente absurda, e ser tomado a sério no momento em que, não só o disse, mas pelos séculos sem fim ter dado origem à filosofia e, com ela, à civilização?

Foi em casa de Pitodoro, em Atenas, que Parménides disse o que disse. Sócrates era ainda muito jovem, entroncado de corpo e feio de rosto. Já criara gosto e hábito de passear pelos lugares mais populosos e Santana Dionísio conta que, ao percorrer os mercados onde se ofereciam os mais deliciosos frutos dos campos e os mais cuidados produtos de arte, exclamava para consigo: “Tanta coisa há no mundo que eu não preciso!” Anos e anos correram. Lá longe, morreu Parménides, morreu Zenão que o acompanhara a Atenas e seus outros discípulos. Morreu Sócrates bebendo cicuta como o Tribunal do povo mandara em nome da democracia e da piedade pelos deuses que ainda não existiam, o mesmo Tribunal que, três séculos mais tarde, mandou crucificar Cristo em nome do falso deus. O mesmo que, ainda hoje, três milénios decorridos está sempre prestes a julgar, condenar, destruir e chamar a si o governo dos povos. Anos e anos correram pois, mais de cinquenta, contam os rigorosos, quando chegam também a Atenas, vindos de Clazomenes, cidade da Jónia no Golfo de Hermene, alguns homens que Céfalo, quem os traz, diz serem “grandes amadores da filosofia”. Vêm ouvir a narrativa do encontro em que Parménides dissera a Sócrates o que dissera. Já não é vivo nenhum dos que assistiram ao diálogo, mas Antifon, que se dedica agora à nobre arte da equitação, ouvira de Pitodoro o relato e dispõe-se de bom grado a reproduzir a Céfalo e seus amigos, palavra por palavra, o que haviam afirmado e respondido, durante longas horas, havia mais de cinquenta anos, Sócrates e também o seu companheiro Teeteto, Parménides e também seu discípulo Zenão, o dos quatro famosos argumentos, modelos de racionalidade, refutando a divisibilidade do tempo e do espaço em que se firma o movimento, resistindo a todas as críticas, continuando ainda hoje a fazer o desespero dos cientistas e fundando a dialéctica.

A Morte de Sócrates






Temos assim como Platão escreveu o que repetira a Céfalo depois de ter ouvido a Pitodoro que o escutara a quem o dissera. Quatro gerações. Quatro gerações ou a sucessão interminável dos homens? Ou acaso onde há memória não há história como Zenão dizia que não há tempo?

Não há tempo, não há espaço, nada se move… Como pode o pensamento que todos nós exercemos e com ele conhecemos a vivida realidade em que estamos envolvidos e nós próprios somos, como pode o pensamento entender? Esse pensamento que a todos os homens é dado pela mesma natureza e que, para acentuarmos como nos é natural, poderemos dizer ingénuo, como dizemos da criança ainda embalada no colo, entre os joelhos da mãe. Como pode ele entender? Esse pensamento que a soberba dos olímpicos filósofos desdenhosamente diz, não ingénuo, comum e vulgar. Ou acaso, se a filosofia é coisa séria, há vários pensamentos, várias formas ou modos de pensar, os que alcançam mais alto e os que voam rasteiro, o de todos nós, que é comum, vulgar ou ingénuo, e o da filosofia, que diremos filosófico, entre si tão diferentes como a luz e a sombra? E outros ainda, diferentes desses ambos, como o poético? Também o científico, caso este não seja um certo grau, mais complexo ou exigindo mais paciência, do pensamento ingénuo? Teremos então de concluir que o pensamento ingénuo é o dado e acessível a todos, que o pensamento poético é o dado a raros mas acessível a quase todos e que o pensamento filosófico é o dado a muito raros e a muito raros acessível? Este é todavia o que procede como o que mais importa e o de que depende, porventura deriva, não apenas todo o saber, mas até todo o real, como se comprova nisso de, vindo Parménides a Atenas, ter dito a Sócrates o que disse e daí haver surgido a civilização.

O pensamento comum resiste sempre a tamanha pretensão da filosofia o que terá retardado, para o último que surge, o aparecimento do pensamento filosófico, esse que emerge aí, no remoto diálogo com um estrangeiro muito velho em anos, de cabelos todos brancos mas de elegante e nobre figura, que vem afirmar que nada se move. Pois não se via o velho rodeado de corpos em movimento, desde os astros do céu aos vermes da terra? Não se movia ele próprio? E se o movimento é, como o mesmo pensamento filosófico afirmaria, a própria realidade, a própria vida, o mais real e o mais vivo, negá-lo não será, como viria a dizer Aristóteles, um acto de demência? Não deu ao velho a merecida e acertada resposta aquele grosseiro Diógenes, grosseiro mas a sempre celebrada figura em que o pensamento comum se revê, erguendo-se do escano e ensaiando alguns passos de cá para lá, de lá para cá, contente de si?

No entanto, Sócrates confidenciaria ter conhecido em Parménides “o mais respeitável e temível dos homens”. E Platão chamou-lhe pai, pai da filosofia, pai de todos nós, quando, ao refutar-lhe a tese imperitura, se suspeitou a si próprio de parricida.

Depois, ampliando-se, prolongando-se, repetiu-se a mesma estranheza deste exemplo primordial, a mesma sua demência, a mesma sua negação em que veio desenvolver-se o pensamento filosófico ao longo da sua já longa história, se acaso a filosofia é filha do tempo. Como compreender?

Bem vistas as coisas, não foi por dizer que nada se move que Parménides provocou o aparecimento da filosofia. Até, em rigor, não foi ele quem o disse, mas Zenão, seu discípulo, o mais falador da primeira parte do diálogo cujo relato Céfalo, vindo de Clazomenes, ouviu a Antifon, agora dedicado à arte de bem cavalgar toda a sela, o qual, Antifon, o escutara de Pitodoro, anfitrião do estrangeiro de Eleia e dos outros, entre eles Aristóteles em quem Sócrates delega substitui-lo na discussão com Parménides e que veio a ser um dos trinta tiranos de Atenas, quer dizer, um daqueles trinta homens a quem, por sua sabedoria e prudência, os atenienses entregaram, desesperados de democracia, o governo despótico mas esclarecido da cidade, entre eles fizeram de Crítias, amigo de Sócrates, irmão da mãe de Platão, Perictone, descendente de Sólon, e “sem dúvida – virá a escrever Hegel – o mais inteligente, o mais espiritual e portanto o mais perigoso e o mais odiado dos Trinta”.

Atentemos reflectidamente, como aconselha o fauno de Mallarmé. Ao dizer que nada se move, o que é manifestamente falso, Zenão tinha em vista demonstrar, como demonstrou, que mais absurdas e ridículas são as consequências de afirmar que todo o real é múltiplo do que aquelas que os que isso afirmam extraem da tese, essa sim, de Parménides, de que o real é uno, nos termos originários, de que o todo é o uno.






O cerne da questão está aí: o todo, quer dizer, tudo o que há – na expressão de Parménides: o que é – ou se compõe de múltiplos ou é uno. A primeira tese, a do pensamento ingénuo, afigura-se imediatamente confirmada na manifesta realidade vivida. A segunda, a do pensamento filosófico, afigura-se contrariar a manifesta realidade vivida. Sem reflexão, o pensamento ingénuo repudia a tese do pensamento filosófico. Ora o todo como uno não exclui o todo como composto de múltiplos, antes um e outro se implicam na medida em que um do outro carecem. Ao todo como uno é preciso abstrai-lo do todo composto e é nessa abstracção que o movimento se tem de dar por impossível como os argumentos de Zenão demonstram, pois só há movimento onde há relatividade ou relação de múltiplos entre si. Ora excluído o Uno, os múltiplos são as partes do todo que, assim composto de partes, se tem de admitir infinitamente divisível, seja na sua totalidade, seja nas formas em que essa totalidade é real, o tempo e o espaço, os corpos e a matéria que preenchem o tempo e o espaço.

Os argumentos com que Zenão, dando origem à dialéctica, negou a possibilidade de movimento num todo composto de múltiplos ou divisível em partes, constituíram sobretudo a negação da divisibilidade infinita que o pensamento ingénuo atribui – e ainda hoje é o preconceito e a finalidade da ciência moderna – ao tempo, ao espaço, aos corpos e à matéria. Com efeito, o movimento não é possível se essa divisibilidade for real: nunca o veloz Aquiles alcançará a tartaruga que partiu para a corrida com um ligeiro avanço, nunca a seta disparada do arco transporá o lugar do seu comprimento.

Assim nos encontramos numa situação paradoxal: o Uno, em sua noção, implica a exclusão do movimento, mas a multiplicidade num real infinitamente divisível torna impossível o movimento.

A situação só é, porém, paradoxal para o pensamento ingénuo. Não o é para o filosófico que vê bem o que se destina a ver: que, num todo que não seja uno, nada impediria que cada um dos múltiplos que o compõem se reconhecesse e afirmasse separado e independente, como o todo se afirma separado e independente do Uno, e não haveria então entre eles relação alguma, de deslocação ou crescimento, de alteração ou mudança, de harmonia ou contraste, de amor ou ódio, não haveria nada de comum nem de geral, nem portanto de pensamento que sempre generaliza, não haveria o movimento nem a vida que, no movimento, é o conteúdo do real. Assim, o Uno, ao mesmo tempo que em sua noção nega o movimento, o afirma e garante na realidade de que se abstraiu.

Chegados a este momento, aqui se nos revelam as duas determinações essenciais e originárias do pensamento filosófico. É, uma, a absolutização. É, outra, a cumulação de afirmar e negar.

Absolutizar é abstrair. Mas enquanto a abstracção separa uma parte do todo, a absolutização abstrai a integridade do todo, como Uno, do todo como composto de partes. O processo do pensamento filosófico consiste em absolutizar. O uno é um absoluto no qual, sendo o primeiro afirmado, se marca a origem da filosofia.

O que vimos dar-se com o Uno em relação ao movimento, se dá com qualquer absoluto que o pensamento filosófico alcança: cumulativamente nega o que afirma e afirma o que nega. E o pensamento, desenvolvendo-se por absolutização, é a garantia tanto do que afirma como do que nega, é ele mesmo constante afirmação e negação sem conhecimento, ciência ou saber feito algum em que se fixe, sem se coisificar ou no que afirma ou no que nega, sem se dar a si próprio limite ou cessação. Desse modo, é portador da liberdade e na liberdade tem sua forma, pois não conhece limite e tem seu conteúdo, pois incessante e cumulativamente nega o que afirma e afirma o que nega.

O pensamento, e só ele, é portanto o mundo do absoluto, o mundo em que o absoluto obtém a sua realidade e da qual se projecta para realidades ou mundos que não são o seu, penetrando-os e excedendo-os, transmitindo-lhes a firmeza no que são e a liberdade no que não são e espelhando-se em imagens apelativas da especulação, por isso símbolos, como a luz e a sombra, a noite e o dia, o nascer e o morrer, o rio que corre incessantemente, e corre e sempre permanece.

O Uno é o primeiro absoluto alcançado e não só historicamente. Logo lhe é solidário o Infinito, não o falso infinito da ciência ou saber feito pelo pensamento comum e ingénuo, que se diz infinito por nada obrigar a conceber-lhe um fim na sucessão do tempo e na distância do espaço, mas o verdadeiro Infinito, o que se diz tal, não por não ter limite, mas por nada haver ou ser possível fora dele, o que não tem além, o que um poeta disse alcançar-se “percorrendo todos os sentidos do finito”.






Terceiro absoluto, com os anteriores e com todos os alcançáveis solidário, é o mesmo Absoluto, esse mesmo que a absolutização implica e requer, esse que justifica, constituindo-o, o pensamento como a finalidade justifica e constitui todo o processo que a ela conduz, esse que permite dizer absolutos o Uno, o Infinito e todos os que forem ditos. É ele o mundo do pensamento coroando-se de sua majestade ou magistério, e também aí não se fixando em saber algum de si, que incessantemente possui e constantemente abandona, evitando dar-se, como certos filósofos não evitaram dá-lo, por princípio, ideia e origem donde tudo deriva, também aí, e agora referido a si próprio, não a qualquer outro real, se negando e afirmando, negando e afirmando a liberdade de que é portador, sua forma e conteúdo, pois não só a liberdade está envolta na fugacidade sem descanso do seu princípio como, absoluta pelo pensamento, do pensamento há-de receber cumulativamente e sempre a sua afirmação e a sua negação. (in Teoremas de Filosofia, n.º 11, Porto, Primavera de 2005, pp. 73-78).


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