Deserto de Sonora na hora das bruxas |
« - O crepúsculo é a fenda entre os mundos...».
Don Juan
«O método de ensino de Don Juan exigia um extraordinário esforço por parte do aprendiz. Efectivamente, o grau de participação e envolvimento necessários era tão esgotante que, no final de 1965, tive de desistir da aprendizagem. Posso dizer agora, com a perspectiva dos cinco anos que se passaram, que, por essa altura, os ensinamentos de Don Juan tinham começado a constituir uma séria ameaça à minha "ideia do mundo". Tinha começado a perder a certeza, que todos nós temos, de que a realidade da vida quotidiana é algo de que possamos estar seguros».
Carlos Castaneda («Conversas com D. Juan. Para além da realidade»).
«Voltei a ler o primeiro capítulo de O Dom da Águia, que é de Carlos Castaneda… D. Juan, o Índio, tinha-lhe ordenado que não mexesse em pedras ou ossos que pudesse encontrar enterrados. Coisa a que ela, La Gorda, sua discípula, não quis obedecer. Nas minas do Monte Alban em Oaxaca uma leve cintilação no solo levou-a a desenterrar uma pedra, com sinais de ter sido trabalhada pelos homens antigos, pedra que sentiu quente na sua mão e viva como um animal. O Chaman, para que ela não sucumbisse, teve de soterrá-la em parte, durante vários dias, porquanto uma profunda angústia se apoderou dela e via-se perseguida por horrores mentais, estando perto de passar o limiar da morte. Salvou-se.
A pedra, segundo D. Juan, o Índio, teria pertencido a um atlante que, fazendo incidir sobre ela a segunda atenção, a transformara numa pedra de poder. Revelou ainda D. Juan que o atlante terá sido comido por outro, mais poderoso do que ele.
Este relato de La Gorda, da possessa, agora libertada e igualmente poderosa, foi feito a Castaneda, a propósito de ele ter contado o seguinte: "Visitei algumas minas arqueológicas, quando estava na cidade de Tula, Hidalgo. Fiquei então profundamente impressionado por uma fila de quatro colossais figuras de pedra em forma de coluna, conhecidas pelo nome de Atlantes, que estão no topo de uma pirâmide. Pensam os arqueólogos que representam guerreiros Toltecas com as suas armas. Vinte pés abaixo destas figuras há outra fila de quatro colunas rectangulares da mesma altura e largura das primeiras.
O terror que senti perante os Atlantes foi acrescido pelo que um meu amigo me tinha dito, quando me falou deles. Disse que um dos guardas das ruínas lhe tinha confidenciado que os ouvia andar de noite, com passos que faziam a terra estremecer".
A discípula de D. Juan reagiu ao relato de Carlos Castaneda por estas palavras: "Eu nunca vi essas figuras. Nunca fui a Tula. Só a ideia de lá ir põe-me em pânico".
Perante narrativas como estas, lembro-me sempre do Álvaro Ribeiro com a sua definição da arqueologia como a ciência dos princípios, condenando por isso a ligação desta palavra a uma actividade, a dos que se dizem arqueólogos, que é propriamente uma devassidão dos cemitérios ancestrais.
Aquilo que D. Juan ensina aos seus aprendizes sobre a segunda atenção é exactamente aquilo que nos diz o poeta inglês William Blake no seu grande poema propositadamente imaginado para salvar Milton.
Deixe-se falar Carlos Castaneda:
"1. A primeira atenção é a consciência que cada pessoa normal desenvolveu de modo a poder tratar com o mundo do dia a dia.
"2. A segunda atenção é a consciência de que necessitamos para poder ter a percepção do nosso corpo luminoso e, em consequência, actuar como seres luminosos. A primeira atenção acompanha a actividade do corpo físico. A segunda permanece soterrada durante toda a vida, a não ser que se revele por meio de exercícios intencionais ou por um ocasional trauma; acompanha a actividade do corpo luminoso.
"3. Há ainda a terceira atenção que tudo envolve - imensa consciência que comporta indefiníveis aspectos da actividade do corpo físico e do corpo luminoso".
A passagem da segunda atenção para a terceira é assim sugerida:
"A fixação da segunda atenção tem duas faces. A primeira e mais fácil é a maléfica. Acontece quando os sonhantes utilizam a imaginação de modo a focar a sua segunda atenção em aspectos do mundo como dinheiro e poder sobre os outros. A outra face é a mais difícil de alcançar e acontece quando os sonhantes focam a sua atenção em aspectos que não são os deste mundo, tais como a viagem para o desconhecido".
Eis toda a diferença entre a arqueologia como a concebe Álvaro Ribeiro e a arqueologia dos arqueólogos profissionais».
António Telmo («Congeminações de um Neopitagórico»).
Brandon Lee. Ver aqui e aqui |
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« - Não é preciso muita coisa para te tornares num corvo. Conseguiste-o, e agora serás sempre um.
(…) - Em toda a tua viagem, só houve uma coisa realmente importante...Os pássaros prateados!
- Que têm eles de especial? Não passavam de pássaros.
- Não eram só pássaros… eram corvos.
- Eram corvos brancos, Don Juan?
- As penas pretas de um corvo são na realidade prateadas. Os corvos brilham tão intensamente que não são importunados pelos outros pássaros.
- Por que é que as suas penas parecem prateadas?
- Porque estavas a ver como um corvo vê. Um pássaro que nos parece preto parece branco a um corvo. Os pombos brancos, por exemplo, são cor-de-rosa ou azuis para um corvo; as gaivotas são amarelas. Agora, tenta recordar-te como te juntaste a eles...».
Carlos Castaneda («Os Ensinamentos de Don Juan. Uma nova forma de conhecimento»).
«Há uma hora do dia em que todos somos tímidos fantasmas vagabundos. É no adeus do crepúsculo, quando a luz morre e os contornos erram.
Nas máscaras fenece a certeza fisionómica; trevas fantásticas encovam-se nas órbitas, correndo pelos rostos como fogos-fátuos de sombra.
Se fixamos um corpo, ele furta-se numa obstinação aflitiva à apreensão do olhar.
É um mundo fantástico de incerteza em que mal distinguimos a face do amigo, que nos acompanha, da recordação dos outros, que nos deixaram.
É a hora da dúvida, dos encantamentos e das bruxas. O povo tem as suas visões e ele sabe que a essa hora o Invisível abriu as suas portas».
Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»).
« - O que vale a pena aprender é como chegar à fenda entre os mundos e entrar no outro mundo. Há uma fenda entre os dois mundos, o mundo dos diableros e o dos homens vivos. Há um sítio em que os dois mundos se sobrepõem. A fenda existe. Abre-se e fecha-se como uma porta ao vento. Para lá chegar, a pessoa tem de exercitar a sua vontade. Melhor dizendo, deve desenvolver um desejo indomável por esse caminho, ser-lhe extremamente dedicado. Mas deve fazê-lo sem a ajuda de qualquer poder ou de qualquer homem».
Carlos Castaneda («Os Ensinamentos de D. Juan. Uma nova forma de conhecimento»).
Os quatro inimigos naturais e simbólicos do guerreiro
Sábado, 8 de Abril de 1962
Nas nossas conversas, Don Juan utilizou ou referiu consistentemente a expressão «homem de conhecimento», mas nunca explicou o que queria dizer com ela. Pedi-lhe que a explicasse.
- Um homem de conhecimento é aquele que observou fielmente as dificuldades de aprendizagem - respondeu. - Um homem que, sem pressas e sem hesitações, foi além do possível na descoberta dos segredos do poder e do conhecimento.
- Qualquer pessoa pode tornar-se homem de conhecimento?
- Não, nem todos.
- Então, que deve alguém fazer para se tornar homem de conhecimento?
- Tem de desafiar e vencer os seus quatro inimigos naturais.
- Depois de derrotar esses quatro inimigos, torna-se um homem de conhecimento?
- Sim. Um homem só pode chamar-se homem de conhecimento se for capaz de derrotar esses quatros inimigos.
- Então, quem derrotar esses inimigos torna-se um homem de conhecimento?
- Quem os derrotar torna-se um homem de conhecimento.
- Mas há alguma exigência especial a cumprir antes de se enfrentar esses inimigos?
- Não. Qualquer um pode tentar tornar-se um homem de conhecimento; na verdade, muitos poucos o conseguem, mas isso é natural. Os inimigos que um homem encontra no caminho da aprendizagem para se tornar homem de conhecimento são verdadeiramente poderosos; muitos sucumbem a eles.
- Que tipo de inimigos são, Don Juan?
Recusou-se a falar dos inimigos. Disse que ainda era necessário muito tempo para que esse assunto fizesse sentido para mim. Tentei manter vivo o tema, e perguntei-lhe se ele achava que eu podia tornar-me homem de conhecimento. Respondeu que ninguém podia dar essa garantia. Mas insisti em saber se havia alguma pista que pudesse utilizar para saber se eu tinha ou não possibilidade de me tornar homem de conhecimento. Respondeu que isso dependia da minha batalha contra os quatro inimigos - se seria eu a derrotá-los ou eles a mim -, mas era impossível prever o resultado dessa luta.
Perguntei-lhe se ele podia utilizar a bruxaria ou a adivinhação para ver o resultado dessa batalha. Declarou liminarmente que os resultados da luta não podiam ser previstos por nenhum meio, porque tornar-se homem de conhecimento era uma coisa temporária. Quando lhe pedi que explicasse este ponto, respondeu:
- Ser-se homem de conhecimento não é coisa permanente. Na realidade, nunca se é um homem de conhecimento. Ou antes, a pessoa torna-se homem de conhecimento apenas por um brevíssimo instante, depois de derrotar os quatro inimigos naturais.
- Importa-se de me dizer, Don Juan, que género de inimigos são?
Não respondeu. Insisti de novo, mas deixou cair o assunto e começou a falar de outro.
Domingo, 15 de Abril de 1962
Hesitou durante um instante, mas depois começou a falar:
- Quando um homem começa a aprender, não tem uma ideia clara dos seus objectivos. O seu propósito é imperfeito; a sua intenção vaga. Espera uma recompensa que nunca se materializará, pois nada sabe das dificuldades da aprendizagem.
«Começa lentamente a aprender… Primeiro aos poucos, e depois em grande quantidade. E os seus pensamentos em breve se chocam. O que ele aprende nunca é o que idealizou ou imaginou, e por isso começa a ficar com receio. Aprender nunca é aquilo que se espera. Cada passo da aprendizagem é uma nova tarefa, e o medo que o homem experimenta começa a aumentar impiedosamente. O seu propósito torna-se um campo de batalha.
«E assim tropeça no primeiro dos seus inimigos naturais: Medo! Um inimigo terrível… traiçoeiro… traiçoeiro e difícil de ser vencido. Permanece escondido em cada esquina do caminho, atento, à espera. Se o homem, aterrorizado na sua presença, foge, o seu inimigo terá posto fim às suas procuras».
- O que acontece ao homem que foge com medo?
- Nada lhe acontece a não ser que nunca aprende. Nunca se tornará homem de conhecimento. Talvez fique um homem assustado ou inofensivo; de qualquer modo, será um derrotado. O seu primeiro inimigo terá dado cabo dos seus anseios.
- E que pode fazer para vencer o Medo?
- A resposta é muito simples. Não deve fugir. Tem de desafiar o seu medo e, apesar dele, deve dar o passo seguinte da aprendizagem, e o outro, e o outro. Pode estar realmente com medo, mas não deve parar. A regra é essa! E chegará o momento em que o seu primeiro inimigo bate em retirada. O homem começa a sentir-se seguro de si. As suas intenções tornam-se mais fortes. Aprender deixa de ser uma tarefa assustadora.
«Quando esse momento feliz chega, o homem pode dizer sem hesitação que derrotou o seu primeiro inimigo natural».
- Isso acontece de uma só vez, Don Juan, ou a pouco e pouco?
- Acontece a pouco e pouco, mas o Medo é vencido repentinamente e depressa.
- Mas o homem não volta a ter medo se lhe acontecer outra coisa?
- Não. Assim que o homem venceu o Medo, está livre para o resto da vida porque, em vez do medo, adquiriu clareza… uma clareza de mente que apaga o medo. Nessa altura, o homem conhece os seus desejos; sabe como satisfazer esses desejos. Pode prever os novos passos da aprendizagem, e uma grande clareza rodeia tudo. O homem sente que não há nada oculto.
«E assim encontrou o seu segundo inimigo: Clareza! Essa clareza de mente, que é tão difícil de obter, afasta o medo, mas também cega.
«Obriga o homem a nunca duvidar de si. Dá-lhe a certeza de poder fazer tudo o que lhe agrada, pois vê clareza em tudo. É corajoso porque é claro, e não pára diante de nada por ser claro. Mas tudo isso é um erro; é como algo incompleto. Se o homem cede a este poder de autoconvencimento, sucumbiu ao seu segundo inimigo, e será paciente, quando deve apressar-se. E atrapalha-se com a aprendizagem até acabar por ser incapaz de aprender mais».
- Que acontece ao homem que é derrotado dessa maneira, Don Juan? Morre em consequência?
- Não, não morre. O seu segundo inimigo impede-o de tentar tornar-se um homem de conhecimento; pelo contrário, o homem pode tornar-se um guerreiro bem disposto ou num palhaço. Contudo, a clareza pela qual pagou um grande preço nunca se transformará de novo em obscuridade e medo. Terá clareza enquanto viver, mas nunca mais aprenderá nada.
- Mas que tem de fazer para evitar ser derrotado?
- Tem de fazer o mesmo que fez com o Medo: deve desafiar a sua clareza e utilizá-la para ver e esperar pacientemente e medir cuidadosamente antes de dar novos passos. Acima de tudo, deve pensar que a sua clareza é quase um erro. E chegará o momento em que compreenderá que a sua clareza era apenas um ponto à sua frente. E assim terá vencido o seu segundo inimigo e chegará a uma posição em que nada pode voltar a prejudicá-lo. Isto não será um erro. Não será apenas um ponto à sua frente. Será o verdadeiro poder.
«Nesta altura, saberá que é finalmente seu o poder que há tanto tempo procura. Pode utilizá-lo para fazer o que lhe agrada. O seu aliado estará às suas ordens. O seu desejo será a regra. Vê tudo quanto o rodeia. Mas também deu de caras com o seu terceiro inimigo: Poder!
«O Poder é o mais forte de todos os inimigos. E, naturalmente, o mais fácil é ceder a ele; afinal, o homem é verdadeiramente invencível. Ele manda; começa por assumir riscos calculados e acaba a impor regras, porque é um senhor.
«Nesta fase, um homem mal repara que o seu terceiro inimigo está tão perto de si. E, de repente, sem saber, perde de certeza a batalha. O seu inimigo tê-lo-á transformado num homem cruel, caprichoso».
- E perde o seu poder?
- Não, nunca perde a sua clareza ou poder.
- Então, o que o distingue de um homem de conhecimento?
- Um homem que é derrotado pelo Poder morre sem realmente saber enfrentá-lo. O Poder é apenas um fardo sobre o seu destino. Tal homem não tem domínio sobre si próprio e não sabe dizer quando ou como utilizar o seu poder.
- A derrota por alguns destes inimigos é uma derrota final?
- Claro que é final. Assim que um destes inimigos vencer um homem, ele não pode fazer mais nada.
- Por exemplo, é possível que um homem que seja derrotado pelo Poder veja o seu erro e se modifique?
- Não. Assim que o homem ceder, está acabado.
- Mas, e se estiver temporariamente cego pelo Poder e depois recusar?
- Isso significa que a batalha ainda está a decorrer. Isso significa que ele ainda está a tentar tornar-se um homem de conhecimento. Um homem é derrotado apenas quando já não tenta, quando se rende.
Carlos Castaneda
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- Mas então, Don Juan, é possível um homem entregar-se ao Medo durante anos, mas acabar por o vencer.
- Não, isso não é verdade. Se ele cede ao Medo, nunca o conquistará, porque se afasta da aprendizagem e nunca mais volta a tentar. Mas se procurar aprender durante anos no meio do seu medo, eventualmente vencê-lo-á, porque nunca se lhe terá realmente rendido.
- Como é que pode derrotar o seu terceiro inimigo, Don Juan?
- Tem de o desafiar deliberadamente. Tem de perceber que o poder que aparentemente conquistou na realidade nunca é seu. Tem de se manter constantemente alerta, lidando cuidadosa e fielmente com tudo quanto aprendeu. Se perceber que a Clareza e o Poder sem o seu controlo são piores do que erros, chegará a um ponto em que tudo é posto em cheque. Saberá então quando e como utilizar o seu poder. E assim terá derrotado o seu terceiro inimigo.
«Então, no final da sua jornada de aprendizagem, e quase sem disso se aperceber, estará perante o último dos seus inimigos: Velhice! Este inimigo é o mais cruel de todos, aquele que não será capaz de derrotar completamente, mas apenas enfrentado.
«É o momento em que o homem já não tem medo nem é impaciente na sua clareza de mente… O momento em que todo o seu poder é posto em cheque, mas também o momento em que tem um desejo profundo de descansar. Se ceder totalmente ao seu desejo de parar e de esquecer, se se entrega ao cansaço, terá perdido o seu último combate, e o seu inimigo transforma-o numa criatura velha e frágil. O seu desejo de retirada dominará toda a sua clareza, poder e conhecimento.
Mas, se o homem se libertar do seu cansaço e viver o seu destino, pode então ser chamado homem de conhecimento, mesmo que seja apenas no breve instante em que conseguiu enfrentar e vencer o seu último e invencível inimigo. Esse momento de clareza, poder e conhecimento é bastante».
(in Carlos Castaneda, Os Ensinamentos de D. Juan. Uma nova forma de conhecimento, Publicações Europa-América, pp. 72-77).
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