Álvaro Ribeiro, um dos discípulos mais dilectos de Leonardo Coimbra, fala hoje ao nosso jornal. Desnecessário se torna encarecer a obra deste pensador, que nos confessou amargamente: «... sem o pensamento não poderia suportar a amarga obrigação de viver». Ouçamo-lo.
- Qual a opinião de Álvaro Ribeiro sobre a filosofia portuguesa?
- O problema da filosofia portuguesa perdeu já actualidade - respondeu. Enunciado em 1940, a modo de posição crítica perante as comemorações oficiais do duplo centenário da Fundação e da Restauração da Nacionalidade, o seu nacionalismo não obteve a concordância, nem sequer a aceitação, dos intelectuais responsáveis pela doutrinação patriótica. Desde a extrema direita, constituída pelos últimos abencerragens do Integralismo Lusitano, até à extrema esquerda, vagamente desenhada por um ou outro escritor neo-realista ou neo-positivista, todas as correntes de opinião se manifestaram adversas à tese elementar de que sem autonomia cultural não pode haver independência política. Já passaram vinte anos sobre a problemática da filosofia portuguesa. Muito poderia ter sido escrito para fundamentação da cultura nacional. Vinte anos perdidos!... Não foram alteradas as posições dos publicistas. Uns, não querem que haja filosofia portuguesa, e nesse não querer firmam a sua desistência; outros querem que não haja filosofia portuguesa, e nessa hostilidade afirmam a sua resistência. É já muito antiga tal atitude dos nossos publicistas, e dos nossos políticos, perante a filosofia, pelo que convirá não esquecer a decisão do Marquês de Pombal para com a obra, a doutrina e o nome de Aristóteles. Esse facto histórico é significativo...
- Pode apontar algumas das reacções contra a sua proposição?
- Nem entre os professores universitários, nem entre os escritores de ensaios, nem sequer entre os que se dizem discípulos de Leonardo Coimbra, obteve a causa da filosofia portuguesa, do seu discernimento, do seu esclarecimento e da sua exposição, a mínima cooperação leal capaz de servir de fundamento à aventura de uma geração. Confessando a minha queixa, não quero investigar motivos psicológicos, e muito menos arvorar-me em juiz. Certo é, porém, que a filosofia portuguesa adquiriu pleno significado entre alguns pensadores mais novos, entre quantos descontentes com a caducidade, a falsidade e a insinceridade daquele nacionalismo oportunista, ostensivo e superficial que flui por entre tropos rotineiros e previsíveis. Nacionalismo sem filosofia não tem razão de existir. A aprovação da mocidade é sempre agradável, mas duvido muito de que a adesão juvenil possa transformar-se em obstinação inteligente, porque sei muito bem quanto a maturidade é obrigada a respeitar os preconceitos dominantes na sociedade constituída.
- E quais foram esses jovens?
- Refiro-me, evidentemente, aos escritores que fundaram as folhas de cultura intituladas Acto e 57, e aos que dirigiram o movimento de cultura portuguesa, cuja conclusão de despedida ou de desespero figura agora numa série de dissertações enfeixadas no livro «O que é o ideal português». Não me cumpre distinguir pessoas nem declinar nomes, porque só ao próprio será lícito confirmar a sua posição doutrinal. Quando o pensamento aparece submetido às vicissitudes do movimento, ou submergido nas condições do espaço e do tempo, a ninguém surpreende que haja renegação da fé ou desistência de fidelidade...
- ... Negação do princípio do pensamento?
- Creio, não posso deixar de crer, na validade da fórmula bergsonista: «La pensée est le mouvant». Ela corresponde, aliás, à expressão de Hegel «Phaenomenologie des Geistes» (Fenomenologia do Espírito). A consequência obriga-me a estar atento a tudo quanto dizem os homens de pensamento, os chefes, especialmente aqueles que livremente assumem a responsabilidade de decidir sobre os problemas da educação nacional. Além de observar a ascensão dos professores universitários a directores, reitores e ministros, além de coligir com avareza todas as dicções significativas, e as ainda mais significativas contradições que vão surgindo ao longo dos discursos, examino de patriótica mente a legislação destinada à formação moral e intelectual das sucessivas gerações. Apraz-me comparar as constantes e as variáveis da opinião pública, para discernir a oculta mas originária verdade. Eis um prazer que aos homens novos não é dado fruir...
- Tem alguma coisa a publicar?
- É-me difícil responder a essa pergunta. A publicação não depende de mim, depende da iniciativa dos editores, perante os quais não me encontro de momento favorecido. Direi apenas que continuo a escrever, talvez a preparar novos livros, porque escrevendo vou mantendo a esperança de comunicar com os vindouros, mas procuro, acima de tudo, pensar a liberdade com que Deus me gratifica em momentos raros, já que sem o pensamento não poderia suportar a amarga obrigação de viver («O problema da filosofia portuguesa perdeu já a actualidade», in Diário Ilustrado, 20 de Dez. de 1962).
Álvaro Ribeiro |
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