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terça-feira, 29 de novembro de 2011

A Verdade do Amor (ii)

Escrito por Vladimiro Soloviev

 



«Os teus olhos!

Sabes lá o que são os teus olhos!

Se soubesses, andavas na vida sem nunca cerrares as pálpebras para que ninguém fosse ao frio e infeliz.

(...) Os teus olhos: janelas onde se debruça Deus a espreitar os caminhos e a encher de madressilvas a pobreza dos que passam.

Não faças caso, meu Amor, não faças caso de mim, não te quero para o meu egoísmo: olha o mundo e seus caminhos amargosos, e os pobres serão ricos e o cardo ressequido será açucena e cotovia, fonte a murmurar ternuras e Aurora a doirar os montes».


Leonardo Coimbra («Adoração»).


«(...) el amor es um hecho poco frecuente y un sentimiento que sólo ciertas almas pueden llegar a sentir; en rigor, un talento específico que algunos seres poseen, el cual se da de ordinario unido a otros talentos, pero puede ocurrir aislado y sin ellos.

(...) Hay que ser vitalmente curioso de humanidad, y de ésta en la forma más concreta: la persona como totalidad viviente, como módulo individual de existencia. Sin esta curiosidad, passarán ante nosotros las criaturas más egregias y no nos percataremos. La lámpara siempre encedida de las vírgenes evangélicas es el símbolo de esta virtud que constituye como el umbral del amor».


José Ortega y Gasset («Estudios sobre el Amor»).


«Nos animais, a vida do género tem primado absoluto sobre a vida do indivíduo: é por isso que a manifestação mais intensa da vida individual se realiza para mero benefício do desenvolvimento da espécie.

(…) Graças ao poder ilimitado de extensão e de continuidade, da sua constância no estado sucessivo, o homem, sem perder a sua identidade, pode apreender e realizar a plenitude ilimitada da existência, e, por esta razão, consideramos inúteis e impossíveis todos os seres que pretendessem vir substituí-lo. Nos limites da sua realidade corpórea, o homem não representa mais do que uma parte da natureza, mas ultrapassa fatal e constantemente estes limites; nas suas produções espirituais – religião, ciência, moralidade e arte –, mostra-se ser o centro da consciência geral da natureza, a alma do mundo, o estado de potência que se actualiza no todo; se assim é, só o próprio e verdadeiro absoluto, no seu acto perfeito ou na sua perfeita existência – referimo-nos a Deus –, lhe pode ser superior».


Vladimiro Soloviev








IMANÊNCIA E TRANSCENDÊNCIA DA VERDADE

O privilégio de que o homem goza, em relação aos outros entes naturais – a faculdade de conhecer e de realizar a verdade –, compete não só à raça, mas também ao indivíduo. Todos os homens são capazes de conhecer e realizar a verdade, cada qual pode vir a ser um vivo reflexo do conjunto integral absoluto, universal. O resto da natureza também possui a verdade (ou a imagem de Deus), mas imanente na generalidade objectiva, porque permanece ignorada dos entes particulares. É esta verdade que os forma, que actua dentro deles, através deles, como uma força fatal, como a lei da sua existência, lei que eles desconhecem, lei a que se submetem involuntariamente. Eles não podem, no seu sentimento e na sua consciência interna, erguer-se para além da existência limitada; encontram-se num estado particular de isolamento em relação a tudo, e, por conseguinte, fora da verdade. Eis por que a verdade, ou o que é geral, não pode nesses seres triunfar senão pela substituição sucessiva das gerações, pelo desaparecimento de cada vida individual, que não é portadora de verdade. Dá-se o contrário com a personalidade humana. Esta compreende dentro de si a verdade e não pode ser suprimida por ela; afirma-se, conserva-se e aperfeiçoa-se exactamente quando triunfa a verdade.

Ora, para que o ser individual encontre a sua justificação e a sua confirmação na verdade – na unidade de tudo –, tem que existir no seio da verdade, enquanto que original e imediatamente, o homem individual, como o animal, não se encontra no seio da verdade. O homem começa por se encontrar a si próprio, tal como uma partícula isolada do conjunto integral universal, como se ele conseguisse tornar-se um todo em si próprio ao isolar-se de tudo, colocando-se, portanto, fora da verdade. O egoísmo, princípio real, fundamental, da vida individual, penetra-a, dirige-a inteiramente, e determina tudo concretamente. É por esta razão que a consciência teórica da verdade não pode esmagá-lo, nem suprimi-lo. Enquanto a viva força do egoísmo não encontrar no homem outra força viva, oposta à primeira, a consciência da verdade não constituirá mais do que uma iluminação exterior, reflexo de uma luz estrangeira. Se o homem só compreendesse a verdade pela cultura, o vínculo entre a sua individualidade e a verdade não seria interior e indissolúvel; e se o seu próprio ser ficasse, como o animal, fora da verdade, seria como este, condenado à ruína, não se conservando mais do que como uma ideia no pensamento do Espírito Absoluto.






A verdade que, como uma força viva, se apodera do ser interior da pessoa, e depois a liberta da falsa afirmação de si própria, tem o nome de amor. O amor, entendido como efectiva abolição do egoísmo, constitui a verdadeira justificação da individualidade, a sua salvação real. O amor é mais amplo do que a consciência racional, mas, sem a razão, não poderia actuar como força interna salutar, que dignifica a individualidade sem a aniquilar. Só graças à consciência racional (ou, o que é a mesma coisa, graças à consciência da verdade) é que o homem pode separar do seu egoísmo a sua própria personalidade, quer dizer, a sua verdadeira individualidade. Por esta razão, ao sacrificar este egoísmo, ao dar-se por entrega ao amor, é que o homem adquire não só uma força viva mas também uma força vivificante; longe de perder o seu ser individual, encontra-o e torna-o eterno.

No mundo dos animais, que não são dotados de consciência racional, a verdade que se realiza no amor não encontra ponto de apoio interno para a sua acção; não pode agir directamente sobre os animais senão como força exterior e fatal, força que se apodera deles como de instrumentos cegos para fins cósmicos que lhes permanecem estranhos; o amor surge então como uma vitória unilateral do que é geral e genérico sobre o individual, tanto mais que nesses entes, o individual coincide com o egoísmo pelo carácter imediato da existência particular, tanto mais que, pela mesma razão, desaparecem ambos ao mesmo tempo.


EGOÍSMO E ALTRUÍSMO

De um modo geral, poderemos dizer que o intento do amor humano é a justificação e a salvação da individualidade pelo sacrifício do egoísmo. A partir desta base ser-nos-á possível resolver o problema a que nos cingimos: explicar a verdade do amor sexual. Há razão para que as relações dos sexos humanos possam em muitos casos merecer o nome de amor, e também não é sem razão que, na opinião geral, elas representem e simbolizem o amor por excelência, que sejam propostas como tipo e ideal de todas as outras espécies de amor (ver Cântico dos Cânticos e o Apocalipse).

 




A falsidade e o mal do egoísmo não consistem de modo algum no facto de uma pessoa atribuir a si própria uma importância absoluta e uma dignidade infinita; ao proceder assim procede ela com razão, porque cada ser humano, sendo um centro independente de forças vivas, capaz de realizar uma perfeição infinita, como ser que pode conter a verdade absoluta na sua consciência e na sua vida, possui por esta qualidade uma importância e uma dignidade absolutas, apresenta algo de absolutamente insubstituível, cujo valor nem sequer pode ser apreciado. Tal é a palavra do Evangelho: «Que daria um homem em troca da sua alma?» (Mateus, XVI, 26). Não reconhecer esta importância absoluta da pessoa humana, não a reconhecer em si próprio, equivale para o homem à renúncia de toda a dignidade; é este o erro primordial, o erro pelo qual entra na alma a descrença. Será sempre um pusilânime aquele que nem sequer tiver força de acreditar em si próprio: como poderá acreditar em mais alguém?

A mentira fundamental e o mal do egoísmo não consistem naquela consciência e nesta apreciação absolutas de si próprio; consistem na injusta recusa de cada homem reconhecer aos outros a mesma importância absoluta; lá porque se julga no centro da vida social, com toda a razão, o homem egoísta contacta e contrata com os outros apenas em superfície, porque lhes atribui um valor periférico e relativo.

A razão proclama igualdade completa de todos os direitos humanos, e quem não perde a razão assume consciência da verdade deste princípio; mas no íntimo da sua vida, no seu sentimento interior e no seu procedimento moral, o egoísta afirma uma diferença imensa, a total incomensurabilidade, entre ele e o próximo; tudo para si, nada para os outros.

Ao insistir nesta absolutidade sem reciprocidade, o homem torna impossível a realização do que afirma. O trânsito da potência ao acto depende exactamente de atribuir aos outros a importância que se atribui a si próprio. Deus é tudo, quer dizer, num só acto absoluto possui todo o conteúdo positivo da potência, toda a plenitude da existência. O ente humano, em geral, é cada homem individual, em particular, estando qualificado como uma certa pessoa e não como outra qualquer, pode vir a ser tudo; mas para isso terá de abater na sua consciência e na sua vida os limites que o isolam de outrem. Ao dilatar-se terá que interessar os outros; com todos terá de realizar a sua significação absoluta, a qual consiste em tornar-se uma parte individual e insubstituível do conjunto, um órgão vivo, independente e original de uma vida absoluta.

A verdadeira individualidade é uma certa e determinada imagem de uma unidade geral, um certo modo de recepção e de assimilação do todo. Quando se afirma liberto de todas as coisas, quando diz que se basta a si próprio, o homem renega o princípio da sua própria existência, esvazia de conteúdo a sua verdadeira vida, e transforma a sua individualidade numa forma vã. Assim é que o egoísmo, longe de significar a consciência e a afirmação da individualidade, representa a abnegação e a anulação do verdadeiro ser humano.


As condições metafísicas e físicas, históricas e sociais da existência humana operam sobre o nosso egoísmo, que enfraquecem, opondo-lhe várias e fortes barreiras, ou mostrando-lhe a fealdade dos seus efeitos nocivos. Mas todo este sistema complicado de barreiras e correcções desejado pela Providência, realizado pela natureza e pela história, não fere o egoísmo no seu cerne. O egoísmo permanece sempre ao abrigo das convenções sociais e da moral humana para voltar a manifestar-se claramente, quando a ocasião lhe for propícia. Há só no mundo uma força capaz de extirpar o egoísmo da alma humana, de o secar nas suas raízes, e de o queimar completamente: essa força é o amor, mas principalmente o amor sexual.

A mentira e o mal do egoísmo consistem no reconhecimento da importância absoluta do eu, seguido de um exclusivismo tal que negue e contradiga a mesma importância nos outros; a razão não cessa de mostrar a inanidade, a iniquidade e a injustiça dessa atitude; mas só o amor é capaz de a corrigir e de a abolir, porque contra a nossa vontade nos obriga a reconhecer a importância absoluta que outra pessoa deve ter para nós, não já como tese racional a admitir abstractamente pela consciência, mas como sentimento íntimo e motivo propulsor da nossa vida. Ao reconhecer pelo amor a verdade de outra pessoa, não já abstractamente mas concretamente, essencialmente, ao transferir o centro da vida para além dos limites da individualidade empírica, manifestamos e realizamos a nossa própria verdade, a nossa significação absoluta, que consiste precisamente na aptidão para ultrapassar os limites da existência fenomenal, na capacidade de viver não só em si e para si, mas também em outra e para outra pessoa.

O amor é a manifestação desta aptidão. Nem todos os amores a manifestam no mesmo grau, e raros amores conseguem destruir o egoísmo até à raiz. O egoísmo é uma força, não só uma força real mas também fundamental com raízes no centro mais íntimo da nossa existência com ramificações que abraçam e envolvem toda a nossa realidade, enfim, uma força que actua sem cessar sobre todos os pormenores e todas as particularidades da vida humana. Só outra força a pode anular, só outra força que também se apodere de todo o nosso ser e que o penetre até ao cerne, só o amor pode vencer o egoísmo. Ora para redimir ou libertar a nossa individualidade das cadeias do egoísmo, o amor tem de lhe ser comparativo ou proporcional, tem de encarnar num ser tão real, concreto e objectivo como nós próprios, e ao mesmo tempo, de se distinguir de nós como outra realidade, em suma, possuindo completamente o mesmo conteúdo essencial que nós possuímos, possuí-lo de outra forma, de outra maneira ou de outro modo. Cada manifestação do nosso ser, cada acto vital estará em relação com outra manifestação semelhante, o que não quer dizer idêntica; haverá então permuta constante, conformação completa e constante do próprio ser no ser alheio, acção recíproca e comunhão perfeita. Só assim poderá ser extirpado o egoísmo, e depois extinto, não somente em princípio doutrinário mas em toda a realidade concreta. Esta união ou, por assim dizer, esta combinação química de dois seres homogéneos e equivalentes, mas formalmente diferentes em todos os seus caracteres, é que torna possível, tanto na ordem da natureza como na ordem do espírito, a criação de um novo homem, a realização efectiva da verdadeira individualidade humana. Uma união como essa, ou, pelo menos, a sua mais próxima semelhança, é a que observamos no amor sexual. Eis porque lhe atribuímos uma significação e uma importância exclusiva, pois nela vemos o fundamento necessário e insubstituível do aperfeiçoamento ulterior, a sua condição indispensável e constante. Ao realizar esta condição é que o homem pode realmente viver na verdade.


O AMOR E OS SEUS FICTÍCIOS SUBSTITUTOS


Vyasa. Ver aqui


Um falso espiritualismo e um impotente moralismo desejariam substituir a uma indiferença o amor sexual por outras espécies de amor. Sem desconhecer a maior importância e a alta dignidade de superior vida amativa, que não discutimos no âmbito deste nosso escrito, confessamos parecer-nos que só o amor sexual poderá dar plena satisfação às duas exigências fundamentais que tornam possível a supressão definitiva do egoísmo na comunhão plena da vida com outra pessoa.

Em todas as outras espécies de amor faltam a homogeneidade, a igualdade e a reciprocidade entre o amante e o amado, como faltam também as diferenças multiformes dos traços característicos que mutuamente se completam.

É assim que, no amor místico, o objecto do amor reduz-se finalmente a uma indiferença absoluta que absorve a individualidade humana; neste amor, o egoísmo parece insuficientemente anulado, tanto quanto o parece num sono profundo; é efectivamente com o sono que nos Upanishedas e no Vedanta se compara a união da alma individual com o espírito universal, quando os textos não se referem claramente a uma identificação. Entre o ser humano e o Abismo místico, apesar da heterogeneidade completa e da incomensurabilidade de dimensões, não são possíveis nem a compatibilidade de existências nem a comunhão de vivências: permanece muito mais o objecto do amor do que o sujeito, porque o amante ao perder a sua personalidade, também desaparece, cai num sono profundo sem imagens.

Logo que desperta, desvanece-se o objecto do seu amor; então, em vez da indiferença absoluta, começa a multiplicidade da vida real a projectar-se num fundo de egoísmo pessoal, de egoísmo com laivos de orgulho espiritual. A história relata casos de místicos, e até de completas escolas místicas, em que o objecto de amor já não era visto como indiferença absoluta, mas segundo formas diferenciadas e concretas, que tornavam possível a existência de relações humanas. Observação curiosa é a de que tais relações tendiam para apresentar caracteres evidentes de amor sexual.

O amor paternal, e mais ainda o amor maternal, assemelham-se ao amor sexual, tanto pela intensidade do sentimento como pelo carácter concreto do objecto; mas, por outros motivos, não podem oferecer ao ente humano um valor tão alto como o do amor conjugal. O amor dos pais está condicionado pela repartição entre os filhos e pela lei das sucessivas gerações, o que também é dominante na vida animal, mas que não tem – ou, pelo menos, não deve ter –, tal importância na vida humana. Nos animais, a geração seguinte suprime directa e rapidamente os seus predecessores, cuja existência considera absurda aos olhos dos sucessores. A mulher realiza por vezes o amor maternal em grau tão elevado de sacrifício pessoal que não logra semelhante entre as aves e os mamíferos superiores, o que significa certamente um estádio necessário na ordem das coisas. Seja como for, o que é certo é que no amor maternal não pode haver completa reciprocidade, nem comunhão de vida pela simples razão de pertencerem a gerações diferentes aquela que ama e aqueles que são amados. A vida tem preparada, para estes casos, novos interesses e tarefas independentes; projecta-se no futuro; por isso eles não podem ver nos representantes do passado mais do que sombras movediças e estranhas. Temos de nos convencer de que os filhos não vivem para a realização da felicidade dos pais. A mãe, ao dedicar-se de alma inteira aos filhos, sacrifica o seu egoísmo, mas também perde ao mesmo tempo a sua individualidade. Não assim quanto aos filhos, porque ainda quando correspondem amorosamente ao amor maternal, conservam o seu egoísmo que vão a pouco e pouco reforçando. Além disso, o amor maternal, a dizer a verdade, não reconhece a importância absoluta do ente amado, nem lhe respeita a personalidade. A mãe preza acima de tudo o seu filho, porque é seu, porque lhe é próprio e propriedade – tal como acontece em todas as espécies animais. Nisto vemos a prova de que, para admitir, reconhecer e respeitar o valor absoluto da pessoa humana, é indispensável que esta apareça revestida de exteriores condições fisiológicas.


Respeitamos o amor místico e o amor por consaguinidade, que não podem ter a pretensão de substituir o amor sexual, mas ainda menos do que eles podem ter tal propósito os outros sentimentos simpáticos de que vamos falar.

Falta à amizade entre pessoas do mesmo sexo a distinção formal das qualidades que se completam mutuamente. Quando a amizade se torna por demais intensa e expressiva, logo se transforma num sucedâneo de amor sexual, e tende para vícios contrários à natureza.

Quanto ao patriotismo e ao humanitarismo, que são muito mais ideologias do que sentimentos, não lhes negamos a existência de factores da vida afectiva, mas afirmamos que não podem extirpar de modo concreto e completo o egoísmo do ente humano, porque a tal não é propícia a incomensurabilidade entre o amante e o amado. Por muito que pareçam personificadas a Pátria e a Humanidade, certo é que elas não podem constituir um objecto capaz de ser concretamente cingido pelos braços humanos. Se é certo que um homem pode morrer para se sacrificar pela Pátria ou pela Humanidade, e se também lhe pode dedicar a vida inteira, o que já é mais difícil, não é verdade que tal amor tenha por consequência a procriação de um novo ente humano, nem a sublimação do egoísmo para manifestar e realizar a liberdade da pessoa humana. O velho eu, permanece no centro da alma, não morre para deixar nascer o novo homem, porque o patriotismo e o humanitarismo são repelidos para a periferia da consciência, como ideias, ideais ou ideologias, simbolizadas pelas palavras Pátria ou Humanidade.

Crítica análoga se poderia fazer às expressões erróneas do amor da ciência, da arte e de outras entidades paralelas.

O verdadeiro amor é o amor sexual, e caracteriza-se pela superioridade em relação aos sentimentos do mesmo género, e por contraste com as falsas e fictícias expressões do amor… (in ob. cit., pp. 54-65).

sábado, 26 de novembro de 2011

A Verdade do Amor (i)

Escrito por Vladimiro Soloviev





Vladimiro Soloviev



Apresentação de Álvaro Ribeiro

«(...) A liberdade humana, quer dizer, a liberdade do indivíduo, mas também a da família, a do trabalho, a da corporação, consideradas em totalidade religiosa, convergem para um destino, uma tendência ou um fim que se realiza pelo Amor. A ideia do amor, segundo Vladimiro Soloviev, é daquelas a que o homem nunca poderia chegar só pelos recursos da sua inteligência finita, quer dizer, é uma ideia que nem todos os homens ainda entendem, um mistério que nos foi sugerido pela revelação. Efectivamente, observamos que, submetida à lei dos três estados, a ideia do amor desaparece do pensamento humano, visto que a respectiva palavra não tem correspondente noção no quadro positivo da classificação das ciências. Será de mínima importância a objecção de que a ideia do amor ressurge na síntese subjectiva e na religião da humanidade, antecedendo até a ordem e o progresso, porque as últimas expressões do pensamento de Augusto Comte não foram duradouros factores do positivismo dominante na propaganda republicana.

Excluir um problema do domínio do pensamento, e da filosofia, não é o mesmo que eliminá-lo por destituído de significação, segundo o dogmatismo lógico dos novos positivistas; excluir um problema do domínio do pensamento é transferi-lo para o domínio do sentimento, e da literatura, segundo o criticismo dos novos existencialistas. O amor é um problema perene que pressupõe uma verdade; enquanto tal problema não for resolvido pela filosofia, há-de sempre preocupar a literatura.


Meditemos francamente na leviandade com que os literatos escrevem a respeito do amor alheio, convencidos de que observam, conjecturam ou imaginam o verdadeiro aspecto da realidade. É o amor um tema obrigatório das poesias, dos diários e dos romances, ou um ingrediente indispensável das peças de teatro, dos filmes e de outros espectáculos. Há que descobrir o significado oculto desta ocupação e desta preocupação, para que não pareça ridícula, fútil e absurda a insistência dos literatos numa temática que se repete através dos séculos, com agrado, sucesso e êxito entre os mesmos leitores. Reduzida às suas linhas essenciais, a narrativa do amor cai num esquema tão simples ou simplista que enfada até a leitora menos exigente. Com efeito, realizada a apresentação dos amantes, é logo de prever o curso normal dos diálogos e a sucessão habitual dos acontecimentos. Certo é que o engenho do escritor tem de estar aplicado aos elementos estranhos à narrativa amorosa que densificam, complicam e valorizam a contextura da obra de arte; mas os sérios problemas que atormentam a humanidade só logram ser enunciados na literatura quando aliados à constante temática erótica. Dir-se-ia até que a verdade da literatura está na verdade do amor.


Este problema não tem solução positiva. O homem de letras que, em horas de estudo mais amplo, analisou as teses de Balzac, Michelet ou Stendhal sobre a psicologia do amor e a sociologia do casamento, está apto a concluir que é indispensável ascender ao estado metafísico, ou até ao estado teológico, para descobrir enfim uma solução verosímil do problema que tanto preocupa leitores como escritores. Sabemos que o método filosófico é exactamente o contrário da lei dos três estados de Augusto Comte, porque historiar é muito diferente de filosofar. Adversário dos positivistas, Vladimiro Soloviev situou o problema do amor no estado metafísico, conforme o Simpósio de Platão, mas viu depois que ele corresponde a um mistério de teologia, conforme a Bíblia inspirada por Deus.



A crença é livre, e ainda mais livre a fé. Quem escolhe uma crença, que aos outros parece irracional, ridícula ou imoral, adopta-a e assimila-a porque nela vê um princípio explicativo do que parece inexplicável nos quadros agnósticos da positividade. Vladimiro Soloviev, na genealogia de muitos pensadores que alguns eruditos chamam precursores, admitiu a tese de que o amor humano, erótico e sexual, está dramaticamente prefigurado e explicado nos primeiros capítulos do Génesis. Efectivamente, a imortalidade de Adão, a proveniência carnal de Eva, o pecado original, etc., continuam a ser altas verdades que a Igreja Católica defende dos detractores da Bíblia e de quantos pretendem que as doutrinas tradicionais sejam filtradas pela razão positivista, limitada e abstracta, enfim, pela razão separada da fé. É indispensável, porém, acrescentar que só o amor paradigmático de Adão e Eva, teologicamente vivo no nosso culto, na nossa cultura e na nossa civilização, poderá explicar que as variações da narrativa amorosa constituam primordial temática das obras literárias. Em todos nós existe a vida inconsciente desse mistério, que desejaríamos esclarecer na leitura infatigável dos livros sagrados e profanos.

A doutrinação catequística e apologética raras vezes concorre com a divulgação literária para actualizar a teologia do matrimónio. Tal desencontro nos parece mortífero para a ordem religiosa. Aos adolescentes, àqueles que sofrem durante o prazo que vai da puberdade à nubilidade, não lhes é ministrada oportunamente a doutrina que robustece a fé. Correm licenciosamente falsidades, erros e absurdos acerca do preceito monogâmico e da constituição da família, ocorrem porque aos adolescentes são por acaso ensinados os motivos fisiológicos e sociológicos de um movimento cujo motor só é explicável pela teologia.

Ensinar, como por vezes se diz, que o fim principal do matrimónio é a procriação e a educação dos filhos corresponde a rebaixar ao nível de uma biologia naturalista a doutrina de um sacramento que é superiormente, um processo de redenção. Esquecem alguns teólogos que o pecado original foi praticado por Eva e por Adão, em condições incomparáveis com a presente configuração naturalista do homem e da mulher. Só a impiedade dos artistas plásticos se permite dar uma figuração histórica ao homem pré-histórico. Esquecem, consequentemente, os maus teólogos que o matrimónio é um sacramento de redenção, o qual abra via a um certo número de graças que os cônjuges transmitem uns aos outros. Esquecem também a razão do divórcio, palavra que significa divisão ou separação, cuja desgraça precede o pecado de adultério.

Ao confundir um sacramento com um acto jurídico, ao confundir a mediação das graças com os fios de parentesco pelos quais de direito transitam os bens materiais que asseguram a economia familiar, fica vulnerada a doutrina religiosa no seu cerne sobrenatural. Depois, facilmente se expande e divulga a peregrina tese de que a maternidade, o casamento e a família resultam de um contrato, necessariamente alterável ou rescindível, e ninguém se ofende com a injúria que na palavra contrato se esconde quando aplicável às relações do homem com a mulher.

Contra tais absurdos, erros e falsidades escreveu Vladimiro Soloviev os cinco artigos que, transformados em capítulos, constituíram livrinho sobre A VERDADE DO AMOR. A refutação, para ficar completa, exigiria o esclarecimento de outras teses que conformam a antropologia do nosso tempo. Este opúsculo, contém, todavia, os elementos suficientes para despertar os homens de boa vontade, para os convidar a nova interpretação da teologia do matrimónio, para os obrigar a rever a legislação civil.



Artur Schopenhauer




Soloviev discute a situação da espécie humana na escala zoológica, demonstra a relativa infecundidade dos animais superiores, e anula a tese de Schopenhauer sobre a astúcia do génio da espécie. O erro materialista consiste em pretender subsumir o amor no instinto de produção. A atracção sexual – de um sexo pelo outro – há-de ser digna de mais alto grau de inteligibilidade. Demonstra depois Soloviev que o amor humano se caracteriza pela eleição de uma pessoa de outro sexo, por uma fidelidade de pensamento, de sentimento e de comportamento que chega a parecer obsessiva e até patológica, enfim por uma série de atributos reconhecidos pelos literatos mas por vezes negados pelos cientistas. Nos lúcidos comentários aos estudos de Kraft Ebbing e Binet sobre as aberrações do instinto sexual, que contrariam e desmentem a astúcia do génio da espécie, o arguto filósofo eslavo de certo modo antecede a psicologia, a psicanálise e a psiquiatria do século XX. A medicina psicossomática veio comprovar que a fenomenologia do amor, mais afectiva do que instintiva, apela por uma ontologia do amor, e quem diz ontologia está prestes a dizer teologia.

O amor humano caracteriza-se pela predilecção e pela fidelidade, e ainda quando tais características não se apresentem com inteira pureza ou não se realizem na totalidade – conforme se pode alegar com a variedade das observações empíricas e com as variantes das narrativas literárias –, certo é que há no amor uma inegável tendência para a monogamia virtual. Soloviev nos seus termos diz que a verdade do amor está na realização da individualidade infinita, da imortalidade da carne redimida, da primitiva santidade de Adão à imagem e semelhança de Deus.

Não discutiremos a teologia do matrimónio, nem a liturgia do matrimónio, que estariam em coerência com a doutrina de Soloviev. Elas adoptam por outro ponto de partida um texto do Novo Testamento para glosar o paralelismo simbólico da relação de Deus com o Universo, de Cristo com a Igreja, e do Homem com a Mulher. Estas três relações correlacionam-se numa só analogia cuja encarnação doutrinal floresceu ao calor da Igreja Ortodoxa; mas é ainda difícil determinar em que medida será lícito expandi-la nos quadros mais lógicos da Igreja Católica.

Insistiremos, porém, no caso paradoxal de os juristas positivistas sofrerem de nostalgia da teologia, mediante sintomas que a análise das imagens revela aos estudiosos do inconsciente e do ininteligente. Lembremo-nos de que o ateísmo de Napoleão I ou dos redactores do Code Civil projectou sobre a legislação da família uma doutrina sombria do egoísmo, utilitarismo e materialismo. A separação entre o Estado e a Igreja, por delimitação de funções praticamente incompatíveis, surgiu assim em corolário lógico daquela doutrina social.



Napoleão



Certo é, porém, que o Estado não pode esquecer a teologia do matrimónio, nem a liturgia do matrimónio, por mais que simule ignorá-las ou substituí-las. A própria legislação da família torna-se ilógica ou absurda, se não tiver fundamento ou se não obtiver complemento na verdade da doutrina religiosa. A literatura romântica dá-nos a prova desta nostalgia do sobrenatural, mostra-nos as vicissitudes da luta contra uma legislação civil sem justiça teológica, e constrói assim uma espécie de apologética e de apostolado que as autoridades eclesiásticas bem poderiam rectificar para utilizar.

É evidente que a predilecção explicativa da fidelidade dos amantes e, consequentemente, da virtual monogamia que o sacramento do matrimónio transforma na realidade da vida conjugal, significam os laços mais fortes e duradouros que podem existir durante a vida terrestre. Com razão animada se diz que a família é a célula social. Quaisquer outras relações mundanas, vinculadas ou não por documento escrito, com ou sem valor jurídico, se nos afiguram contingentes, convertíveis e efémeras, porque dependem mais de cálculos egoístas do que de abnegações amorosas. Sabem os juízes qual é a duração das relações humanas nos quadros fictícios da sociologia abstracta.

A relação semântica entre o matrimónio e a maternidade demonstra como o sacramento cristão exalta a dignidade da mulher. Não corresponde, porém, a prática jurídica à excelência da teoria religiosa. Observando que a mulher grávida está muitas vezes sujeita a trabalhos forçados, obrigada a sair de casa para adoecer enquanto ganha dinheiro, perguntamo-nos em que medida o casamento vale de protecção à maternidade e de constituição da família.

Definido o casamento pelos predicados de um contrato de valores económicos, representados pela casa, e pelos respectivos encargos, logo se nos definem as sanções legais. De harmonia com a doutrina do Código Civil, o Estado assegura o cumprimento dos deveres económicos entre pessoas legalmente unidas por determinados vínculos de consanguinidade e afinidade. Depois, a casa deixa de ser a fundamentação do casamento, a convivência diária deixa de ter valor moral. Marido e mulher, pais e filhos, podem residir em afastadas terras, sem que deixem de subsistir as respectivas obrigações financeiras. Os descontentes recorrem aos tribunais, e o juiz fixa o quantitativo em dinheiro, a pensão que assinala e lembra um parentesco esquecido. Ignorados herdeiros surgem a requerer uma parte do que lhes é devido por lei, cientes de que ninguém lhes exigirá prova de terem prestado amor ou caridade à pessoa que morreu em riqueza. Tal é o que observa quem souber libertar-se do prestígio das palavras. Existem sanções económicas, porque à nossa sensibilidade moral repugna aplicar, como outrora, penas corporais na resolução de problemas que pertencem à ordem da alma e do espírito. A pena de prisão, que é um castigo corporal, tende a ser aplicável apenas ao que fugiu de cumprir a sentença judicial; não pode, por si própria, ter efeito de educação ou regeneração do delinquente; muito menos restabelece entre pessoas de família, ou entre os cônjuges, a autêntica vida de amor.







A legislação napoleónica, ou positivista, não descreve, não define, não classifica os ritos familiares. Destituídos, assim, de garantia legal, tais ritos são reprimidos, proibidos ou dificultados em consequência das transformações do direito público. A sociologia da agricultura, baseada na propriedade territorial e no tempo heterogéneo, foi substituída pela sociologia da incultura, baseada no tempo homogéneo e na propriedade financeira. Os deveres mais imperiosos da indústria, que funciona em regime de laboração contínua, obstam a que o homem, a mulher e a criança cumpram os ritos familiares. Já não há, a bem dizer, leis que defendam a liberdade da família!...

Alegar-se-á, sem dúvida, que a legislação civil também formula exigências de ordem ética, as quais efectivamente podem ser lidas nos respectivos textos jurídicos. Tal alegação é positiva, mas o positivismo não é suficiente. Se estudarmos os justos motivos de tais obrigações morais, haveremos de encontrar razões que só a nostalgia da metafísica e da teologia podem sinceramente explicar. O paradoxo positivista está em exigir uma moral pública que não é doutrinada na escola pública! O Estado abstém-se normalmente de ministrar ensino demorado e profundo sobre as relações humanas que constituem a célula da vida social, exactamente porque os professores receiam a intervenção intelectual num domínio que efectivamente é mais da competência dos sacerdotes.

Não estranhemos, pois, que faltando a palavra autorizada daqueles que de viva voz deveriam exercer a superior função educativa, recorram ao livro, ao teatro e ao cinema todos quantos se preocupam com o problema humano, o segredo natural e o mistério divino que designamos pela palavra amor. Tremenda é a responsabilidade dos que pretendem distrair para instruir. Se a maioria dos plumitivos nem sequer suspeita que uma fenomenologia pressupõe ou exige uma ontologia; se alguns escritores assumem já a consciência das relações da literatura com a filosofia, do sentimento com o pensamento, e admitem a gradação dos valores éticos, estéticos e científicos; os artistas superiores sabem que o amor é para os amantes a mútua realização do que está preceituado no Génesis. Este livrinho de Vladimiro Soloviev é, sem receio de comparação com os livros místicos, destinados a outro fim, um precioso breviário de quem quiser reintegrar o amor humano nas verdadeiras leis de Deus» (in A Verdade do Amor, Guimarães Editores, 1985).




CRÍTICA AO NATURALISMO

A opinião corrente diz que a relação sexual, ou inter-sexual, tem por fim a conservação da espécie, e quer dizer que o amor não é mais do que um meio para um fim. Considero esta opinião inteiramente falsa, não só por motivos ideológicos, mas também e, principalmente, por causa dos factos observáveis na Natureza. Que a multiplicação dos seres vivos não necessite do intermediário que seria a atracção erótica é uma verdade que transparece do facto de tal multiplicação se produzir até sem os factores dos sexos. Numerosos organismos do reino vegetal como do reino animal há que se reproduzem sem sexualidade, por divisão, por germinação, por inoculação. É certo que nesses dois reinos orgânicos as formas superiores se multiplicam por factores sexuais, mas é também certo que os organismos que se multiplicam deste modo, tanto os vegetais como os animais, podem ainda reproduzir-se de modo não sexual (inoculação das plantas, partenogénese dos insectos superiores). Se admitirmos como regra geral que os organismos superiores se multiplicam por meio de uma copulação superior, teremos de concluir que este factor sexual está relacionado, não com a reprodução em geral, que também se pode verificar ser o processo sexual, mas com a multiplicação dos organismos superiores. Por conseguinte, o significado da diferenciação sexual (do eros, e do amor) não se encontra na ideia da espécie, da sua conservação e da sua reprodução, mas deverá ser procurado somente na ideia do organismo superior.





Notável confirmação do que acabamos de descrever vamos descobri-la no seguinte facto impressionante. Dentro dos limites dos animais que só se multiplicam por factores sexuais, na secção dos vertebrados, quanto mais ascendermos na escala zoológica tanto mais veremos decrescer o expoente de reprodução, na medida em que vai aumentando a força de atracção inter-sexual. Na classe inferior desta secção, entre os peixes, a multiplicação dá um produto enorme: os embriões, produzidos anualmente por cada fêmea, contam-se por milhões: ora prestemos atenção a estes embriões fecundados pelo macho fora do corpo da fêmea, modo que não admite a hipótese de uma inclinação sexual muito intensa. De todos os animais vertebrados é esta classe de animais de sangue frio aquela que incontestavelmente mais se reproduz e a que menos manifesta o que se pareça com a paixão do amor.

No grau imediato, entre os anfíbios e os répteis, a multiplicação é já muito menos do que nos peixes, se bem que relativamente a algumas espécies esta classe haja sido, e não sem razões, comparada pela Bíblia aos entes que pululam (shérerschirroun); ora, com um produto menor, nesta multiplicação já encontramos factores sexuais mais próximos. Nas aves o produto da multiplicação ainda é menor, não só em comparação com os peixes, mas até em comparação com as rãs, por exemplo; e todos sabemos que a inclinação sexual e a atracção individual entre o macho e a fêmea alcançam, nas aves, um grau incomparável aos das duas classes inferiores. Nos mamíferos que são vivíparos a multiplicação é ainda menos frequente do que nas aves, mas a inclinação sexual é muito mais intensa, embora nem sempre tão constante.

No ser humano, considerado para este estudo na escala zoológica, a fecundidade é muito menos do que a de qualquer outra espécie componente do reino animal, mas o amor sexual atinge muito maior intensidade e muito maior importância porque alia ao máximo grau de constância a permanência das relações, comparável com a das aves, e a intensidade das paixões, comparada com a dos mamíferos.

Vemos assim que o amor sexual e a reprodução da espécie não estão na razão directa, mas, pelo contrário, na razão inversa: quanto mais forte for um dos elementos, mais fraco há-de ser o outro. Do ponto de vista que escolhemos, verificamos que o reino animal se desenvolve, quase sem excepção, pela ordem seguinte: nas suas formas inferiores, enorme força de multiplicação, e, ao mesmo tempo, ausência total de algo que de longe se pareça com o amor sexual, quando não ausência de divisão em sexos; depois, nos organismos mais perfeitos, aparecimento de uma diferenciação sexual e de uma certa inclinação sexual correlativa, extremamente débil a princípio, para gradualmente aumentar depois; nos graus ulteriores do desenvolvimento orgânico, crescimento das características sexuais exactamente na medida em que diminui a intensidade do poder de multiplicação (quer dizer, em proporção directa da perfeição do organismo e em proporção inversa do poder de multiplicação), até que, por fim, no cimo da escala zoológica, no ente humano, se torne possível um amor tão intenso que possa até excluir completamente a reprodução. Considerando assim, na série animal, duas tendências para termos contrários, a multiplicação sem amor sexual e o amor sexual sem multiplicação, não podemos ver nestes dois elementos qualquer laço de causalidade; cada qual tem o seu significado próprio, e não podemos dizer que um esteja para o outro como o meio para o fim.






Chegaremos à mesma conclusão quando considerarmos o amor sexual exclusivamente no mundo hominal; veremos como ele se manifesta por um carácter muito mais individualista do que no mundo animal; neste estádio superior, é precisamente uma só pessoa do outro sexo quem merece, aos olhos do amante, a dedicação absoluta; tal pessoa é incomparável e insubstituível; tal pessoa não é já o meio, mas o fim, do amor (in ob. cit., pp. 31-34).

Continua