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terça-feira, 30 de abril de 2019

Da bicorporeidade e da transfiguração

Escrito por Allan Kardec




«Aristóteles diz que Pitágoras foi chamado de Apolo Hiperbóreo pelo povo de Crotona. O filho de Nicómaco acrescenta que Pitágoras foi visto certa vez por muita gente, no mesmo dia e à mesma hora, tanto no Metaponto como em Crotona; e que em Olímpia, durante os jogos, ele se pôs de pé em pleno teatro e mostrou que uma das suas coxas era de ouro. O mesmo escritor diz que Pitágoras, ao atravessar o rio Cosas, foi saudado por este, e que muita gente ouviu essa saudação.»

Eliano


«A percepção das origens depende da inteira capacidade de nos transportarmos ao ponto pretendido. Até no caso paradigmático das matemáticas, a concepção clássica fora, sem dúvida, mais profunda do que a preconizada pela ciência moderna, a ponto de Oswald Spengler ter considerado, em A Decadência do Ocidente, a geometria euclidiana como uma forma estática de matemática em analogia com as coisas que permanecem fora do tempo, como que num eterno presente. A essa forma sucederia uma outra baseada na geometria analítica e no cálculo diferencial, designadamente uma matemática dinâmica secundada no tempo contado e medido em fracções mínimas de segundo.

Para Oswald Spengler, a cultura europeia ocidental seria apenas um fenómeno transitório plasmado numa certa imagem do mundo e da humanidade. Uma imagem, portanto, que se não coadunava com a mitogenia do homem antigo ou até mesmo com a consciência intensificada do índio para quem o mundo era propriamente a-histórico. A melhor prova disso pode, aliás, ser encontrada em don Juan Matus, um velho índio nagual que, entre 1960 e 1973, iniciara nos mistérios da percepção um jovem antropólogo da Universidade da Califórnia.

Esse jovem chamava-se Carlos Castaneda, cujos livros relatam o ensino ministrado por don Juan a fim de o iniciar no caminho do guerreiro, isto é, o caminho do conhecimento silencioso inerente ao mundo oculto e vulgarmente imperceptível do Espírito. O relato das experiências de Castaneda começaram por ser dadas a público em 1968, nomeadamente com o lançamento da sua dissertação de mestrado, intitulada A Erva do Diabo. De resto, 1968 fora o ano do movimento hippie e da contracultura, fermentos da New Age em cujo contexto os livros de Castaneda produziriam interesse acrescido, quanto mais não fosse em virtude das ervas medicinais utilizadas pelos índios nos rituais religiosos da América Central.

Contudo, as experiências perceptivas de Carlos Castaneda já de si superam larga e profundamente o movimento da New Age, a "cultura underground" ou o movimento estudantil em aparente ruptura ideológica com o establishment. Entretanto, António Telmo, outrossim inspirado na experiência da percepção dupla já compaginada em Carlos Castaneda, tão logo se dispusera a realizar experiências próprias particularmente relatadas nos seus livros, mormente em Filosofia e Kabbalah. Ora, as experiências perceptivas de António Telmo foram sobretudo traduzidas nos termos do esoterismo persa e da tradição sófica hebraica, isto é, da Kabbalah.

Posto isto, diremos que, em Carlos Castaneda, toda a percepção dupla não tem a mesma "clareza" da percepção normal, na medida em que esta pressupõe um eixo cujos extremos estão espacialmente polarizados. Por outras palavras, a percepção do homem vulgar limita-se ao "aqui" percebido de uma forma directa e instântanea, ao passo que toda e qualquer referência ao "ali" – assumido e deduzido como tal –, não é imediata e directamente apreendida pelos sentidos. Em suma, "aqui" e "ali" são apenas dois pontos de referência perceptiva, bidimensionais, portanto.









Mas há um terceiro ponto de referência que é somente perceptível "em dois lugares ao mesmo tempo", e mediante o qual se origina a percepção imediata do que, em condições normais e rotineiras, não seria de todo compossível porque, no limiar, há sempre um "ali" à espreita. Deste modo, sabemos que a percepção dupla não é da ordem do concebível e do racional, o que já de si implica que também nela não pode coexistir uma clareza linear e referencial circunscrita ao "aqui" da percepção normal. Por conseguinte, só na percepção duplicada por virtude individual, é que o lugar do conhecimento silencioso pode ser alcançado na esfera imponderável do miraculoso e do inconcebível.

Ora, se em Carlos Castaneda o indíviduo pode, como tal, criar uma imagem dupla de si mesmo, por que razão não haveríamos de ver no nome de Tomé Natanael, o misterioso antiquário de Estremoz, mais do que um simples anagrama do nome de António Telmo? Curiosamente, nos seus Contos Secretos, confessa António Telmo que teria criado a personagem de Tomé Natanael para compor o conto intitulado "No Hades", inserto em Filosofia e Kabbalah. Porém, é assaz provável que para além dessa criação do foro imaginativo houvesse algo mais, pois tudo indica que o Espírito, com suas artimanhas, lhe tenha pregado uma boa partida a avaliar pelo que relatara em "A Minha História", inserta em Contos Secretos:

"(...) o segundo acontecimento é ainda mais estranho e tem testemunhas. O António Cândido Franco, o glorioso autor de Memórias de Inês de Castro, quando leu O Antiquário de Estremoz, escreveu-me a dizer que gostava que eu lhe apresentasse Tomé Natanael, esse mestre ideal de Cabala que saíra, julgava eu, inteiramente da minha imaginação, como Athena do cérebro de Júpiter. Não era a primeira vez que me era formulado o mesmo pedido. Na minha penúria de alma, ficava todo contente e vaidoso por ter criado uma personagem com tal verdade que os leitores a julgavam um ser real e existente, não em qualquer mundo, mas neste que pisamos e onde vivemos.

Um dia, meses mais tarde, o António Cândido, que eu não via desde que recebera a sua carta, apresentou-me um pintor, o Délio Vargas, que, com grande espanto meu e alguma desconfiança, me disse que conhecera há alguns anos, Tomé Natanael, o misterioso antiquário do meu conto.

- Como assim? – exclamei. Tomé Natanael é uma invenção minha.

- Não é. – retorquiu ele. Não esteja a querer escondê-lo de nós. Eu conheci-o e troquei com ele correspondência durante algum tempo. Escrevia-me cartas que chegavam a ter oitenta páginas e sobre assuntos de Cabala.

Não desarmei.

- Deve estar a pensar noutra pessoa. A minha foi inventada, a partir, veja lá, do meu nome, trocando-lhe as letras. Como se chamava o homem?

- Rafael.

- Concedi que era, de facto, interessante, com a sua ponta de enigmático, que tivesse o nome do pintor italiano, autor do fresco que deu origem ao conto.

- Não é só isso. – replicou. Este Rafael vivia na Glória, uma aldeia a dois passos dos Arcos, onde o põe, no seu conto, a viver.






Tanta coincidência não era para teimar mais. Vimos depois juntos que, nos dias em que eu estava escrevendo em Estremoz a história do antiquário, uma criatura, em tudo semelhante, vivia ali, mesmo perto, numa aldeia, onde eu mais ou menos o imaginava. Pedi-lhe referências concretas. Só soube dizer-me que era casado com uma professora chamada Antónia. A minha mulher também se chama Antónia e também é professora.

Na minha escola, encontrei, numa turma que leccionava, uma rapariga da Glória que tinha sido aluna, na instrução primária, da mulher do cabalista. Perguntei-lhe pelo marido.

- Oh senhor professor, de dia nunca o víamos. Passava todo o dia fechado em casa, julgo eu. Só saía de noite e andava pelos campos. Fazia medo.

Este episódio deu-me que pensar. Fui levado primeiro a admitir, depois a acreditar que Tomé Natanael, que eu julgava ter inventado, existia realmente numa forma subtil que foi a que se imprimiu na minha imaginação e teria um duplo, esse de carne e osso, vivendo na Terra com uma professora de instrução primária. Mas eu dava-o no conto como o meu gémeo pela relação anagramática dos nomes. Será possível, interrogava-me eu, que haja dois mundos geminados, onde existimos simultaneamente em duas presenças separadas?"

Mas quem sabe, no entretanto, se António Telmo não se teria parcialmente inspirado nas experiências de consciência intensificada de Carlos Castaneda para narrar o seu conto, até porque parece ter porventura chegado ao conhecimento dos respectivos livros por sugestão intermédia de João Seabra Botelho. De mais a mais, tudo isso se reflecte primorosamente no modo como, "No Hades", procede ao deslocamento do seu foco de percepção mediante a formação de uma imagem dupla ou dobrada perante o célebre fresco de Rafael: A Escola de Atenas. E também já pode, eventualmente, constituir um ponto de admirável referência para o dom da ubiquidade de Pitágoras já descrito por Eliano, ou até para relembrar, nos precisos termos de Leonardo Coimbra, os fenómenos de bilocação protagonizados por Santo António de Lisboa e S. Francisco Xavier, a saber:

"Todos conhecem a lenda da aparição de Santo António de Lisboa para salvar a família injustamente acusada dum crime, tendo-se, ao mesmo tempo, conservado em Pádua, onde então habitava.

Este caso, embora mais dramático, é menos seguro, no entanto, que o caso do aparecimento no convento à mesma hora que se encontrava no púlpito da Catedral de Montpellier.

O Santo ia para pregar, quando se lembrou que devia estar no convento à mesma hora: cala-se, demora o tempo suficiente para os seus trabalhos do convento, onde é visto, e depois, como acordando, retoma o sermão na Catedral.

S. Francisco Xavier vem do Oriente num navio português. Uma tempestade separa uma chalupa com portugueses e dois maometanos do navio em que ia o Santo...

Este implora num recolhimento, e assegura ao comandante que antes de três dias, a chalupa viria ter com o navio.

A marinhagem espera, depois inquieta-se e insiste para partir, o Santo suplica-lhe que esperem mais um pouco e opõe-se à largada bradando pelo socorro divino.

Nisto uma criança grita que a chalupa se aproxima e assim acontece, até que os homens entram para o navio declarando que não tinham tido receio, porque ao leme os acompanhara S. Francisco Xavier.



Retrato japonês do período Nanban





Tal afirmação produz o maior assombro nos tripulantes do navio, pois sabiam que ele não tinha saído do navio, onde com eles sempre estivera." (in Dispersos, III).

Segundo os ensinamentos de don Juan, uma época houve em que a humanidade estivera centrada no lugar do conhecimento silencioso, transitando posteriormente para o lugar da razão. Tais lugares não se excluem, alternam-se e, ocasionalmente, coincidem uma vez realizada a devida ponte. De resto, o mundo da razão de modelo académico e científico é apenas uma pobre e triste ilusão num mar infinito de ilhas e continentes por descobrir.»

Miguel Bruno Duarte




DA BICORPOREIDADE E DA TRANSFIGURAÇÃO


Isolado do corpo, o Espírito de um vivo pode, como o de um morto, mostrar-se com todas as aparências da realidade. Além disso, pelas mesmas causas que temos exposto, pode adquirir uma momentânea tangibilidade. Este fenómeno, conhecido pelo nome bicorporeidade, foi o que deu azo às histórias de homens duplos, isto é, de indivíduos cuja presença simultânea em dois lugares diferentes chegou a comprovar-se. Aqui ficam dois exemplos, tirados, não das lendas populares, mas da história eclesiástica.

Santo Afonso de Liguori foi canonizado antes do tempo prescrito, por se ter mostrado simultaneamente em dois sítios diversos, o que passou por milagre.

Santo António de Pádua estava a pregar em Itália (1) quando o seu pai, em Lisboa, ia ser supliciado, sob a acusação de ter cometido um assassínio. No momento da execução, Santo António aparece e demonstra a inocência do acusado. Comprovou-se que, naquele instante, Santo António pregava em Itália, na cidade de Pádua.

(…) Tácito refere um facto análogo:

Durante os meses que Vespasiano passou em Alexandria, aguardando a volta dos ventos estivais e da estação em que o mar oferece segurança, muitos prodígios ocorreram, pelos quais se manifestaram a protecção do céu e o interesse que os deuses votavam àquele príncipe…

Estes prodígios redobraram o desejo, que Vespasiano alimentava, de visitar a sagrada morada do deus, para consultá-lo sobre as coisas do império. Ordenou que o templo se conservasse fechado para quem quer que fosse e, tendo nele entrado, estava concentrado no que ia dizer o oráculo quando percebeu, por detrás de si, um dos mais eminentes egípcios, chamado Basílide, que ele sabia estar doente, num lugar muitos dias distante de Alexandria. Perguntou aos sacerdotes se Basílide fora naquele dia ao templo; perguntou aos transeuntes se o tinham visto na cidade; por fim, despachou alguns homens a cavalo, para saberem de Basílide e veio a certificar-se de que, no momento em que este lhe aparecera, estava a 80 milhas de distância. Desde então, não voltou a duvidar de que tivesse sido sobrenatural a visão e o nome de Basílide passou a ter para ele um valor idêntico ao de um oráculo. (Tácito: Histórias, livro IV, capítulos LXXXI e LXXXII. Tradução de Burnouf.)

(…) Tem, pois, dois corpos o indivíduo que se mostra simultaneamente em dois lugares diferentes. Mas, desses dois corpos, apenas um é real, o outro é simples aparência. Pode-se dizer que o primeiro tem a vida orgânica e que o segundo tem a vida da alma. Ao despertar o indivíduo, os dois corpos reúnem-se e a vida da alma volta ao corpo material. Não parece possível - pelo menos não conhecemos disso exemplo algum e a razão, ao nosso ver, demonstra-o - que, no estado de separação, possam os dois corpos gozar, simultaneamente e no mesmo grau, da vida activa e inteligente. Além disso, no que acabamos de dizer ressalta que o corpo real não poderia morrer enquanto o corpo aparente se conservasse visível, visto que a aproximação da morte atrai sempre o Espírito para o corpo, ainda que apenas por um instante. Daí resulta igualmente que o corpo aparente não poderia ser morto porque não é orgânico, não é formado de carne e osso. Desapareceria no momento em que o quisessem matar.



Mosaico da Transfiguração do século VI (Mosteiro de Santa Catarina, no Monte Sinai).



Igreja da Transfiguração, no Monte Tabor (Israel).


(…) A transfiguração, em certos casos, pode originar-se a partir de uma simples contracção muscular, capaz de dar à fisionomia uma expressão muito diferente da habitual, ao ponto de tornar quase irreconhecível a pessoa. Temo-lo observado frequentemente com alguns sonâmbulos; mas, nesses casos, a transformação não é radical. Uma mulher poderá parecer jovem ou velha, bela ou feia, mas será sempre uma mulher e, sobretudo, o seu peso não aumentará nem diminuirá. No fenómeno com que nos ocupamos, há mais alguma teoria. A teoria do perispírito vai esclarecer-nos.

Está, em princípio, admitido que o Espírito pode dar ao seu perispírito todas as aparências; que, mediante uma modificação na disposição molecular, pode dar-lhe visibilidade, a tangibilidade e, consequentemente, a opacidade; que o perispírito de uma pessoa viva, isolado do corpo, é passível das mesmas transformações; que essa mudança de estado opera pela combinação dos fluidos. Imaginemos agora o perispírito de uma pessoa viva, não isolado, mas irradiando-se em volta do corpo, de maneira a envolvê-lo numa espécie de vapor. Nesse estado, torna-se passível das mesmas modificações de que seria se o corpo estivesse separado. Perdendo ele a sua transparência, o corpo pode desaparecer, tornar-se invisível, ficar velado, como se mergulhado numa bruma. Poderá então o perispírito mudar de aspecto, fazer-se brilhante, se essa for a vontade do Espírito e se este dispuser de poder para tanto. Outro Espírito, combinando os seus fluidos com os do primeiro, poderá, a essa combinação de fluidos, imprimir a aparência que lhe é própria, de tal sorte que o corpo real desapareça sob o envoltório fluídico exterior, cuja aparência pode variar à vontade do Espírito. Esta parece ser a verdadeira causa do estranho e, é preciso que se diga, raro fenómeno da transfiguração. (in O Livro dos Médiuns, Nascente, 2015, pp. 142-146).


(1) No original francês, este facto foi narrado por Kardec sob a seguinte versão: «Santo António de Pádua achava-se em Espanha e, no instante em que predicava, o seu pai, que estava em Pádua, era levado ao suplício sob a acusação de homicídio. Nesse momento, Santo António aparece, demonstra a inocência do seu pai e revela o verdadeiro criminoso, mais tarde punido. Comprovou-se que nesse momento Santo António não havia deixado Espanha.» Kardec justificou-se em compêndio de autor que evidentemente se equivocou, como aconteceu a outros escritores da época relativamente a este facto. [N. da E.]



Igreja de Santo António em Lisboa, erguida sobre a casa onde segundo a tradição nasceu o Santo português.




Local onde, segundo a tradição, nasceu Santo António, em Lisboa, situado na cripta da igreja a si dedicada.


terça-feira, 12 de março de 2019

Da acção dos Espíritos sobre a matéria

Escrito por Allan Kardec











«O SUBCONSCIENTE

Dentre os fenómenos chamados espíritas há uma classe de fenómenos estranhos, onde o poder do Eu normal é excedido.

Conhecimentos fora do tesouro da mentalidade consciente são por vezes conquistados pelo eu mediúnico. Admitidos os imensos factos comprovativos, citados por autores de segura honestidade, como explicá-los? Eis um problema interessante e sobre o qual as experiências imaginativas são fortemente solicitadas. Duas hipóteses surgem: uma materialista, outra espiritualista. Dizem os materialistas, apresentando-se com pretensões científicas, que o solo orgânico da consciência possui filões ocultos, que certas condições orgânicas (sugestões, histerismo, etc.) colocam a descoberto.

Aqui aparece a invalidar a hipótese o vício radical do materialismo: a confusão entre as condições materiais do pensamento e o pensamento. Erro que obriga o epifenomenismo da consciência. Se um poder superior ao da consciência normal existe na hereditariedade, como e porque essa modéstia, essa inacção? E como um acidente (por vezes infeliz para o indivíduo) é causa de exaltação mental? A imagem do filão é pura metáfora, mas nada. Se a matéria é inerte, como a simples ausência de um estorvo a põe em movimento? Porque esse estorvo era tendência oposta a tendência: assim temos tendência activa do pensamento estorvada por tendência oposta: o lógico e o ilógico.

A hipótese espiritualista explica os referidos fenómenos por uma metempsicose ascendente. O espírito aprende e lembra-se, e em dadas condições revela os seus conhecimentos siderais.

Mas como esse elipse normal do conhecimento? Como conhecimentos dum mesmo espírito são duma eficácia arbitrária e, por vezes, estupidamente desigual?

Só substituindo à sua existência a existência de um Ser exterior, que se dê, por doses, consoante o mérito do primeiro.

É isto a revelação e é também o fundamento da reza.

Eis o absurdo do espiritualismo clássico: inversamente do materialismo é agora o mundo, a árvore, a criança, o riso, o regato, as estrelas… puro epifenomenismo. Os dois pólos do quietismo encontram-se na comum fatalidade da vida, no seio de Deus ou no turbilhonamento da matéria.

O princípio comum às duas metafísicas é o que em comum as torna incapazes de explicação dos fenómenos da subconsciência. Esse princípio é a ausência de liberdade.

É, pois, na liberdade que vou procurar a explicação desejada.

Eis o que emito:

A consciência não tem limites.

A consciência é uma força utilizando uma dada matéria para criar. A potência interior da consciência utiliza o tesouro do seu organismo.

Uma consciência que esgotasse as infinitas possibilidades da sua matéria, isto é, a consciência que determinasse o infinito, seria Deus.

A potência interior é a vontade. A subconsciência pensante é o infinito da consciência orgânica actuando mais largamente por uma vontade mais  pesquisadora, por uma vida mais ampla e generosa.»

Leonardo Coimbra («DISPERSOS, III - FILOSOFIA E METAFÍSICA»).







«De acordo com uma doutrina antiga, cujos traços aparecem em muitos ensinamentos de vários períodos, uma pessoa que tenha atingido o potencial de desenvolvimento humano mais elevado é formada de quatro corpos, compostos de substâncias que gradualmente se tornam mais subtis, interpenetradas e formando quatro organismos separados, posicionando-se uns em relação aos outros num relacionamento definido mas capaz de acções independentes. A razão pela qual quatro corpos podem [co]existir é a de que o organismo humano (ou seja, o corpo físico) tem uma organização tão complexa que, sob as condições certas, um organismo novo e independente pode crescer dentro dele, fornecendo à consciência um instrumento muito mais conveniente e obediente do que o corpo físico. A consciência neste novo corpo é capaz de exercer um completo controlo sobre o corpo físico. Dentro deste segundo corpo, sob certas condições, um terceiro corpo pode crescer, tendo igualmente as suas características próprias. A consciência neste terceiro corpo tem pleno poder e controlo sobre os primeiros dois corpos, e também é capaz de adquirir conhecimento que está inacessível a qualquer um deles. Dentro do terceiro corpo, sob certas condições, um quarto pode crescer, com uma consciência que tem completo controlo sobre os primeiros três corpos e sobre si próprio.

Cada ensinamento tem a sua própria forma de definição dos quatro corpos. Na terminologia cristã, o primeiro corpo é chamado o corpo "carnal"; o segundo, o corpo "natural"; o terceiro, o corpo "espiritual"; e o quarto (na terminologia do cristianismo esotérico), o corpo "divino". Na terminologia teosófica, o primeiro é o corpo "físico", o segundo o "astral", o terceiro o "mental", e o quarto o "causal". Na terminologia de certos ensinamentos orientais, o primeiro corpo é a "carruagem" (corpo), o segundo é o "cavalo" (sentimentos, desejos), o terceiro o "condutor" (mente) e o quarto o "senhor", que é também o proprietário da carruagem ("eu", consciência, vontade).

(…) Apenas uma pessoa que possua quatro corpos plenamente desenvolvidos pode ser chamada "homem", no pleno sentido da palavra. Esta pessoa possui muitas propriedades que o homem comum não possui, incluindo a imortalidade ou, mais correctamente, existência após a morte. Todas as religiões e ensinamentos antigos partilham a ideia de que o homem atinge a imortalidade pela aquisição do quarto corpo, e todas providenciam indicações para o alcançar.»

G. I. Gurdjieff («Em Busca do Ser»).


«O homem que descobriu (…) o papel do médium nas sessões de evocação dos espíritos, e estabeleceu o primeiro protocolo pormenorizado de experiências mediúnicas, foi John Dee, matemático e geógrafo inglês, o protótipo do mago isabelino, cuja vida espantosa inspirou um romance a Gustavo Meyrink: mas nenhuma ficção poderia igualar o seu diário íntimo, The private Diary of Dr. John Dee, revelado, em 1842, pela Camden Society de Londres, com o catálogo da sua biblioteca de manuscritos.»

Alexandrian («História da Filosofia Oculta»).





Da acção dos Espíritos sobre a matéria


Posta de lado a opinião materialista, porque condenada pela razão e pelos factos, tudo se resume a saber se a alma, depois da morte, pode manifestar-se aos vivos. Reduzida assim à sua expressão mais singela, a questão fica extraordinariamente clarificada. Caberia, antes de tudo, perguntar por que não poderiam seres inteligentes, que de certo modo vivem no nosso meio, se bem que invisíveis por natureza, atestar-nos de qualquer forma a sua presença. A simples razão diz que nisto nada há de absolutamente impossível, o que já é alguma coisa. Além disso, esta crença tem a seu favor o assentimento de todos os povos, visto que com ela nos deparamos em toda a parte e em todas as épocas. Ora, nenhuma intuição pode mostrar-se tão generalizada, nem sobreviver ao tempo, se não tiver algum fundamento. Acresce que se encontra sancionada pelo testemunho dos livros sagrados e pelo dos Pais da Igreja, tendo sido preciso o cepticismo e o materialismo do nosso século para que fosse lançada para o rol das ideias supersticiosas. Se estamos em erro, aquelas autoridades estão igualmente.










Mas isto não passa de considerações de ordem moral. Uma causa, especialmente, contribuiu para fortalecer a dúvida, numa época tão positiva como a nossa, em que se quer saber o porquê e o como de todas as coisas. Essa causa é a ignorância da natureza dos Espíritos e dos meios pelos quais se podem manifestar. Adquirindo o conhecimento daquela natureza e destes meios, as manifestações nada mais apresentam de espantoso e entram no cômputo dos factos naturais.

(...) A ideia que geralmente se faz dos Espíritos torna à primeira vista incompreensível o fenómeno das manifestações. Como estas não podem dar-se senão exercendo o Espírito acção sobre a matéria, os que julgam que a ideia de Espírito implica a de ausência completa de tudo o que seja matéria perguntam, com certa aparência de razão, como pode ele agir materialmente. Ora, aí está o erro, uma vez que o Espírito não é uma abstracção, é um ser definido, limitado e circunscrito. O Espírito encarnado no corpo constitui a alma. Quando o deixa, por ocasião da morte, não sai dele despido de todo o envoltório. Todos nos dizem que conservam a forma humana e, com efeito, quando nos aparecem, trazem as que lhes conhecíamos.

Observemo-los atentamente no instante em que acabem de deixar a vida; acham-se em estado de perturbação; tudo se lhes apresenta confuso à sua volta; vêem perfeito ou mutilado, conforme o género da morte, o corpo que tiveram; por outro lado, reconhecem-se e sentem-se vivos; alguma coisa lhes diz que aquele corpo lhes pertence e não compreendem como podem estar separados dele. Continuam a ver-se sob a forma que tinham antes de morrer e esta visão, nalguns, produz, durante um certo tempo, uma singular ilusão: a de se crerem ainda vivos. Falta-lhes a experiência do novo estado em que se encontram para se convencerem da realidade. Passado esse primeiro momento de perturbação, o corpo torna-se-lhes uma veste imprestável de que se despiram e de que não têm saudades. Sentem-se mais leves e como que aliviados de um fardo. Já não experimentam as dores físicas e consideram-se felizes por poderem elevar-se, transpor o espaço, como tantas vezes fizeram em sonho quando vivos (1). Entretanto, apesar da falta do corpo, comprovam as suas personalidades; têm uma forma, mas esta não os importuna nem os embaraça; têm, finalmente, a consciência do seu eu e da sua individualidade. Que devemos concluir disto? Que a alma não deixa tudo no túmulo, que leva consigo alguma coisa.

(...) Numerosas observações e factos irrecusáveis, de que mais tarde falaremos, levaram à consequência de que há no Homem três componentes: 1.º) a alma, ou Espírito, princípio inteligente, onde tem sede o senso moral; 2.º) o corpo, invólucro grosseiro, material, de que ele se revestiu temporariamente, em cumprimento de certos desígnios providenciais; 3.º) o perispírito, envoltório fluídico, semi-material, que serve de ligação entre a alma e o corpo.

A morte é a destruição, ou antes, a desagregação do envoltório grosseiro, do invólucro que a alma abandona. O outro desliga-se deste e acompanha a alma, que, assim, fica sempre com um envoltório. Este último, ainda que fluídico, etéreo, vaporoso, invisível, para nós, no seu estado normal, não deixa de ser matéria, embora até ao presente não tenhamos podido assenhorear-nos dela e submetê-la à análise. Esse segundo invólucro da alma, ou perispírito, existe, pois, durante a vida corpórea; é o intermediário de todas as sensações que o Espírito percebe e pelo qual transmite a sua vontade ao exterior e actua sobre os órgãos do corpo. Para nos servirmos de uma comparação material, diremos que é o fio eléctrico condutor, que serve para a recepção e a transmissão do pensamento; é, em suma, esse agente misterioso, imperceptível, conhecido pelo nome de fluido nervoso, que desempenha um tão grande papel na economia orgânica e que ainda não se leva muito em conta nos fenómenos fisiológicos e patológicos. Levando em consideração apenas o elemento material ponderável, a medicina, na apreciação dos factos, priva-se de uma causa incessante de acção. Não cabe, aqui, porém, o exame desta questão. Somente faremos notar que no conhecimento do perispírito está a chave de inúmeros problemas até hoje insolúveis. O perispírito não constitui uma dessas hipóteses de que a ciência costuma valer-se para a explicação de um facto. A sua existência não foi apenas revelada pelos Espíritos, resulta de observações, como teremos ocasião de demonstrar. Por ora, e para não nos anteciparmos no tocante aos factos que havemos de relatar, limitar-nos-emos a dizer que, quer durante a sua união com o corpo, quer depois de separar-se deste, a alma nunca está desligada do seu perispírito.

(…) Já se disse que o Espírito é uma chama, uma centelha. Isto deve entender-se com relação ao Espírito propriamente dito, como princípio intelectual e moral, a que se não poderia atribuir uma forma determinada. Mas, qualquer que seja o grau em que se encontre, o espírito está sempre revestido de um envoltório, ou perispírito, cuja natureza se eteriza à medida que ele se depura e eleva na hierarquia espiritual. Assim, para nós, a ideia de forma é inseparável da de Espírito e não concebemos uma sem a outra. O perispírito faz, portanto, parte integrante do Espírito, como o corpo faz parte do homem. Porém, o perispírito, por si só, não é o Espírito, do mesmo modo que só o corpo não constitui o Homem, já que o perispírito não pensa. Ele é para Espírito o que o corpo é para o Homem, o agente ou instrumento da sua acção.





















Ele tem a forma humana e, quando nos aparece, é geralmente com a que revestia o Espírito na condição de encarnado. Daí se poderia supor que o perispírito, separado de todas as partes do corpo, se modela, de certa forma, por este e lhe conserva o tipo; entretanto, não parece que seja assim. Com pequenas diferenças quanto às particularidades, e exceptuando as modificações orgânicas exigidas pelo meio no qual o ser tem de viver, a forma humana depare-se-nos entre os habitantes de todos os globos. Pelo menos, é o que dizem os Espíritos. Essa é igualmente a forma de todos os Espíritos não encarnados, que só têm o perispírito; aquela com que, em todos os tempos, se representaram os anjos, ou Espíritos puros. Devemos concluir de tudo isto que a forma humana é a forma-tipo de todos os seres humanos, seja qual for o grau de evolução em que se encontrem. Mas a matéria subtil do perispírito não possui a tenacidade nem a rigidez da matéria compacta do corpo; é, se assim nos podemos exprimir, flexível e expansível, de onde resulta que a forma que toma, embora decalcada na do corpo, não é absoluta, altera-se consoante a vontade do Espírito, que lhe pode dar a aparência que entenda, ao passo que o invólucro sólido lhe oferece uma invencível resistência. Livre desse obstáculo que o comprimia, o perispírito dilata-se ou contrai-se, transforma-se: presta-se, numa palavra, a todas as metamorfoses, de acordo com a vontade que sobre ela actua. Por efeito dessa propriedade do seu envoltório fluídico é que o Espírito que quer dar-se a conhecer pode, se for necessário, tomar a aparência exacta que tinha quando vivo, até mesmo com os acidentes corporais que possam constituir sinais para o reconhecerem. Os Espíritos, portanto, são, como se vê, seres semelhantes a nós, constituindo, ao nosso redor, toda uma população, invisível no estado normal. Dizemos «no estado normal» porque, conforme veremos, essa invisibilidade nada tem de absoluta.

(…) Voltemos à natureza do perispírito, pois isto é essencial para a explicação que temos de dar. Dissemos que, embora fluídico, o perispírito não deixa de ser uma espécie de matéria, o que decorre do facto das aparições tangíveis, a que voltaremos. Sob a influência de certos médiuns, tem-se visto aparecerem mãos com todas as propriedades de mãos vivas, que, como estas, denotam calor, podem ser apalpadas, oferecem a resistência de um corpo sólido, agarram os circunstantes e, de súbito, se dissipam, como as sombras. A acção inteligente dessas mãos, que evidentemente obedecem a uma vontade, executando certos movimentos, tocando até melodias num instrumento, prova que elas são parte visível de um ser inteligente invisível. A tangibilidade que revelam, a temperatura, a impressão, em suma, que causam aos sentidos, uma vez que já se verificou que deixam marcas na pele, que dão pancadas dolorosas, que acariciam delicadamente, provam que são de uma matéria qualquer. Os seus desaparecimentos repentinos provam, além disso, que essa matéria é eminentemente subtil e se comporta como certas substâncias que podem alternativamente passar do estado sólido ao estado fluídico e vice-versa.

(…) A natureza íntima do Espírito propriamente dito, isto é, do ser pensante, desconhecemo-la por completo. Apenas pelos seus actos ele se nos revela e os seus actos não nos podem impressionar os sentidos, a não ser por um intermediário material. O Espírito precisa, pois, de matéria para actuar sobre a matéria. Tem por instrumento directo da sua acção o perispírito, como o Homem tem o corpo. Ora, o perispírito é matéria, como acabámos de ver. Depois, serve-lhe também de agente intermediário o fluido universal, espécie de veículo sobre que ele actua, como nós actuamos sobre o ar, para obter determinados efeitos, por meio da dilatação, da compressão, da propulsão ou das vibrações.

Considerada deste modo, facilmente se concebe a acção do Espírito sobre a matéria. Compreende-se, desde logo, que todos os efeitos que daí resultam cabem na ordem dos factos naturais e nada têm de maravilhosos. Só pareceram sobrenaturais porque não se lhes conhecia a causa. Conhecida esta, desaparece o maravilhoso e essa causa inclui-se por completo nas propriedades semimateriais do perispírito. É uma ordem nova de factos que uma nova lei vem explicar e com os quais, dentro de algum tempo, já ninguém se admirará como ninguém se admira hoje por se corresponder com outra pessoa, a grande distância, em alguns minutos, por meio da electricidade.

(…) Perguntar-se-á, talvez, como pode o Espírito, com o auxílio de uma matéria tão subtil, actuar sobre corpos pesados e compactos, suspender mesas, etc. Certamente que semelhante objecção não seria formulada por um homem de ciência, visto que, sem falar das propriedades desconhecidas que esse novo agente pode possuir, não temos exemplos análogos sob as vistas? Não é nos gases mais rarefeitos, nos fluidos imponderáveis que a indústria encontra os seus mais possantes motores? Quando vemos o ar abater edifícios, o vapor a deslocar enormes massas, a pólvora gaseificada levantar rochedos, a electricidade lascar árvores e fender paredes, que dificuldade encontraremos em admitir que o Espírito, com o auxílio do seu perispírito, possa levantar uma mesa, sobretudo sabendo que esse perispírito por tornar-se visível, tangível e comportar-se como um corpo sólido? (in O Livro dos Médiuns. Guia dos Médiuns e dos Evocadores, Nascente, 2015, pp. 67-72).










(1) Quem se quiser reportar a tudo o que dissemos n'O Livro dos Espíritos sobre os sonhos e o estado de Espírito durante o sono (número 400 a 418) conceberá que esses sonhos que quase toda a gente tem, em que nos vemos transportados através do espaço e como que voando, são uma mera recordação do que o nosso Espírito experimentou quando, durante o sono, deixara momentaneamente o corpo material, levando consigo apenas o corpo fluídico, o que ele conservará depois da morte. Esses sonhos, pois, podem dar-nos uma ideia do estado do Espírito quando se tiver desembaraçado dos entraves que o retêm preso ao solo.