terça-feira, 5 de fevereiro de 2019

O Jeet Kune Do de Lee Siu Loong

Escrito por Bruce Lee




















Segue-se agora um escrito autobiográfico de Bruce Lee do qual apenas sabemos ter sido dado à estampa, em 1972, num diário tailandês de ampla divulgação em todo o Sudeste Asiático. É pelo menos o que se afirma numa nota introdutória ao respectivo escrito num dos exemplares da revista Bruce Lee, dirigida por Mariano Alonso e co-dirigida por Pedro Conde, Luis Maria Santamaria e Alfonso Garcia (Editorial Hegeo, S.A., n.º 24, Ano III, pp. 22-41). 

Por se tratar de uma revista castelhana, o título da breve autobiografia de Mr. Lee é Mi Jeet Kune Do. Porém, vertido para a língua portuguesa, Miguel Bruno optou por, sem jamais trair o espírito do autor, converter aquele mesmo título de modo a evitar o pronome possessivo, e, assim, realçar o nome artístico do seu autor. Daí O Jeet Kune Do de Lee Siu Loong

Notemos ainda que é precisamente nesta autobiografia que transparecem os sentimentos e os pensamentos verídicos de quem, não obstante ter sido espiritualmente inspirado por Jiddu Krishnamurti, encarava o patriotismo como uma questão de princípio altamente positiva, quando não mesmo de salutar orgulho perante os revezes da realidade vivida. É, pois, caso para ora se tornar patente o admirável testemunho experienciado e vivido na primeira pessoa do «Pequeno Dragão»



O Jeet Kune Do de Lee Siu Loong 


O DEVER DE SER CHINÊS 


Quando, após a realização do filme O Implacável, regressei da Tailândia com a equipa de rodagem da Golden Harvest, muita gente tratou de me fazer a seguinte pergunta: porque abandonara eu a minha carreira nos Estados Unidos e regressara a Hong Kong para filmar películas chinesas no âmbito de uma indústria subdesenvolvida? Perante uma tal questão não encontro uma resposta lógica, ou fácil, a não ser no facto de ser um cidadão chinês que tem o dever de se realizar enquanto tal.

A verdade é que sou um chinês nascido nos Estados Unidos, razão pela qual tenho uma dupla nacionalidade, se bem que a minha identidade chinesa venha em primeiro lugar, como, aliás, sempre assim o considerei sem dúvida alguma.

Durante todo o tempo em que permaneci nos Estados Unidos, fui desde logo visto, pelos ocidentais, como um chinês. Assim, no que à cultura autêntica e à manifestação das emoções respeita, tenho o dever de tornar presentes os atributos essenciais que são próprios de um chinês.

O facto de eu ter nascido nos Estados Unidos foi fruto do acaso, ou, quando muito, resultou de circunstâncias ligadas ao meu pai. Nessa altura, os habitantes chineses dos Estados Unidos, muitos deles oriundos da província de Kwantung, encontravam-se profundamente nostálgicos, dando disso mostras perante tudo o que aparecia associado à sua pátria. Neste contexto, a ópera chinesa, caracteristicamente singular, saiu à luz do dia.

Todos queriam ter recordações da sua pátria e poder dispor de todas aquelas coisas que fazem parte do seu país, mas que na estranja são difíceis ou impossíveis de encontrar.

O meu pai era um renomado artista de ópera chinesa e era muito popular entre a comunidade chinesa, pelo que passava muito tempo actuando nos Estados Unidos. Eu nasci quando ele trouxe a minha mãe durante uma das suas tournées. O meu pai não queria que eu recebesse uma educação americana e, quando chegou a idade de ir para a escola, enviou-me para Hong Kong onde fiquei à guarda de alguns familiares. Seja ou não uma questão hereditária, é um facto de que fui atraído para o mundo cinematográfico enquanto estudava em Hong Kong.

O meu pai estava bem relacionado com muitos actores, actrizes e realizadores, entre os quais se encontrava o Sr. Chin Kan. Um dia levaram-me a um estúdio onde prestei algumas provas. Ficaram imediatamente deslumbrados perante as minhas qualidades artísticas. Creio que nessa faceta saí ao meu pai, por cujas veias corria o sangue da arte da representação. Deram-me então a possibilidade de desempenhar alguns pequenos papéis, onde entrei como extra e, assim, aos poucos me converti numa estrela cinematográfica. Esta foi uma experiência crucial na minha vida, pois era a primeira vez que me encontrava perante as raízes primordiais da verdadeira cultura chinesa. A sensação de fazer parte dela era por mim tão profundamente sentida que fiquei simplesmente encantado. Sentia-me orgulhoso, pese embora não me desse conta nem tão-pouco pudesse ver quão funda havia sido a influência exercida pelo meu pai. Ele considerava-se chinês e estava muito orgulhoso em poder sê-lo. Sem dúvida que influiu na formação do meu carácter e personalidade. No entanto, a ideia de ser chinês era-me intranha.







Wing Chun Gung Fu



Bruce Lee em Hong Kong









Bruce Lee e o seu primeiro aluno, Jesse Glover.









Bruce Lee e Taky Kimura







































UMA MENINICE BELICOSA 


Da infância à adolescência fui um rapaz muito problemático e, como tal, era amiúde repreendido pelos meus pais. Era desobediente até mais não, agressivo, irascível e sobretudo violento. Logo, não só os rivais da minha idade procuravam evitar a minha presença, como também os próprios adultos por vezes se rendiam perante o meu temperamento.

Nunca consegui saber o que me levou a ser tão agressivo e violento. O primeiro impulso que sentia quando me deparava com alguém que não gostava de mim, era desafiá-lo. Mas desafiá-lo com o quê? A única coisa que tão-logo me ocorria eram os meus punhos.

Estava, portanto, convencido de que a vitória significava a sua derrota perante os demais. Porém, estava confuso, uma vez que a vitória obtida por meio da força não consiste numa verdadeira vitória. Quando entrei na Universidade de Washington para estudar filosofia, quedei esclarecido e arrependido de toda aquela presunção. Isso tão-só manifestava a minha fogosa imaturidade juvenil.


POR QUE ESTUDEI FILOSOFIA? 


O meu interesse pela filosofia começou por estar intimamente relacionado com a minha irascibilidade. Por vezes confrontava-me com questões do tipo: O que sobrevêm com a vitória? Por que razão se sobrevaloriza demasiadamente a vitória? E que espécie de vitória devemos alcançar? Quando falava com o meu mestre sobre o que haveria de fazer no futuro, o seu conselho foi para que estudasse filosofia em virtude das questões que permanentemente lhe fazia. Assim, costumava dizer-me: "a filosofia te dirá por que razão vive o homem".

Quando dei a conhecer aos meus amigos e familiares que, como modo de vida, havia optado pela filosofia, ficaram assombrados. Todos pensavam que era mais conforme à minha natureza enveredar pela educação física, visto ser a actividade extra-escolar que mais me atraía. Desde petiz até ao momento em que me graduei no ensino médio, toda a minha vida se confinara às artes marciais chinesas. Isso nem se discutia, pois todo o meu mundo girava à sua volta.

Reconheço que, à primeira vista, a filosofia e as artes marciais parecem ser incompatíveis, porém creio que toda a teoria marcial pode usufruir de muitas das conclusões a que a filosofia se abalança. Isto, sem mais, pode parecer muito estranho, e, no entanto, não há nenhuma acção que não tenha a sua razão de ser, devendo, por isso, haver uma teoria tão ampla e susceptível de tornar plenamente presente o sentido último das artes marciais. Pretendo, pois, dar a conhecer a filosofia das artes marciais, unindo e jamais separando.

Quando dou por mim a pesquisar sobre a origem e a história das artes marciais chinesas, há sempre uma dúvida que se me impõe: agora que cada vergôntea do Gung Fu tem a sua própria forma e respectivo estilo, corresponderá isso realmente às intenções primordiais de cada fundador em particular? Creio que não, já que a tradição pode obstar ao progresso, o que, como tudo na vida, também pode acontecer no domínio da filosofia. Todo e qualquer fundador de um estilo de Gung Fu terá sido, por princípio, uma personalidade criadora, genialmente inteligente e flexível. Enfim, um homem fora do comum. Logo, se os seus discípulos não lograram prosseguir na via talentosa e exemplarmente recebida, é caso para dizer que restou apenas a tradição e a fixação de rotinas caídas em saco roto. Em suma, nada de novo se criou, por impossibilidade de uma tradição estagnada.


NEM TRADIÇÕES NEM FORMAS (KUENS


Estes são precisamente os princípios nos quais me baseei para me libertar de tudo o que havia aprendido anteriormente sobre formas e tradições. Jamais aspirei ou quis dar um nome à modalidade marcial chinesa que desenvolvi e criei. Mas, por considerações de ordem prática, decidi nomeá-la de Jeet Kune Do. No entanto, é de notar de que não existe nada de comum entre o JKD e toda e qualquer modalidade de Gung Fu, já que de pronto me oponho a tradições e estilos. O que é o JKD? É uma arte marcial chinesa, sem dúvida. É uma arte, além do mais, que rompe com a distinção entre estilos e que repudia o formalismo. Uma arte, portanto, que se liberta do peso da tradição. Usai a vossa inteligência para superar o vosso oponente!

Outros aspectos importantes nas artes marciais são a técnica e a respectiva aplicação no combate. Contudo, a técnica refere-se sobretudo a princípios, posto apenas ser, por si mesma, um sustentáculo em que nos amparamos para tornar operativa a prática do Gung Fu. A rapidez, a força e a prudência constituem a chave para a prática das artes marciais.

O JKD repudia todas as limitações impostas por kuens ou tradições, com vista a enfatizar a aplicação inteligente do espírito e do corpo na forma de defender e atacar. É, por isso, ridículo procurar reduzir o JKD de Bruce Lee a uma qualquer modalidade do Gung Fu. Ao dizer JKD desejo apenas realçar aquele momento crucial em que se vislumbra ou surpreende o oponente no limiar da acção. Se há quem pretenda ver na minha forma de agir um caminho possível, tal pode ser denominado de JKD.




Bruce Lee e Bob Baker















Ver aqui


Recordo-me que, num combate com Robert Baker, caí por terra após ter sido golpeado. Aí, usando as pernas, ele fez-me uma chave ao pescoço de tal modo que não me consegui mover. O único expediente era a minha boca, pelo que lhe cravei os dentes. O leitor, lendo isto, pensará provavelmente que estou no gozo, mas, de facto, não estou. Somente afirmo que não existe nenhuma forma estabelecida no JKD. Tudo o que aí existe é consequente. Se o oponente é implacável, procura sê-lo ainda mais. Se é veloz, então torna-te ainda mais rápido. Preocupa-te com os fins e não com os meios. Direcciona o teu potencial, sem jamais te confinares a um estilo.

Tenho muitos amigos que manifestam um grande interesse pelo meu passado. Deixai o passado que já lá vai!

Cheguei a desafiar alguns campeões de competições internacionais de artes marciais nos Estados Unidos, de modo que, nesse contexto, foi distinguido por uma revista como um dos dez homens mais proeminentes. Ora, tudo isso não tinha sentido. Era inconsequente e absurdo na medida em que resultava de uma exibição ostensiva e temerária, triunfantemente fortuita.

Tal como já pude referir, acabei por mudar o meu ponto de vista depois de abraçar a filosofia.

Há um velho provérbio chinês que diz: "Não sejas vaidoso".

Não há mestre de Gung Fu que não o cite de modo a torná-lo constantemente presente no espírito dos discípulos.


UM NOVO HORIZONTE DESPONTA NAS ARTES MARCIAIS


A filosofia conduziu o JKD a um novo horizonte no domínio das artes marciais, assim como direccionou a minha activa carreira cinematográfica até um novo patamar. A experiência única adquirida na minha meninice havia ficado para trás. Mais tarde, os realizadores de Hollywood, vendo na minha habilidade marcial uma forma de atrair o público, convidaram-me para desempenhar pequenos papéis em séries televisivas, inclusive num filme de longa-metragem.

A série televisiva O Besouro Verde é apenas um exemplo.

Entretanto, dei-me conta de que não me sentia realizado por participar em séries televisivas como essa. Isto não quer dizer que me sentisse incapaz de interpretar os papéis que me haviam proposto. Eu era perfeitamente capaz de me adaptar a qualquer tipo de representação, mas a verdade, infelizmente, era esta: eu era um chinês de tez amarela, pelo que não podia vir a ser um ícone para o homem caucasiano. Atrevo-me até a dizer que simplesmente não estaria em condições de poder captar o perfil idiossincrático dos americanos. Por conseguinte, optei por regressar a Hong Kong para singrar na indústria cinematográfica chinesa.

Demais, fui desde logo induzido a isso por um sentimento nostálgico para com a minha pátria. Os meus melhores amigos nos Estados Unidos me advertiram de que ganharia menos dinheiro em Hong Kong. Mas o dinheiro não é tudo. Para mim há coisas muito mais importantes.

Com o dinheiro que, ao largo dos últimos anos, tinha conseguido juntar nos Estados Unidos, podia perfeitamente ter ficado ali a viver com uma vida bastante desafogada. Porém, acho que se o principal objectivo da nossa vida é simplesmente ganhar dinheiro, acabamos por ficar dependentes disso, com a agravante de perdermos toda a nossa individualidade e personalidade.

De qualquer modo, concordo que seria maravilhoso que toda a gente pudesse ganhar dinheiro fazendo o que realmente gosta.

Confesso que um dos factores que me impeliu a regressar a Hong Kong foi ter-me alguém escrito uma carta em que me dizia estar disposto a pagar 10.000 dólares para rodar um filme, dando-me, além do mais, a oportunidade de escolher o realizador e optar pelo guião que mais me aprouvesse. Dizia também para não me preocupar com nada, e que todas as facilidades me seriam concedidas para levar avante o meu trabalho. Na realidade, tudo isso me pareceu muito estranho, deixando-me um tanto desconfiado com tamanha liberalidade. Até então, o que mais lograra alcançar era a indiferença por parte dos realizadores da indústria cinematográfica americana. Decerto que toda a gente conhecia o meu talento nas artes marciais, assim como estavam a par do poder engendrado pelos meus punhos e pés, e, no entanto, tudo isso se limitava à admiração que tinham por mim como artista marcial e não como actor. No fundo, jamais acreditaram em mim, até porque o desinteresse manifestado para com as minhas capacidades de representação era pura e exclusivamente devido à cor da minha pele. No Ocidente é, pois, impensável que um actor não-caucasiano seja o protagonista de uma longa-metragem.



Nos bastidores d'O Besouro Verde












Estrela de Bruce Lee na Avenida das Estrelas (Hong Kong).






Ver aqui











































































Todo o ser humano tem as suas virtudes, qualidades, atributos físicos, talento, etc., o que, certamente, não está determinado pela cor da sua pele. Considero absurdo catalogar uma pessoa de inferior com base nisso, e também por causa da sua crença ou ideologia.

Ainda que isto possa parecer estranho, é um facto de que, no Ocidente, nomeadamente nos Estados Unidos, uma pessoa de raça negra ou oriental seja vista como alguém inferior, inibindo-a de desenvolver as suas capacidades nos mais variados campos da actividade humana.

Depois de, em múltiplas ocasiões, me ter deparado com todo o tipo de obstáculos e de ser objecto de menosprezo em resultado da cor da minha pele, cheguei, em determinado ponto, a desconfiar de toda e qualquer oferta feita no âmbito cinematográfico, de modo que, quando me propuseram aquele promissivo contrato, fiquei de pé atrás. Contudo, após ter seriamente matutado no caso, dei por mim a pensar se não seria, de facto, uma oportunidade a não deixar escapar, ou, se uma vez confirmada, não corresponderia ao que sempre quisera fazer. Logo, decidi mudar-me para Hong Kong, esperando que tudo correspondesse à oportunidade proposta no sentido de realizar películas chinesas.

Pude então confirmar que tudo o que se me oferecia no contrato batia certo. Acabei assim por firmá-lo com representantes da Golden Harvest. Raymond Chow pareceu-me um homem perspicaz e a sua companhia uma empresa promissora. Esta promovia métodos exequíveis e susceptíveis de melhorar a cinematografia chinesa. E Raymond Chow gostava de apoiar realizadores independentes, a todos facilitando e concedendo liberdade para, dessa forma, puderem manifestar o seu talento. De sorte que aceitei e protagonizei duas películas, a primeira intitulada O Implacável, a segunda de O Invencível.

De início, jamais supus que estas duas películas pudessem resultar no alvoroço que suscitaram no público. Não fazia sequer ideia de que chegariam a atingir recordes de bilheteira. Somente fiz o melhor que pude. Foi, portanto, para mim uma enorme surpresa ver o filme O Implacável arrecadar, tão-só em Hong Kong, 3 milhões e meio de dólares.

Por um lado, sentia-me acanhado por me achar tão bem considerado e apoiado pelo público. Eu, sinceramente, não tinha trabalhado para isso, pelo que decidi pôr fim a todos os meus compromissos nos Estados Unidos de maneira a focar toda a minha atenção na realização de filmes de artes marciais.

Neste momento, Raymond Chow e eu acabámos de criar uma companhia chamada Concord Productions, avalizada pela Golden Harvest. E estamos agora apostados num novo projecto que tem por título A Fúria do Dragão, uma película que, de resto, acalenta um grande potencial.

Não me atrevo a dizer que estou na mó de cima, pois encontro-me apenas no começo da minha carreira cinematográfica. O Implacável e O Invencível constituem tão-só um ponto de viragem que, numa devoção sem precedentes, deu azo a que me dedicasse por completo à indústria cinematográfica chinesa. E, nesse ponto de viragem, redescubri uma grande verdade: um chinês é e será sempre um chinês. É o que eu realmente sou, e, como tal, realizarei películas chinesas.









































































































































































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