sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

O génio nacional, a filosofia portuguesa e os tratantes da política

Escrito por Orlando Vitorino










«(…) Quanto à segunda forma [leviana ou assaz enviesada de abordar a filosofia portuguesa], decorre a mesma de um inquérito levado a cabo nas páginas da revista Vértice. Por conseguinte, já corria o ano de 1946, quando Eduardo Lourenço, perante a "pergunta-consulta" de um leitor sobre se havia ou não uma Filosofia Portuguesa, abre então o "inquérito" com o vil propósito de pôr a ridículo o pensamento de Álvaro Ribeiro, já na altura previamente exposto aos portugueses através de um opúsculo intitulado O Problema da Filosofia Portuguesa. Deste modo, afirma E. Lourenço que a concepção de Álvaro Ribeiro, tal como delineada naquele opúsculo, "é simplesmente absurda", pois supostamente preconiza "a filosofia como qualquer coisa que se aprende ou transmite tal e qual como a técnica de fazer o melhor parafuso", e, portanto, quando o autor pensa "em 'adoptar um sistema filosófico'”, fá-lo ainda "como quem diz usar uma certa marca de camisas ou água de colónia". No mais, o seu detractor rasgara as vestes perante o facto de Álvaro Ribeiro ter simplesmente afirmado que entre os portugueses se discutia "qual o sistema filosófico, entre os que na Europa mais benéfica influência exercem no pensamento contemporâneo", podia ser "importado, adoptado e difundido no ambiente cultural português". E tão patética, provinciana mesmo, fora decerto a sua má-fé, que só oportunamente circunscrita poderá realmente mostrar o portentoso calibre do artista: "Quem é que discute? Onde? Não se teria equivocado Álvaro Ribeiro ouvindo falar de importação de batatas da Dinamarca e automóveis de Detroit?"». 

Miguel Bruno Duarte («Noemas de Filosofia Portuguesa». Versão especialmente revista).


«As características da filosofia portuguesa encontram-se há muito enunciadas em obras de mérito, de talento e de génio. Se a alguns estudiosos pareceram até agora demasiado envolvidas em expressões de deficiente luminosidade racional, tornar-se-ão, porém, claras, nítidas e evidentes quando relacionadas com uma classificação realista das ciências filosóficas. Assim, se concedermos que a teologia, a antropologia e a cosmologia são as ciências fundamentais, e se com estas relacionarmos a filosofia do direito e a filosofia da arte, teremos o quadro onde mais bem se espelha a nossa aptidão para harmonizar a cultura com o culto.

Não tem sido, porém, este o critério adoptado no ensino liceal e superior. A filosofia dividida em quatro ou cinco partes, (psicologia, lógica, moral, teoria do conhecimento e metafísica), por imitação do que se observa na Europa Central, não pode ser disciplina que reconheça a autenticidade e a originalidade do pensamento português, e muito menos doutrina que estimule o desenvolvimento da nossa tradição. A adopção de um abstracto, parcial e falso universalismo, tem por consequência obrigatória, que parece necessária, a negação das filosofias nacionais, e, portanto, o desconhecimento da filosofia portuguesa».

Álvaro Ribeiro («Apologia e Filosofia»).


«Ao dizer-nos, a nossa 4.ª Tese, que a filosofia não se referencia à ciência, podemos pois perguntar-nos qual a ciência que ela tem em vista. Evidente é concluir que se trata da ciência moderna. Reconhecemos como isso é limitativo, mas compreendemos que, dada a convicção generalizada que descrevemos, tenhamos de admitir a redução de todas as ciências à moderna, situação que ela própria criou. Mas perante esta situação, forçoso é acrescentar aqui o seguinte. É certo que em qualquer caso, isto é, perante qualquer ciência, a filosofia não carece de a ela se referenciar mas, no caso da ciência moderna, e ao contrário do que acontece com a clássica, é a própria ciência que impossibilita a referenciação uma vez que supõe e afirma a inexistência da filosofia, ela também dada como um estádio ultrapassado, já não no progresso da ciência única, mas no do pensamento que habita o homem. Momentos definitivos e decisivos desta afirmação, em Descartes apenas anunciada, são o kantismo, o positivismo e o socialismo. Como Hegel discursivamente demonstrou na "Introdução" à sua Ciência da Lógica, a crítica kantista corta o caminho a qualquer desenvolvimento do pensamento filosófico. O positivismo, por sua vez, faz condição da sua doutrina a extinção da filosofia, consistindo num progressismo que vem do que chama a idade teológica à idade filosófica, ou metafísica, e, extinta esta, avança hoje pela idade positiva na qual todo o pensamento possível se reduz a pensamento dos conhecimentos científicos. O socialismo, finalmente, fecha todo o pensamento, seja ele pretensamente filosófico, e todo o conhecimento, seja ele científico, numa teoria social».

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).







O génio nacional, a filosofia portuguesa e os tratantes da política


1. Nota prévia sobre a liberdade de expressão e de como ela não passa de uma tácita convenção que convém ter o cuidado de não denunciar.


O escrito que se vai seguir é o comentário a um artigo de J. Gaspar Simões recentemente publicado no “Diário de Notícias", artigo que, na generalidade do contexto, este comentário enaltece. Gaspar Simões, por sua vez, é uma personalidade que o autor do comentário muito respeita e admira.

Vivemos agora num regime político que constitucionalmente faz da liberdade de expressão um ponto de honra intocável e um princípio sobre o qual jamais admitirá fazer a mínima concessão. Vamos, então, pôr a hipótese de que o autor deste comentário propõe a sua publicação a um dos jornais em que o actual regime se espelha, seja ele um jornal estatizado, como aquele mesmo “Diário de Notícias”, seja ele o jornal de uma empresa privada mas ligados aos órgãos do regime, a, por exemplo, um qualquer partido político. A proposta seria inevitavelmente recusada. Por múltiplas razões.

Uma dessas razões, talvez a primeira, resulta de o comentário reconhecer, aliás em concordância com Gaspar Simões e na expressão que ele próprio emprega, a existência de “um escol de pensadores que, no nosso tempo quiseram resgatar o génio nacional”. A discordância com Gaspar Simões pode, portanto, gozar da liberdade de expressão constitucionalizada enquanto o nosso comentário não pode ser publicado. E é assim, assim tem de ser, porquê? Porque se há um “génio nacional” a resgatar, isso significa que a Pátria está a ferros ou, como dizia o Dr. Mário Soares, que “Portugal está amordaçado”. Se o escol que o quis resgatar nada conseguiu, como pretende Gaspar Simões, então sempre fica a dúvida se esse génio nacional existe efectivamente, e o artigo pode publicar-se. Mas se, como nós demonstramos, ele foi resgatado, então o regime vigente é responsável de os portugueses estarem entregues a ideologias e doutrinas importadas, é um regime de ocupação, e o nosso comentário não pode ter direito à liberdade de expressão.

Parece-nos ocioso, e até ofensivo para a inteligência do leitor que vai ler o comentário, apresentar mais algumas das outras múltiplas razões. A que apresentámos é suficiente para que o leitor conclua que a constitucionalizada liberdade de expressão não passa de uma figura de retórica, de uma formal convenção impossível de cumprir mas que ninguém deverá atrever-se a denunciar como tal. E se acaso lhe vierem com comparações, como a de entre hoje e o antigamente, lembrar-lhe-emos, prezado leitor, uma observação de um livro famoso mas pouco lido: “Nas ditaduras, a violência tem rosto visível; nas democracias, o rosto da violência é invisível”.

Para completa elucidação do leitor, devemos ainda acrescentar que o que começámos por apresentar como mera hipótese a propormos a qualquer jornal do regime a publicação deste comentário – não é apenas uma hipótese pois a proposta foi de facto feita e a publicação foi de facto recusada.

Restava-nos, então, recorrer a um jornal que esteja fora do regime e das convenções sobre a liberdade de expressão. Recorremos a “O Diabo” e ao desassombro da nossa amiga Vera Lagoa. Um jornal que se situa fora do regime, é necessariamente um jornal de oposição. Mas também aqui o regime estabeleceu uma outra tácita convenção: a de chamar oposição apenas àqueles sectores do sistema que, durante os períodos rotativos em que não dispõem dos poderes do Governo, fazem críticas, também por convenção inócuas e inconsequentes, aos sectores que, nesses períodos, têm nas mãos aqueles poderes. Quando ao Partido X cabe a vez de estar no Governo, o Partido Y é a oposição. Deste modo hábil e eficaz, mas sinistro, o sistema declara aos quatro ventos haver lugar para todos, situacionistas e oposicionistas, e assim se defende de ter de reconhecer a existência da verdadeira oposição que assim se vê encurralada numa actividade quase clandestina e esmagada com os epítetos mais atemorizadores: reaccionária, fascista, saudosista, etc.






Estabelece-se, por estes e outros meios, aquilo a que os gregos chamaram uma oligarquia. Há tempos, na tribuna da Assembleia da República, o primeiro-ministro Nobre da Costa avaliou esta oligarquia em 500 mil pessoas, resultado que obteve somando todos os filiados nos partidos políticos existentes. Já seriam, esses, apenas um vigésimo da população portuguesa. Mas não são tantos porque a maior parte daqueles filiados constituem as bases em que assentam os oligarcas. Estes limitam-se, de facto, às direcções dos partidos, a uma clientela que lhes está mais próxima e a uma minoria das Forças Armadas, e outras instituições que, como as Universidades, há muitos anos se tornaram imprescindíveis a quem, em qualquer regime, nos queira governar. Bem feitas as contas, a diferença quantitativa entre o total dos oligarcas no actual e no anterior regime ou não será nenhuma ou será a favor do anterior regime. Aliás, a maior parte deles são os mesmos.

Também por esta via terá o leitor de concluir que, já não apenas a liberdade de expressão, mas a liberdade como princípio geral, é apenas, no actual regime, uma figura de retórica política. A tácita convenção sobre a liberdade de expressão não é mais do que uma forma de a oligarquia se afirmar, se defender e se impor.


2. Comentário a um artigo de Gaspar Simões. O que ele assevera, exprimindo a versão da “cultura oficial” sobre a filosofia portuguesa e sobre José Marinho e como se corrigem as suas asserções. 


Ao longo da sua carreira de perfeito homem de letras, Gaspar Simões sempre suspeitou da filosofia e, muito especialmente, dos filósofos que, entre nós, atribuem à literatura uma dimensão a que os homens de letras, irreflectidamente, se consideram alheios. Sempre suspeitou, em suma, da “filosofia portuguesa”, designação que, já hoje impropriamente, continua a ser dada àqueles que, nos termos do próprio Gaspar Simões, constituem “o escol de pensadores que, no nosso tempo, quiseram resgatar o génio nacional”.

Naturalmente nos surpreendeu, portanto, que num nobre artigo publicado no “Diário de Notícias” de 2 do corrente, Gaspar Simões tenha assumido uma autoridade filosófica que nunca antes assumira e tenha, em consequência, exarado, sobre a filosofia portuguesa e sobre José Marinho, alguns juízos menos correctos num assunto que é o mais importante da vida espiritual portuguesa.

O que de mais grave contém o artigo de Gaspar Simões é a asserção de que José Marinho “não chegou a concretizar os termos desejados de uma autêntica especulação filosófica em tudo digna desse nome”. E mais adiante: “para ele, José Marinho, o pensar filosófico não pressupõe o rigor sistemático dos Descartes e dos Hegels mas, antes, o impreciso aventar de hipóteses que, de algum modo, permitem certos dos nossos poetas situar-se na esfera dos pensadores de mente filosófica”. E ainda: “nenhum dos discípulos do autor de A Alegria, a Dor e a Graça chegou a concorrer com ele obrando o prodígio que ele não obrou, que seria o de distinguir o poético do filosófico, o improviso da teoria, o aceitar o princípio de Hegel segundo o qual a ideia não tem pressa, coisa que, ao que parece, não se verificou em qualquer dos que entre nós filosofaram – muito em particular em Leonardo Coimbra – todos eles mais ou menos preocupados com a pressa da ideia”.

Tudo isto se afigura um desarrazoado de razões que importa corrigir. Vejamos rapidamente como, revertendo do fim para o início dos juízos enunciados.

O que Hegel disse, conviria traduzir-se por a verdade não tem pressa, expressão que ele, aliás, utilizou. E não o disse no sentido, que Gaspar Simões lhe atribui, de a verdade não ter pressa de ser escrita por este ou aquele pensador, mas no de se realizar e impor no mundo e no tempo. Aqui, o erro de Gaspar Simões é erro natural de um homem de letras. Mas até no errado sentido que atribui à sentença de Hegel, não haverá pessoa alguma a quem, como a José Marinho, ela menos se possa aplicar. Em vida, apenas publicou dois livros que, resistindo à pressão de amigos, companheiros e discípulos, vagarosos e demorados anos levou a elaborar. Gaspar Simões conheceu bem José Marinho – foi dos seus raros amigos de geração que me lembro de ter visto no enterro dele – e sabe certamente como assim aconteceu. Aliás – e aqui vem a diferença entre o filósofo e o homem de letras – um livro de filosofia poderá, por vezes, ser escrito depressa, mas é sempre demoradamente pensado. Em filosofia, ao contrário do que acontece na inspirada literatura, o que importa não é escrever, é pensar.






Diz depois G. Simões que nenhum dos discípulos de Leonardo Coimbra conseguiu fazer o que também ele não terá feito, a saber: distinguir o poético do filosófico. Ora acontece que, precisamente, e como G. Simões antes dissera, o que a “filosofia portuguesa” tem em conta é a verdade suposta ou contida na expressão, não a forma que a expressão adquire, coisa bem demonstrada, e de vários modos, por Leonardo Coimbra. Logo, Leonardo não podia ter feito o que G. Simões quer que ele tivesse feito e, no mesmo passo, dispensou os seus discípulos ou epígonos de o repetirem.

Que o pensar filosófico não pressupõe, para José Marinho, “o rigor sistemático dos Descartes e dos Hegels”, é a nova incorrecção de G. Simões. O que José Marinho na verdade entende é que a filosofia está para além, não do rigor sistemático, mas dos cânones lógicos que caracterizaram, não apenas Descartes e Hegel, mas toda a filosofia moderna. Ora a filosofia portuguesa está fora dos domínios da filosofia moderna. É, antes, uma filosofia clássica, não no sentido colegial de uma filosofia antiga, mas no da harmonia e conciliação entre a filosofia antiga e o cristianismo e no da persistência e vitalidade, em nossos dias, dessa harmonia. Sendo assim, é lamentável que G. Simões se tenha autorizado a acrescentar que “sempre, para José Marinho, a filosofia seja um impreciso aventar de hipóteses”. Lamentável, dizemos, porque “o impreciso aventar de hipóteses nada tem a ver com qualquer espécie de filosofia mas é apenas um momento do método das ciências derivadas da filosofia moderna, não da filosofia clássica.

Por fim, o mais grave. É quando G. Simões afirma que José Marinho “não chegou a concretizar os termos desejados de uma autêntica especulação filosófica em tudo digna desse nome. Claro que em tudo digna desse nome não há, nunca houve nem nunca haverá, entre nós como lá fora, especulação filosófica alguma. Aparte esta universal e humana impossibilidade, basta lembrar que José Marinho é o autor de um livro, “Teoria do Ser e da Verdade”, onde sistematicamente expõe tudo aquilo sem o qual não pode haver filosofia ou, nos termos de G. Simões, “autêntica especulação filosófica”. Trata-se de um livro único em toda a história da filosofia e, aparecendo em nossos dias, é o contrapolar positivo da certidão de óbito da filosofia moderna passada pelos últimos pensadores nórdicos, desde Kierkegaard e Nietzsche até Marcuse e Heidegger.

Isso que continua a designar-se por “filosofia portuguesa” é já, graças a José Marinho e Álvaro Ribeiro – que incompreensivelmente G. Simões não refere –, graças ao que, na epigonia de Leonardo, ambos pensaram e escreveram, é já de uma importância universal e de um significado a que, por enquanto, só os portugueses têm imediato acesso mas de que ainda estão longe, e impedidos de se aperceberem. Tão certo é, e mais uma vez se confirma, que “a verdade não tem pressa”.


3. As falsas “vítimas do fascismo”, os tratantes da política e o exemplo ético de José Marinho.


Tão sucintamente quanto possível, expusemos o que era nosso dever não deixar passar em claro. Outras, menos importantes, omissões, essas de carácter um tanto pessoal e um tanto político, poderemos ainda registar. Por exemplo: Gaspar Simões tem a rara probidade de dizer que José Marinho sofreu as consequências de se haver recusado, jovem professor do liceu, a um acto de subserviência a Salazar, enquanto a totalidade das “vítimas do fascismo” (é ele quem sublinha a expressão), vítimas que nada ou quase nada perderam, foram reconfortadas depois com benesses que não mereceram”. Das falsas vítimas a que assim se refere, toda a gente conhece alguns exemplares. O que não diz, e ninguém ainda disse, é que a quase totalidade delas ou faziam da oposição política ao regime salazarista uma carreira profissional ou eram tratantes de calculadas oposições políticas por si mesmas rendosas. Entre os primeiros, encontram-se os militantes ou funcionários do Partido comunista. Dos segundos, a gama é mais variada. Abrange, em primeiro lugar, certos advogados, como Salgado Zenha e Mário Soares, que se viam particularmente incumbidos, pelos marechais ou capitães de indústria do regime que publicamente consideravam opressor, de chorudos cargos e causas jurídicas, mais fictícias do que reais, que os fizeram enriquecer. Abrange depois, certos “escritores e artistas malditos”, como Bernardo Santareno e João Abel Manta, ou as suas organizações, como a do “Grupo 4”, que se viam privilegiadas pelas instituições oficiais do regime opressor na atribuição de prémios, subsídios, de encomendas, além de gozarem de utilização quase exclusiva da máquina de publicidade e de propaganda que hoje é, como já era então, descrita como um instrumento de opressão e obscurantismo. Abrange finalmente certos carreiristas, como Eduardo Lourenço, Vieira de Almeida e mais 50%, pelo menos, dos seus confrades universitários e ainda os 17 directores-gerais marxistas (segundo uma publicação do episcopado) dos 19 que havia no Ministério da Educação, que simultaneamente detinham o rendoso monopólio das Universidades do Estado fascista do qual se apresentavam como opositores, dando-se hoje ao execrando desfastio, como recentemente fez o primeiro citado, de acusar de serventuários do Estado fascista o “escol de pensadores que quiseram resgatar o génio nacional”, esses que, como José Marinho e Álvaro Ribeiro, se viram condenados à maneira mais dura de ganhar o pão e sempre tiveram fechadas as portas do lauto banquete em que “fascistas” e “vítimas dos fascistas” alegremente e odiosamente se banqueteavam juntos. Já é tempo de dizer estas verdades, que não são verdades sem pressa. Como é tempo de descrever os tais das “benesses que depois vieram a receber sem as merecerem”, como diz Gaspar Simões.



Saragago e E. Lourenço. Ver 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8






Pena é que Gaspar Simões tenha ignorado que a condenação de que José Marinho foi vítima, não se deveu apenas à recusa de assinar o telegrama a Salazar que todos os funcionários públicos então assinaram. É que ele, e com ele Almeida Braga, acrescentaram a esta recusa o envio de um outro telegrama que mais profundamente feriu o ditador. E pena é que também tenha ignorado que quando, depois do 25 de Abril, os assaltantes das “benesses que não mereceram” vieram incitar José Marinho a também apresentar a sua conta – os ordenados de cerca de 50 anos de professor do liceu, mais as respectivas actualizações, indemnizações, etc., somando uma verba de alguns milhares de contos – ele viu nisso uma indignada moral e recusou-se a fazê-lo.

Afirma também Gaspar Simões que José Marinho foi uma das “inteligências que o fascismo aniquilou” e que o posterior social-fascismo “enterrou… vivo”. Ora a verdade é que não houve, não há e não haverá forma alguma de totalitarismo que tenha poder para aniquilar inteligências como a de José Marinho. O que dele ficou no mundo – e aí estão os seus livros, os seus discípulos e os seus epígonos – é prova provada dessa impotência da política que por vezes desperta o desespero sanguinário dos políticos.

Entende, finalmente, Gaspar Simões que José Marinho, “frustrado como professor, homem espantosamente dotado para o professar teórico e especulativo do pensar filosófico, se viu condenado à escrita”. Parece assim ignorar o que foi, durante uma vida inteira e diariamente, o convívio dialogante travado entre Marinho e Álvaro Ribeiro e o que foi o magistério oral que, também durante a vida inteira e diariamente, José Marinho exerceu junto de sucessivas gerações.

Com tudo isto, não deixa de ser um nobre e leal artigo o de Gaspar Simões. É ele também mais um sinal de que, embora com seus vagares, a verdade vai abrindo caminho. E, aqui, este abrir caminho coincide com o facto de terem sido os últimos oitenta anos o período mais fecundo e original de toda a história espiritual portuguesa. Nele surgiram três dos seus quatro maiores poetas, Pascoaes, Pessoa  e Régio – e os seus três maiores pensadores: Leonardo, Marinho e Álvaro Ribeiro. É certo que, no mesmo período, o manto da “Senhora da Noite”, que Pascoaes via aproximar-se, ou da “noite antiquíssima”, que Pessoa invocava, traz consigo o “finis Patriae” desacertamente descrito por Junqueiro. Mas devemos também aqui lembrar a antiga sabedoria que um dos filósofos citados por Gaspar Simões gostava de lembrar: a de que o pássaro de Minerva levanta voo ao anoitecer.

Poderá o mundo ignorar a aventura espiritual vivida no anoitecer do nosso povo. Bastará, porém, que os portugueses se não vejam impedidos de a conhecer. Porque, como dizia Régio, “o mundo é vasto mas repete-se, e é fácil esgotá-lo…”. (in O Diabo, Lisboa, 26 de Outubro, 1982, p. 4).




Nenhum comentário:

Postar um comentário