domingo, 31 de janeiro de 2010

A Arte de Continuar Português (i)

Escrito por António Quadros




Exposição do Mundo Português (23 de Junho - 2 de Dezembro de 1940).


É certo que o Estado Novo de Salazar se reclamou de uma missão nacional e de uma consciência patriótica supra-partidária, justificando-se na necessidade de sanar o clima de desordem e de ineficácia da I República, na urgência de reorganizar a sociedade e o Estado, no dever de restaurar valores espirituais, religiosos e tradicionais atacados pelo positivismo republicano e enfim no dever de lutar pela soberania portuguesa aquém e além-mar.

Mas sendo o absolutismo o factor dominante na sua prática política, tudo ficou sempre condicionado por uma estrutura em pirâmide, por um poder pessoal autocrático, por uma aliança tácita deste poder com grupos económicos que extrapolaram para formas de pressão política e em última análise pelas idiossincrasias e convicções particulares do chefe carismático ou do rei sem coroa, reflectidas em ondas desde o topo até às bases de sustentação da pirâmide.

Não se pode honestamente pôr em dúvida o portuguesismo e a consciência patriótica de Salazar e dos seus colaboradores mais sinceros, mas o facto é que estamos hoje a pagar as consequências do dogmatismo que adoptou e manteve obstinadamente até ao fim.

Por certo que a específica situação político-económica que herdou ao assumir o poder exigia medidas autoritárias no sentido de restabelecer o prestígio do Estado, de se equilibrar a vida financeira e administrativa do país e de se fazer uma pausa para pensar e pôr em prática um projecto nacional capaz de reunir a família portuguesa descrente e desavinda; sem dúvida que a peculiar distribuição nacional por quatro continentes, estendendo-se a nossa administração desde Lisboa até à África, à Ásia e à Oceania, a partir de uma Metrópole centralizadora e distante, ela própria debatendo-se com desequilíbrios e carências, obrigou a soluções peculiares, muito diversas naturalmente das que poderiam encontrar-se nos compêndios ou das que, mais tarde, seriam propostas pelo anti-colonialismo indiferenciante das Nações Unidas, das grandes potências imperiais ou dos povos do dito Terceiro Mundo; é verdade que Salazar foi um hábil estratega e um extraordinário diplomata, tendo vencido sucessivamente todos os obstáculos semeados no seu caminho, todas as batalhas que lhe impuseram, todas as ciladas que lhe armaram, conservando-se e até fortalecendo-se enquanto foi actuante e viva a estrutura pluri-continental da nação, mau grado a guerrilha incómoda mas não decisiva nos Estados de Angola e de Moçambique ou a oposição internacional sistemática à sua política, contrabalançada aliás pelos pactos discretos que lograra obter em aspectos fundamentais.


Mas apesar de em sua vida ter triunfado constantemente no terreno, a política global de Salazar resultou no mais completo fracasso e todas as vitórias que teve se esboroaram depois da sua morte.

A Revolução Nacional de 28 de Maio tinha-se feito contra a esterilidade do parlamentarismo democrático, tal como entre nós vigorara entre 1910 e 1926; Salazar pertencia a uma geração, ou melhor dito, a um sector que recobrara forças com a falência desse sistema e que não acreditava nele: daí nunca ter dado um passo para o restaurar.

Mas, não tendo ele próprio procurado o consenso nacional que só poderia advir de uma renovada proposta política, os seus sucessores, quaisquer que eles fossem, ficariam inevitavelmente numa posição de enorme dificuldade e de extrema ambiguidade, divididos entre a tentação de o continuar, o que era impossível nos mesmos termos doutrinários e pessoalistas, e a necessidade de romper com o seu domínio moral e com o seu esquema político para fazer evoluir as instituições portuguesas, o que só seria viável com a conversão interior de toda a classe dirigente portuguesa, despertada por uma reconversão intelectual e estimulada por um estadista de grande envergadura.

Era necessário em suma, ou a aparição de um segundo Salazar (o que era obviamente utópico), ou a mediação de um estadista superior, mas de diferentes objectivos e ideias, capaz de conduzir o país para um regime democrático e pluralista, mas também teleonómico e axionómico de feição nacional, suficientemente forte para garantir a protecção dos nossos interesses e para realizar uma política inteligente, patriótica e evolutiva, aceitável pela maioria dos portugueses e pelas populações dos Estados de expressão lusa.

Pertence hoje ao domínio das evidências que Marcello Caetano nem foi um segundo Salazar, nem teve a capacidade de pensamento e de decisão para enfrentar a crise que herdara, antes a agravando ao permitir que os erros se avolumassem e que o clima moral, intelectual e político da sociedade portuguesa se deteriorasse ainda mais a um ritmo vertiginoso.

Mas, dadas as circunstâncias, seria possível outra coisa? Havia condições para o aparecimento do tal estadista óptimo, que Marcello não soube ou não pôde ser? (in A Arte de Continuar Português, Edições do Templo, 1978, pp. 22-24).


Marcello Caetano





Continua


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