sábado, 4 de maio de 2019

Da loucura controlada

Escrito por Carlos Castaneda









«Enquanto estávamos a almoçar, no dia seguinte, don Juan disse que Genaro tinha empurrado o meu ponto de conjunção, com a sua marcha de poder e que tinha sido capaz de o fazer, porque eu estava num estado de silêncio interior. Explicou-me que o ponto de articulação de tudo o que os videntes fazem era qualquer coisa de que ele me vinha a falar, desde o dia em que nos encontrámos: parar o diálogo interior. Salientou uma quantidade de vezes que o diálogo interior é o que mantém o ponto de conjunção fixo à sua posição inicial.

- Uma vez conseguido o silêncio, tudo é possível - disse ele.

Eu disse-lhe que estava muito consciente do facto de, em geral, ter parado de falar comigo próprio, mas não sabia como o tinha conseguido. Se me pedissem que explicasse o processo, eu não saberia o que dizer.

- A explicação é extremamente simples - disse ele. - Você quis e, dessa forma, estabeleceu uma nova intenção, uma nova ordem. Então, a sua ordem torna-se a ordem da Águia.

- Esta é uma das mais extraordinárias coisas que os novos videntes descobriram: que a nossa ordem se pode tornar a ordem da Águia. O diálogo interior pára da mesma forma que começa: por um acto de vontade. Afinal, somos forçados a falar connosco próprios por aqueles que nos ensinam. Enquanto nos ensinam comprometem a sua vontade e nós comprometemos a nossa, ambos sem o sabermos. Enquanto aprendemos a falar com nós próprios, aprendemos a manipular a vontade. Nós temos vontade de falar connosco. A forma de parar de falar connosco é usar exactamente o mesmo método: temos de ter vontade, temos de ter intenção de o fazer.

Ficámos em silêncio, por alguns minutos. Perguntei-lhe a quem é que se referia, quando dissera que nós tínhamos professores que nos ensinavam a falar connosco.

- Estava a falar do que acontece com os seres humanos, quando são crianças - replicou - uma altura em que são ensinadas, por todos os que os rodeiam, a repetir um diálogo sem fim sobre si próprias. O diálogo é interiorizado, e essa força mantém o ponto de conjunção fixo.

- Os novos videntes dizem que as crianças têm centenas de professores que lhes ensinam exactamente onde colocar o seu ponto de conjunção.

Disse-me que os videntes vêem que as crianças, a princípio, não têm o ponto de conjunção fixo. As suas emanações aprisionadas estão num estado de grande agitação, e os seus pontos de conjunção mudam para qualquer lugar da faixa humana, dando às crianças uma grande capacidade de focalização das emanações que, mais tarde, serão completamente menosprezadas. Então, quando crescem, os seres humanos mais velhos, à sua volta, através do seu considerável poder sobre eles, forçam os pontos de conjunção das crianças a ficarem mais estáveis, por meio de um diálogo interior progressivamente mais complexo. O diálogo interior é um processo que fortalece, constantemente, a posição do ponto de conjunção, porque essa posição é arbitrária e necessita de reforço constante.

- O importante é que muitas crianças vêem - continuou. - Muitas das crianças que vêem são consideradas esquisitas e são envidados todos os esforços para as levar a consolidar a posição dos seus pontos de conjunção.

- Mas será possível encorajar as crianças a manter os seus pontos de conjunção mais fluidos? - perguntei.

- Só se viverem entre os nossos videntes - disse ele. - De outra forma, seriam apanhadas, como aconteceu com os antigos videntes, nas complexidades do lado silencioso do homem. E, pode crer, isso é pior que ser apanhado nas garras da racionalidade.












(…) Perguntei-lhe que outros organismos eram capazes de deslocar os seus pontos de conjunção.

- Podem deslocar os seus pontos - disse ele, - mas a deslocação não é uma coisa voluntária neles.

- O ponto de conjunção dos outros organismos também é treinado para aparecer onde aparece? - perguntei.

- Todos os organismos recém-nascidos são treinados, de uma forma ou de outra - replicou. - Podemos não compreender como se processa o treino, afinal, nem sequer percebemos como se processa em nós, mas os videntes vêem que os recém-nascidos são coagidos a fazer o que a sua espécie faz. É precisamente o que acontece com as crianças humanas: os videntes vêem os seus pontos de reunião mudarem para todos os lados e, depois, vêem como a presença dos adultos prende cada ponto na sua área. Acontece o mesmo com todos os organismos.

Don Juan pareceu reflectir por um momento e, então, acrescentou que, de facto, havia um efeito único que o ponto de conjunção do homem tem. Apontou para uma árvore lá fora.

- Quando nós, como seres humanos adultos e sérios, olhamos para aquela árvore - disse ele, - os nossos pontos de reunião alinham um número infinito de emanações e alcançam um milagre. Os nossos pontos de conjunção fazem-nos perceber um grupo de emanações a que chamamos árvore.

Explicou que o ponto de conjunção não afecta somente o alinhamento necessário para a percepção, como também impede o alinhamento de certas emanações, de forma a chegar a um maior refinamento da percepção, uma depuração, uma engenhosa construção humana, sem paralelo.

Disse que os novos videntes tinham observado que só os seres humanos eram capazes de agrupar, novamente, os grupos de emanações. Usou a palavra espanhola "desnate", para descrever o acto de separar a nata mais saborosa da superfície de uma vasilha de leite fervido, depois de arrefecer. Do mesmo modo, em termos de percepção, o ponto de conjunção do homem fica com uma parte das emanações já seleccionadas para alinhamento e faz com elas uma construção mais agradável.

- As desnatações do homem - continuou don Juan, - são mais reais do que aquilo que as outras criaturas percebem. Essa é a nossa armadilha. São tão reais para nós, que nos esquecemos que as construímos, ordenando os nossos pontos de conjunção que apareçam onde aparecem. Esquecemos que são reais para nós, só porque a nossa ordem é percebê-las como reais. Temos o poder de desnatar o melhor dos alinhamentos, mas não temos o poder para nos protegermos das nossas próprias ordens. Isso tem de ser aprendido. Dar total liberdade às nossas desnatações, como nós damos, é um erro de julgamento, que pagamos tão caro quanto os antigos videntes pagaram pelos seus.»

Carlos Castaneda («O Fogo Interior»).


«O movimento virtual da alma infantil irá casar-se com os movimentos que o despertem. E, como a alma é uma harmonia opulenta e heróica, variados ritmos a podem abalar.

A ressonância com os movimentos de Beleza e Unidade lança-a no caminho da elevação, a ressonância com movimentos artificiais arremessa-a para o caos, para a barbaria primitiva.

A primeira educação deve ser artística, e as próprias virtudes morais só podem ser dadas à criança pelas implícitas intimações de harmonia estética.»

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).









« - Como é ver, Don Juan?

- Tens de aprender a ver para saber isso. Não posso dizer-to.

- É um segredo que eu não posso conhecer?

- Não. É que não consigo descrever-to.

- Porquê?

- Não faria sentido para ti.

- Experimente, Don Juan. Talvez faça sentido para mim.

- Não. Tens que fazê-lo tu próprio. Quando aprenderes, passarás a ver todas as coisas do mundo de uma forma diferente.

- Então, Don Juan, o senhor já não vê o mundo da maneira habitual.

- Eu vejo de ambas as maneiras. Quando olho para o mundo, vejo-o da mesma forma que tu. Depois, quando quero vê-lo, olho para ele da maneira que conheço e capto-o de uma forma diferente.

- As coisas parecem-lhe ser as mesmas quando as ?

- As coisas não mudam. Nós é que mudamos a forma de as ver, só isso.

- Quero dizer, Don Juan, que se vir, por exemplo, a mesma árvore, ela continua a ser a mesma cada vez que a ?

- Não. Muda, sem deixar de ser a mesma.

- Mas se a mesma árvore muda de cada vez que a , ver poderá ser uma mera ilusão.

Ele riu-se e não respondeu durante algum tempo, mas pareceu-me que estava a pensar. Finalmente disse: - Quando olhamos para as coisas, não as vemos. Só olhamos para elas, suponho eu, para nos certificarmos de que tudo está lá. Como não estamos preocupados em ver, as coisas parecem-nos sempre as mesmas, cada vez que olhamos para elas. Quando aprendemos a ver, por outro lado, uma coisa nunca é a mesma cada vez que a vemos, e, no entanto, é sempre a mesma. Eu disse-te, por exemplo, que um homem parece um ovo. Cada vez que vejo o mesmo homem, vejo um ovo, mas não é o mesmo ovo.

- Mas não consegue reconhecer coisa alguma, visto que nada é o mesmo; então qual é a vantagem de aprender a ver?

- Podemos distinguir as coisas. Podemos ver como elas realmente são.

- Eu não vejo as coisas como elas realmente são?

- Não. Os teus olhos só aprenderam a olhar».

Carlos Castaneda («Conversas com Don Juan - Para além da realidade»).







Da loucura controlada


Voltei a casa de Don Juan no dia 3 de Outubro de 1968, com o único fito de lhe fazer perguntas acerca dos factos que rodeavam a iniciação de Eligio. Tinha-me ocorrido uma torrente quase interminável de perguntas, ao reler o relato do que se havia passado. Procurava explicações muito exactas, pelo que fiz antecipadamente uma lista das perguntas, escolhendo cuidadosamente as palavras mais adequadas.

Comecei por perguntar-lhe:

- Eu vi nessa noite, Don Juan?

- Quase viste.

- O senhor viu que eu estava a ver os movimentos de Eligio?

- Sim. Eu vi que Mescalito estava a permitir-te que visses parte da lição de Eligio, caso contrário terias estado a olhar para um homem sentado, ou talvez deitado. Durante o último mitote, não deste por os homens fazerem nada, pois não?

No último mitote, eu não tinha notado que qualquer dos homens fizesse movimentos fora do normal. Disse-lhe que apenas podia dizer com segurança que tinha notado que alguns deles se levantavam e iam até os arbustos mais vezes do que outros.

- Mas quase viste toda a lição de Eligio - prosseguiu Don Juan. - Pensa nisso. Compreendes agora como Mescalito é generoso para contigo? Mescalito nunca foi tão gentil com pessoa alguma, que eu saiba. Nem uma. E, no entanto, tu não mostras apreço pela sua generosidade. Como podes voltar-lhe as costas tão indelicadamente? Ou talvez devesse perguntar-te em troca de quê voltas as costas a Mescalito?

Senti que Don Juan estava a encurralar-me de novo. Não sabia responder às suas perguntas. Sempre tinha acreditado que desistira da aprendizagem para me salvar, mas não fazia ideia daquilo de que estava a salvar-me ou para quê. Queria mudar rapidamente a direcção da nossa conversa e, para esse fim, abandonei a minha intenção de continuar a fazer toda as minhas perguntas pré-calculadas e dirigi-lhe a minha pergunta mais importante.

- Gostaria que me falasse mais da sua loucura controlada - disse.

- Que queres saber a esse respeito?

- Por favor diga-me, Don Juan, o que é exactadamente a loucura controlada?

Don Juan soltou uma ruidosa gargalhada e bateu na coxa com a mão, de uma forma sonora.

- Isto é uma loucura controlada! - disse, rindo-se e batendo de novo na coxa.

- O que quer dizer?...

- Estou satisfeito por me teres perguntado pela minha loucura controlada, ao fim de tantos anos, embora não tivesse tido a mínima importância que não perguntasses. Todavia, decidi ficar satisfeito, como se me importasse, por teres perguntado, como se tivesse importância que eu me interessasse. Isso é loucura controlada!

Ambos nos rimos muito alto. Abracei-o. Achara a sua explicação deliciosa, embora não a compreendesse perfeitamente.






Estávamos sentados, como era habitual, no espaço em frente da porta da sua casa. A manhã ia a meio. Don Juan tinha na sua frente uma pilha de sementes e estava a separar os detritos misturados com elas. Tinha-me oferecido para o ajudar mas ele recusara; disse-me que as sementes eram uma oferta de um dos seus amigos do México central e eu não tinha poder suficiente para lhes tocar.

- Com quem exercita a loucura controlada, Don Juan? - perguntei, ao fim de um longo silêncio.

Ele riu-se.

- Com toda a gente! - exclamou, sorrindo.

- Então quando decide exercitá-la?

- Todas as vezes que actuo.

Achei que devia recapitular, nesse ponto, e perguntei-lhe se a loucura controlada significava que os seus actos nunca eram sinceros, mas apenas representações.

- Então tudo o que faz deve ser loucura controlada! - disse eu, verdadeiramente surpreendido.

- Sim, tudo - respondeu ele.

- Mas não pode ser verdade - protestei - que cada um dos seus actos seja apenas loucura controlada.

- Porque não? - respondeu ele, com um olhar misterioso.

- Isso significaria que nada lhe interessa e não se preocupa com coisa alguma ou com alguém. Eu, por exemplo. Quer dizer que não lhe interessa que eu me torne ou não um homem de saber, ou que eu viva ou morra, ou faça seja o que for?

- É verdade! Não me interessa. Tu és, como Lucio, ou como todas as outras pessoas da minha cidade, a minha loucura controlada.

Experimentei uma peculiar sensação de vazio. Obviamente não existia uma única razão para que Don Juan devesse preocupar-se comigo, mas, por outro lado, tinha quase a certeza de que se interessava pessoalmente por mim; achava que não poderia ser de outra forma, visto que ele sempre me prestara toda a sua atenção durante todos os momentos que eu passara com ele. Ocorreu-me que talvez Don Juan estivesse apenas a dizer aquilo por estar aborrecido comigo. Afinal, eu tinha abandonado os seus ensinamentos.

- Tenho a impressão de que não estamos a falar da mesma coisa - disse eu. - Talvez não devesse ter usado a minha pessoa como exemplo. Mas só queria dizer que deve haver alguma coisa no mundo por que se interesse de uma forma que não seja loucura controlada. Não acho possível que continue a viver se nada lhe interessar verdadeiramente.

- Isso é o teu caso - disse ele. - As coisas são importantes para ti. Quiseste saber da minha loucura controlada e eu disse-te que tudo o que eu faço em relação a mim e aos meus semelhantes é loucura, porque nada interessa.

- E eu pergunto, Don Juan, se nada lhe interessa, como pode continuar a viver?









Ele riu-se e, após uma pequena pausa, em que pareceu decidir se deveria ou não responder-me, pôs-se de pé e dirigiu-se às traseiras da casa. Segui-o.

- Espere, espere, Don Juan - disse eu. - Eu quero mesmo saber; tem que explicar-me o que quer dizer.

- Talvez não seja possível explicar - disse ele. - Certas coisas da tua vida interessam-te porque são importantes para ti, mas para mim já não há uma única coisa que seja importante, nem os meus actos, nem os actos de qualquer dos meus semelhantes. Continuo a viver, no entanto, porque tenho a minha vontade. Porque temperei a minha vontade durante toda a minha vida até ela ser nítida e perfeita, e agora não me interessa que nada me interesse. A minha vontade controla a loucura da minha vida.

Acocorou-se e passou os dedos por umas ervas que tinha posto a secar ao Sol sobre um pedaço de saca.

Eu estava desorientado. Nunca poderia ter previsto a direcção que a minha investigação tomara. Após uma longa pausa, pensei num bom ponto de vista. Disse-lhe que, em minha opinião, alguns dos actos dos meus semelhantes tinham suprema importância. Apontei-lhe que a guerra nuclear era decididamente um exemplo dramático de um desses actos. Disse-lhe que, para mim, destruía a vida à superfície da Terra, era um acto de espantosa enormidade.

- Tu acreditas nisso porque estás a pensar. Estás a pensar na vida - disse Don Juan com um brilho nos olhos. - Não estás a ver.

- Sentiria de forma diferente se pudesse ver? - perguntei.

- Quando um homem aprende a ver, encontra-se sozinho no mundo, sem nada excepto a loucura - disse Don Juan de uma forma críptica.

Deteve-se, por um momento, e olhou para mim como se quisesse avaliar o efeito das suas palavras.

- Os teus actos, tal como os actos dos teus semelhantes em geral, parecem-te importantes, porque aprendeste a pensar que são importantes.

Utilizava a palavra «aprendeste» com uma inflexão tão peculiar que me forçou a perguntar-lhe o que queria dizer.

Ele deixou de mexer nas suas plantas e olhou para mim.

- Nós aprendemos a pensar em tudo - disse e depois treinamos os nossos olhos para olharem para as coisas tal como pensamos nelas. E, por isso, temos que nos sentir importantes! Mas depois, quando um homem aprende a ver, apercebe-se que já não pode pensar nas coisas para que olha, e, se não conseguir pensar nas coisas para que olha, tudo perde a importância.

Don Juan deve ter notado o meu olhar surpreendido e repetiu as suas declarações três vezes, como para me fazer compreendê-las. O que ele estava a dizer pareceu-me incoerente, a princípio, mas, depois de pensar no assunto, as suas palavras pareceram-me uma sofisticada afirmação acerca de uma faceta da percepção.









Tentei pensar numa boa pergunta que o fizesse esclarecer o seu ponto de vista, mas não me lembrei duma única. Subitamente, senti-me exausto e não conseguia pensar claramente.

Don Juan pareceu notar a minha fadiga e deu-me uma palmadinha no ombro.

- Limpa estas plantas - disse - e depois parte-as em pedaços, cuidadosamente, para dentro deste boião.

Entregou-me um grande boião de café e partiu.

Regressou a casa horas depois, ao fim da tarde. Eu já tinha acabado de partir as plantas e tivera tempo de sobra para escrever as minhas notas. Queria fazer-lhe logo algumas perguntas, mas ele não estava com disposição para me responder. Disse que estava cheio de fome e tinha que preparar a comida primeiro. Acendeu o lume no seu forno de terra e colocou sobre ele uma panela de caldo de osso. Olhou para o saco de mercadorias que eu trouxera e retirou alguns legumes, cortou-os em pequenos pedaços e deitou-os na panela. Depois deitou-se na sua esteira, atirou fora as sandálias, e disse-me que me sentasse ao pé do lume, para o ir alimentando.

Estava quase escuro; donde estava sentado, podia ver o céu a ocidente. Os rebordos de algumas densas formações de nuvens estavam coloridas de uma cor de camurça escura, enquanto o centro das nuvens permanecia quase negro.

Ia fazer um comentário acerca da beleza das nuvens, mas ele falou primeiro.

- Rebordos macios e centro denso - disse ele, apontando para as nuvens.

A sua declaração tinha vindo de tal forma a propósito, que me sobressaltou.

- Eu ia mesmo falar-lhe das nuvens - disse eu.

- Então ganhei-te - disse ele, rindo-se com um abandono infantil.

Perguntei-lhe se já estava com disposição para responder a algumas perguntas.

- O que queres saber? - respondeu ele.

- O que me disse esta tarde acerca da loucura controlada perturbou-me muito - disse eu. - Não consigo compreender o que quis dizer.

- É claro que não consegues compreender - disse ele. - Tu estás a tentar pensar no assunto, e aquilo que eu disse não se ajusta aos teus pensamentos.

- Estou a tentar pensar nisso - disse eu porque é a única forma de eu pessoalmente conseguir compreender alguma coisa. Por exemplo, Don Juan, quis dizer que, quando um homem aprende a ver, tudo o que existe no mundo inteiro perde o valor?

- Eu não disse que perdia o valor. Disse que não era importante. Tudo é igual e, por isso, não importante. Por exemplo, não tenho maneira de dizer que os meus actos são mais importantes do que os teus, ou que uma coisa é mais essencial do que outra, portanto todas as coisas são iguais e, sendo iguais, não são importantes.






Perguntei-lhe se as suas declarações eram um pronunciamento de que aquilo a que ele chamava «ver» era, efectivamente, uma «melhor maneira» do que simplesmente «olhar para as coisas». Disse que os olhos dos homens podiam desempenhar ambas as funções, mas nenhuma delas era melhor que a outra; no entanto, treinar os olhos para olhar era, na sua opinião, uma perda desnecessária.

- Por exemplo, precisamos de olhar com os olhos para rir - disse - porque, só quando olhamos para as coisas podemos captar a parte divertida do mundo. Por outro lado, quando os nossos olhos vêem, tudo é tão igual que nada é divertido.

- Quer dizer, Don Juan, que um homem que nunca se pode rir?

Ele ficou silencioso durante longo tempo.

- Talvez haja homens de saber que nunca riem - disse. - No entanto, não conheço nenhum assim. Aqueles que eu conheço vêem mas também olham, por isso riem.

- Um homem de saber também chora?

- Suponho que sim. Os nossos olhos olham, por isso podemos rir, ou chorar, ou alegrar-nos, ou estarmos tristes, ou estarmos felizes. Pessoalmente não gosto de estar triste, por isso, quando assisto a alguma coisa que normalmente me deixaria triste, limito-me a modificar o olhar e a vê-la em vez de olhar para ela. Mas quando deparo com alguma coisa divertida, olho e rio-me.

- Mas então, Don Juan, o seu riso é real e não loucura controlada.

Don Juan olhou-me por um momento.

- Eu falo contigo porque me fazes rir - disse ele. - Recordas-me aqueles ratos do deserto de rabo peludo que ficam presos quando metem as caudas nos buracos para tentar assustar outros ratos, para lhes roubar a comida. És apanhado pelas tuas próprias perguntas. Toma cuidado! Às vezes esses ratos chegam a arrancar as caudas para tentar libertar-se.

Achei esta comparação divertida e ri-me. Don Juan tinha-me mostrado, em tempos, uns pequenos roedores com caudas peludas que pareciam esquilos gordos; a imagem de um desses ratos gordos a arrancar a cauda era triste e, ao mesmo tempo, morbidamente divertida.

- O meu riso, como tudo o resto que eu faço, é real - disse ele - mas também é loucura controlada porque é inútil; não muda nada e, no entanto, eu faço-o na mesma.

- Mas, em minha opinião, Don Juan, o seu riso não é inútil. Fá-lo feliz.

- Não! Eu fico feliz porque decido olhar para as coisas que me fazem feliz e depois os meus olhos captam o seu aspecto divertido e rio-me. Já te disse isto inúmeras vezes. Devemos sempre escolher o caminho com prazer para nos sentirmos o melhor possível, talvez para podermos rir sempre.

Interpretei o que ele dissera como querendo dizer que chorar era inferior a rir, ou, pelo menos, talvez um acto que nos enfraquecia. Ele afirmou-me que não existia uma diferença intrínseca e que ambos eram importantes; disse, no entanto, que preferia o riso, porque o riso fazia com que o seu corpo se sentisse melhor do que quando chorava. Nessa altura, sugeri que, quando se tem uma preferência, não é tudo igual; se ele preferia o riso ao choro, o primeiro era efectivamente mais importante.















Insistiu teimosamente em que a sua preferência não queria dizer que não fossem iguais; e eu insisti em que a nossa discussão poderia ser logicamente alargada à afirmação de que, se todas as coisas eram iguais, porque não escolher a morte?

- Muitos homens de saber o fazem - disse ele. - Um dia, desaparecem simplesmente. Há quem pense que eles sofreram uma emboscada e foram mortos por causa dos seus actos. Eles escolhem morrer porque isso não lhes interessa. Por outro lado, eu escolho viver, e rir, não porque isso interesse, mas porque essa escolha é a inclinação da minha natureza. A razão porque digo que escolho é porque vejo, mas não é por isso que escolho viver; a minha vontade faz-me continuar a viver, apesar de tudo o que possa ver.

Tu não me compreendes agora por causa do teu hábito de pensar como olhas e olhar como pensas.

Esta declaração intrigou-me muito. Pedi-lhe que me explicasse o que queria dizer com aquelas palavras.

Ele repetiu a mesma frase diversas vezes, como se estivesse a dar a si próprio tempo para a elaborar em termos diferentes, e depois explicou-se, dizendo que por «pensar» se referia à ideia constante que temos de tudo no mundo. Disse que «ver» afastava esse hábito e, até eu aprender a «ver», não poderia compreender o que ele queria dizer.

- Mas, se nada importa, Don Juan, porque haveria de importar que aprenda a ver?

- Já te disse uma vez que o nosso destino, como homens, é aprender, para o bem ou para o mal - disse ele. - Eu aprendi a ver e digo-te que nada interessa realmente; agora é a tua vez; talvez um dia vejas e saberás então se as coisas importam ou não. Para mim, nada interessa, mas talvez para ti interesse. Já devias saber, nesta altura, que um homem de saber vive agindo, não pensando em agir. Um homem de saber escolhe um caminho com entusiasmo e segue-o; e depois olha e alegra-se e ri; e depois e sabe. Sabe que a sua vida terminará cedo de mais; sabe que ele, como toda a gente, não vai para parte alguma; sabe, porque , que coisa alguma é mais importante do que qualquer outra. Por outras palavras, um homem de saber não tem honra, nem dignidade, nem família, nem nome, nem pátria, apenas a sua vida para viver, e, nessas circunstâncias, a sua única ligação com os outros é a sua loucura controlada. Assim, um homem de saber trabalha, sua e resfolega, e, se alguém olhar para ele, é igual a qualquer outro homem, só que a loucura da sua vida está sob controlo. Nenhuma coisa sendo mais importante do que outra, o homem de saber escolhe cada acto, e executa-o como se ele o interessasse. A sua loucura controlada fá-lo dizer que aquilo que faz tem importância e faz com que ele aja como se tivesse, embora ele saiba que não tem; por isso, depois de cumprir os seus actos, ele retira-se em paz, e, se os seus actos são bons ou maus, resultaram ou não resultaram, são coisas que não lhe interessam.

Um homem de saber pode escolher, por outro lado, permanecer totalmente impassível e nunca agir, e comportar-se como se estar impassível tivesse realmente importância para ele; também será verdadeiro em relação a isso, porque isso também será a sua loucura controlada.

Nessa altura envolvi-me num esforço muito complicado, com o fim de explicar a Don Juan que estava interessado em saber o que motivaria um homem de saber a actuar de uma determinada forma, apesar de saber que nada interessava.

Ele riu-se mansamente antes de responder.

- Tu pensas nos teus actos - disse. - Por isso tens que acreditar que os teus actos são tão importantes como tu pensas que são, quando, na realidade, nada do que fazemos é importante. Nada! Mas, então, se nada interessa realmente, como me perguntaste, como posso continuar a viver? Seria simples morrer; é o que tu dizes e crês, porque estás a pensar na vida, tal como estás a pensar agora em como será ver. Querias que to descrevesse, para poderes começar a pensar nisso, da mesma forma por que fazes com tudo o mais. No caso de ver, não posso dizer-te como é ver. Queres que te descreva as razões da minha loucura controlada e eu só posso dizer-te que a loucura controlada é mais ou menos como o ver; é uma coisa em que não se pode pensar.

Bocejou. Estendeu-se de costas e estendeu os braços e as pernas. Os seus ossos estalaram.






















- Estiveste longe de mais - disse. - Pensas de mais.

Pôs-se de pé e dirigiu-se à espessa mata ao lado da casa. Eu alimentei o lume para manter a panela a ferver. Pensei em acender a lanterna de querosene, mas a semiobscuridade era muito tranquilizante. O fogo do forno, que fornecia luz suficiente para escrever, também criava um clarão avermelhado à minha volta. Pousei as minhas botas no chão e estendi-me. Sentia-me cansado. De toda a conversa com Don Juan, a única coisa acerba na minha mente era o facto de ele não se interessar por mim; perturbava-me terrivelmente. Durante vários anos tinha depositado nele a minha confiança. Se não sentisse total confiança nele, ficaria paralisado de medo perante a hipótese de aprender o seu saber; a premissa em que tinha baseado a minha confiança era a ideia de que ele se interessava pessoalmente por mim; na realidade, sempre sentira medo dele, mas tinha controlado o meu medo porque confiava nele. Quando ele me retirou essa base, fiquei sem ter onde me apoiar e senti-me indefeso.

Invadiu-me uma estranha ansiedade. Fiquei extremamente agitado e comecei a passear de um lado para o outro, diante do fogão. Don Juan estava a levar muito tempo. Esperei por ele impacientemente.

Regressou algum tempo depois; sentou-se de novo diante do fogo e eu dei vazão aos meus receios. Disse-lhe que estava preocupado porque era incapaz de mudar de direcção a meio da corrente; expliquei-lhe que, em conjunto com a confiança que tinha nele, tinha também aprendido a respeitar e a considerar a sua maneira de viver como intrinsecamente mais racional, ou, pelo menos, mais racional do que a minha. Disse-lhe que as suas palavras me tinham mergulhado num conflito terrível porque tinham como consequência que eu tivesse que alterar os meus sentimentos. Para ilustrar o meu ponto de vista, contei a Don Juan a história de um velho, da minha cultura, um advogado muito rico e conservador, que vivera a sua vida convencido de que era detentor da verdade. No início dos anos trinta, com o advento do New Deal (1), encontrara-se apaixonadamente envolvido no drama político dessa época. Estava categoricamente seguro de que a mudança seria prejudicial ao país, e, por dedicação à sua maneira de viver e pela convicção de que estava certo, fez um voto de lutar contra aquilo que pensava ser um mal político. Mas a maré dos tempos era forte de mais, e esmagou-o. Lutou durante dez anos contra ela na arena política e no reino da sua vida pessoal: depois da II Guerra Mundial transformou os seus esforços numa derrota total. A sua queda política e ideológica provocou-lhe uma profunda amargura; auto-exilou-se durante vinte e cinco anos. Quando o conheci, tinha oitenta e quatro anos e tinha regressado à sua cidade para passar os seus últimos anos num lar de idosos. Pareceu-me inconcebível que ele tivesse vivido tanto tempo, considerando a forma por que desperdiçara a sua vida na amargura e na autocompaixão. Não sei porquê, achou a minha companhia agradável, e costumávamos ter longas conversas.

Na última vez em que o vira, tinha concluído a nossa conversa com as seguintes palavras: «Tive tempo para olhar para trás e examinar a minha vida. Os acontecimentos do meu tempo não passam hoje de uma história; nem sequer uma história interessante. Talvez eu tenha desperdiçado anos de vida em busca de algo que nunca existiu. Tive ultimamente a sensação de que eu acreditava em algo que não passava de uma farsa. Não valia os meus esforços. Penso que sei disso. No entanto, não posso recuperar os quarenta anos que perdi.

Disse a Don Juan que o meu conflito surgira das dúvidas que as suas palavras sobre a loucura controlada me tinham provocado.

- Se nada interessa verdadeiramente - disse eu - depois de uma pessoa se tornar um homem de saber, encontra-se, forçosamente, tão vazio como aquele meu amigo e numa situação não muito melhor.

- Isso não é assim - disse Don Juan de forma cortante. - O teu amigo sente-se solitário porque vai morrer sem ver. Na sua vida foi envelhecendo e agora deve sentir mais autocompaixão do que nunca. Sente que desperdiçou quarenta anos porque andou atrás de vitórias e só encontrou derrotas. Nunca saberá que ser vitorioso e ser derrotado são coisas iguais.

Portanto, agora tens medo de mim porque eu te disse que és igual a tudo o resto. Estás a ser infantil. A nossa missão como homens é aprender e parte-se para o conhecimento como se parte para a guerra; já te disse isso inúmeras vezes. Parte-se para o saber ou para a guerra com medo, com respeito, com a consciência de que se vai para a guerra e com absoluta autoconfiança. Põe a tua confiança em ti mesmo, não em mim.

Com que então tens medo do vazio da vida do teu amigo. Mas não há vazio na vida de um homem de saber, digo-te eu. Tudo está cheio até à beira.










Don Juan pôs-se de pé e estendeu os braços, como se apalpasse coisas no ar.

- Tudo está cheio até à beira - repetiu ele - e tudo é igual. Eu não sou como o teu amigo que apenas envelheceu. Quando te digo que nada interessa, não o digo da mesma forma que ele. Para ele, a sua luta não valeu a pena, porque foi derrotado; para mim não há vitória, nem derrota, nem vazio. Tudo está cheio até à beira e tudo é igual e a minha luta valeu a pena.

Para nos tornarmos homens de saber, precisamos de ser guerreiros, não crianças choramingas. Temos que lutar sem desistir, sem uma queixa, sem vacilar, até vermos, e nos apercebermos de que nada interessa.

Don Juan mexeu a panela com uma colher de pau. A comida estava pronta. Tirou a panela do lume e colocou-a sobre um bloco rectangular de adobe, que tinha construído encostado a uma parede e que utilizava como prateleira ou como mesa. Puxou com o pé duas pequenas caixas que serviam de cadeiras confortáveis, especialmente se uma pessoa se sentasse encostada às vigas que suportavam a parede. Fez-me sinal para que me sentasse e encheu uma tigela de sopa. Sorriu; os seus olhos brilhavam como se apreciasse realmente a minha presença. Empurrou gentilmente a tigela para mim. Havia tanto calor e bondade no seu gesto que ele me pareceu ser um apelo para que restaurasse a minha confiança nele. Senti-me idiota; tentei modificar a minha disposição procurando a minha colher, mas não consegui encontrá-la. A sopa estava demasiado quente para ser bebida directamente da tigela, e, enquanto ela arrefecia, perguntei a Don Juan se a loucura controlada queria dizer que um homem de saber não podia ser como as outras pessoas.

Ele parou de comer e riu-se.

- Estás muito preocupado com gostar das pessoas e que elas gostem de ti - disse ele. - Um homem de saber gosta, só isso. Gosta daquilo ou de quem quer, mas usa a sua loucura controlada para não se preocupar com isso. O oposto daquilo que tu estás a fazer neste momento. Gostar das pessoas ou ser amado por elas não é tudo o que podemos fazer como homens.

Olhou para mim durante um momento, com a cabeça um pouco inclinada para o lado.

- Pensa nisso - disse.

- Há mais uma coisa que quero perguntar, Don Juan. Diz que precisamos de olhar com os nossos olhos para rir, mas eu acho que nos rimos porque pensamos. Por exemplo, um cego também ri.

- Não - disse ele. - Os cegos não se riem. Os seus corpos sacodem-se um pouco com uma onda de riso. Mas eles nunca olharam para o lado divertido do mundo e têm que o imaginar. O riso deles não é exuberante.

Não falámos mais. Eu tinha uma sensação de bem-estar, de felicidade. Comemos em silêncio; então Don Juan começou a rir. Eu estava a usar um raminho seco para levar os legumes à boca.

(in Conversas com Don Juan - Para além da realidade, Publicações Europa-América, 1996, pp. 72-82).


(1) O Novo Acordo designa as reformas sociais e económicas da ala progressista do Partido Democrático norte-americano, especialmente as advogadas sob a liderança do presidente Franklin D. Roosevelt, em 1933-1939. (N. T.)














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