Várias vezes, com efeito, empreguei a expressão «filosofia portuguesa», quer em escritos de obscura sorte, quer em perdida palavra para ouvidos atentos e desatentos.
As condições melhoraram. É já possível falar-se de «filosofia portuguesa»: tal expressão começa a ter sentido ou aparece susceptível de alcançar algum sentido. Não certamente porque as pessoas interessadas reconheçam a legitimidade do conceito que pela expressão se traduz, mas porque não inferem já de lê-la ou ouvi-la claro sinal de que, quem a escreve ou profere, é um fantasista ou pessoa animada de inconfessáveis desígnios.
Sem dúvida, di-lo-ei desde agora, a defesa ou propugnação de uma filosofia portuguesa pode suscitar equívocos compromissos com o nacionalismo político, sem dúvida pode ela na aparência ou na bem real realidade favorecer a causa mesquinha do nacionalismo estreito. O «57», para que escrevo, já neste ponto procurou definir doutrina no seu número anterior. Contra o que temos visto em Portugal nos últimos anos, a tónica foi posta sobre pátria e patriotismo, não sobre nação e nacionalismo. Posso, pois, nos meus próprios termos exprimir aqui mesmo a minha tese valorativa da filosofia nacional, no sentido adiante explicado, tese por igual adversa a toda a espécie de nacionalismo biológico, tradicionalista ou pequenamente jurídico.
(...) Sempre me pareceu, ao considerar este debate tantas vezes surdo, mas como todos, sequioso de ar livre, contrastaria e ventilação, e honras sejam a Eduardo Lourenço e Joel Serrão por o terem aberto e francamente proposto*, debate travado principalmente em torno da notável obra de propedêutica filosófica de Álvaro Ribeiro, pois foi este subtil e bem informado pensador quem pôs o problema entre nós com toda a acuidade - que os adversários da filosofia portuguesa, diversamente atentos, três tópicos essenciais desatendem, a saber:
1.º Que o problema da filosofia portuguesa não é, em todo o sentido, problema estrita e restritamente português, mas um problema de âmbito mais geral e bem mais geral sentido;
2.º Que o haver laranjas de Setúbal, assim como nos permite e nos autoriza chamar-lhe laranjas portuguesas do mesmo passo aos deliciosos frutos e seu conceito não retira à forma única e universal sabor e sentido;
3.º Que afirmar a existência de uma filosofia portuguesa supõe estas duas coisas: uma capacidade própria de filosofar e seu exercício, o encontro de várias formas de análoga propensão em homens e obras diversamente significativas de uma tradição multissecular, tradição inegável ainda mesmo quando, haja de reconhecer-se descontínua, como eu escrevi já, ou difusa e dispersiva, como outros têm escrito (in Estudos sobre o pensamento português contemporâneo, Biblioteca Nacional, 1981, pp. 9-10).
E agora à margem do texto de José Marinho:
Ora, convém ter bem presente que Eduardo Lourenço jamais chegou a debater, aberta e francamente, a obra de Álvaro Ribeiro, antes procurando minorá-la, senão mesmo desqualificá-la. Assim, basta ver como, já em 1946, menoscabara o Problema da Filosofia Portuguesa mediante as mais disparatadas alusões à «técnica de fazer o melhor parafuso», bem como às «camisas ou água de colónia», ou ainda às «batatas da Dinamarca e [aos] automóveis de Detroit» (cf. Vêrtice, Vol. II, f. 7, Coimbra, Maio 1946).
Além de que, E. Lourenço não ficou por aí, uma vez que, já no pós-25 de Abril de 1974, chegou a sugerir o carácter solidário da filosofia portuguesa com o "fascismo" (cf. O Labirinto da Saudade, Círculo de Leitores, 1988, p. 35). Depois, também não deixa de ser igualmente espantoso como um abalizado escritor de informação meticulosa, como é Pinharanda Gomes, tenha deixado escrito que «Eduardo Lourenço admite que o movimento [da filosofia portuguesa] possa ter sido, por equívoco, suspeito de ligação à cultura do regime» (in A “Escola Portuense", Caixotim Edições, 2005, p. 12).
Depois, nem António Quadros sairia incólume perante a pérfida acusação de haver radicalizado, nos termos mais cegos e dementes, uma política imperial, sobretudo quando se sabe que o filho de António Ferro manteve, em variadíssimos aspectos, uma reserva suficientemente crítica face a Salazar e ao regime do Estado Novo. Nisto, a comprová-lo está uma carta de António Quadros, datada de 24 de Setembro de 1969, para E. Lourenço, na qual consta o seguinte:
«É possível que as notícias cheguem aí primeiro do que esta carta. Por enquanto (dia 26), a situação é esta: Salazar em coma; Presidente da República multiplicando políticas e démarches; boatos vários a este respeito, o mais insistente dos quais é o de que o candidato nº 1 é o Marcello Caetano, que se propõe uma certa liberalização (…) E, curiosamente, ambiente de calma. Mau grado o fogo de vista da imprensa e da rádio, a verdade é que o povo parece anestesiado. (…) Da Oposição, nada: nem um manifesto, nem um cartaz, nem uma folha clandestina. (…) Perdemos o sentido da Política e da História. Durante 40 anos fomos conduzidos pela mão por um Pai que sempre nos dominou com facilidade. Tudo o que sabemos fazer é interrogar os cinco minutos seguintes: morrerá, não morrerá? Quem será o Delfim? E é tudo. Os próprios críticos perderam a experiência da crítica. Os democratas não sabem que é e como se vive em democracia. Tenho a impressão de que todos os protestos eram atitudes, não actos e de que agora, os inimigos do velho Rei não sabem o que fazer...».
Além disso, convém ainda não deixar em branco o alegado «pecado de anti-comunismo» atribuído por Eduardo Prado Coelho a António Quadros, mais precisamente a um mês antes da ditadura gonçalvista. E, por fim, o que João Medina exarou em «Portugalinho ou Portugal?», a saber:
«… Fico na dúvida se o fito essencial do maior filósofo de Paio Pires seria, afinal, o de visar um director-geral em funções no Palácio Foz, onde outrora pontificavam os Ferros...» (in Diário Popular, 9-12-1976).
António Quadros |
Nenhum comentário:
Postar um comentário