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segunda-feira, 4 de março de 2013

Amor e Guerra

Escrito por Denis de Rougemont 





Licurgo



«Do desejo à morte pela paixão, tal é a via do romantismo ocidental; e, nela, todos estaremos comprometidos na medida em que somos tributários - inconscientemente, bem entendido - dum conjunto de costumes e de hábitos cujos símbolos foram criados pela mística cortês. Ora paixão significa sofrimento.

A nossa noção de amor, envolvendo a que temos da mulher, acha-se portanto ligada a uma noção do sofrimento fecundo que favorece ou obscuramente legítima, no mais secreto da consciência ocidental, o gosto pela guerra.

Esta singular ligação duma certa ideia da mulher e duma ideia correspondente da guerra, no Ocidente, acarreta profundas consequências para a moral, para a educação, para a política.

(...) Desde a Antiguidade que os poetas usaram metáforas guerreiras para descrever os efeitos do amor natural. O deus do amor é um archeiro que dispara flechas mortais. A mulher rende-se ao homem que a conquista porque ele é melhor guerreiro. O objectivo da guerra de Tróia é a posse duma mulher. E um dos mais antigos romances que possuímos, o Teagenes e Caricleia de Hediodoro (no século III já fala das "lutas de amor" e da «deliciosa derrota» daquele que «cai sob os dardos inevitáveis de Eros».

Plutarco faz-nos ver que a moral sexual dos Espartanos era função do rendimento militar desse povo. O eugenismo de Licurgo e as suas leis minuciosas que regulavam as relações dos esposos não tem outro fim senão o de aumentar a agressividade dos soldados.

Tudo isto confirma a ligação natural, quer dizer, fisiológica, do instinto sexual e do instinto combativo. Mas seria vão tentarmos procurar semelhanças entre a táctica dos Antigos e a sua concepção do amor. Os dois domínios permanecem submetidos a leis inteiramente distintas e privadas de medida comum.

O mesmo se não pode dizer em relação à nossa história a partir dos séculos XII e XIII. Vemos então a linguagem amorosa enriquecer-se de figuras que já não designam apenas os gestos elementares do guerreiro mas são colhidas, duma maneira muito preciosa, da arte das batalhas, da táctica militar da época. Já se não trata, doravante, duma origem comum mais ou menos obscuramente sentida, mas sim dum minucioso paralelismo.

O amante põe cerco à sua Senhora. Pratica amorosos assaltos à sua virtude. Cerca-a de perto, persegue-a, procura vencer as derradeiras defesas do seu pudor e colhê-las de surpresa; por fim, a dama rende-se à mercê. Mas então, por uma curiosa inversão bem típica da cortesia, o amante será seu prisioneiro ao mesmo tempo que vencedor. Tornar-se-á vassalo dessa suserana, segundo a regra das guerras feudais, como se tivesse sido ele a sofrer a derrota. Não lhe resta senão fazer prova da sua valentia, etc. Tudo isto em linguagem nobre. Mas o calão do soldado e do civil fornecer-nos-ia uma profusão de exemplos de crueza ainda mais significativa. E mais tarde, a introdução de armas de fogo deveria dar lugar a inúmeros gracejos com duplo sentido».

Denis de Rougemont («O Amor e o Ocidente»).














EXCALIBUR (1981).










«Em Wolfram [von Eschenbach] diz-se: "Quem quiser conquistar o Graal só poderá abrir caminho em direcção a este objecto precioso com as 'armas na mão'". Nisto se resume o espírito de todo o ciclo de "aventuras" enfrentadas pelos cavaleiros da Távola Redonda em busca do Graal. São aventuras de carácter épico e guerreiro, que têm igualmente um carácter simbólico, por exprimirem sobretudo actos espirituais e não acções materiais, sem que, contudo, na nossa opinião, esse aspecto do simbolismo represente um elemento fortuito e irrelevante. Isto significa que este "abrir caminho em direcção ao Graal com as armas na mão", com todos os duelos, lutas e combates a ele relativos, remete certamente para uma via específica de realização interior, em relação à qual o elemento "activo", guerreiro ou viril desempenha o papel principal. Contudo, o caminho que é preciso abrir combatendo é sempre aquele que conduz da "cavalaria terrestre" à "cavalaria espiritual": segundo as expressões tradicionais por nós usadas noutra ocasião, não se trata apenas da "pequena guerra", mas também da "grande guerra santa"».

Julius Evola («O Mistério do Graal»).


«A condição do amor é uma vida secreta, que só pode exprimir-se por alegorias. Toda a literatura, exactamente porque usa das liberdades poéticas, confirma a verdade transmitida por velhas tradições. Mal vai aos homens e aos povos que, por esquecimento da sabedoria tradicional, já não entendem os motivos profundos desta condição.

O amor tem de ser secreto porque contra ele luta a entidade mais poderosamente inimiga da vida, que é a inveja. Até as inocentes crianças, maculadas pelo pecado original de não poderem ver o amor, riem maliciosamente dos namorados e dos amantes, quando não os perseguem e perturbam até lhes frustrarem as condições de felicidade. É dos adultos, porém, que surgem os processos auxiliares da inveja, dirigidos para combater efizcamente o amor, para reprimir a exteriorização das emoções, dos sentimentos e das paixões, para enfraquecer no condicionamento sociológico as energias criadoras da vida.

A maledicência, que é um dos processos mais vulgares no combate da inveja contra o amor, a maledicência, que tem por fim a desonra do homem ou da mulher, é significativa da imoralidade de um ambiente sem educação, mas é mais ainda significativa de falta de imaginação. A maledicência é, por isso, um sinal de decadência. Quem diz o mal torna-se a pouco e pouco incapaz de ouvir o bem».

Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).




A GUERRA TOTAL







A partir de Verdun, que os alemães baptizam de Batalha do Material (Materialschlacht), o paralelismo instituído pela cavalaria entre as formas do amor e da guerra parece dissolvido.

Sem dúvida que o fim concreto da guerra foi sempre o d eforçar a resistência inimiga, destruindo as suas forças armadas. (Forçar a resistência da mulher pela sedução é a paz; pela violação é a guerra). Mas não se destruía por isso a nação que se desejava subjugar: bastava reduzir as suas defesas. Batalha organizada contra um exército profissional, sítio das fortalezas, captura do chefe: um sistema de regras precisas, portanto uma arte, designava o vencedor. E este vencedor triunfava sobre algo vivo, um país ou povo ainda desejáveis. A intervenção duma técnica desumana que mobiliza todas as forças dum estado mudou a face da guerra em Verdun.

Porque a partir do momento em que a guerra se torna «total» - e já não apenas militar - a destruição das resistências armadas significa o aniquilamento das forças vivas do inimigo: operários mobilizados nas fábricas, mães que procriam soldados, em suma, todos os «meios de produção», coisas e pessoas equiparadas. A guerra já não é uma violação mas um assassínio do objecto cobiçado e hostil - quer dizer, um acto «total», que destrói esse objecto em vez de se apoderar dele. Verdun, de resto, não foi mais que um prólogo a essa guerra nova, pois que o processo se limitou à destruição  metódica dum milhão de soldados, não de civis. Mas esse Kriegspiel permitiu que o aperfeiçoamento dum instrumento que, posteriormente, se viria a achar habilitado a operar em campos bem mais vastos, como Londres e Berlim; já não apenas sobre a carne para canhões, mas sobre a carne que fabrica os canhões, o que é evidentemente mais eficaz.

A técnica da morte a grande distância não encontra o seu equilíbrio em nenhuma ética imaginável do amor. É que a guerra escapa ao homem e ao instinto; volta-se contra a própria paixão de que nasceu. E é isso, não a envergadura dos massacres, que é novo na história do mundo.

A esse propósito eis três observações que, como veremos, não deixam de estar ligadas:

a) A guerra nasceu no campo: e o termo [campanha] manteve-se até aos nossos dias. Mas a partir de 1914 assiste-se à sua urbanização. Para a grande parte das massas de camponeses, a primeira guerra mundial foi um primeiro contacto com a civilização técnica. Uma espécie de visita dirigida à exposição universal das indústrias e artes aplicadas da morte, com demonstrações quotidianas ao vivo.






b) Essa colectivização dos meios destrutivos, mecanizados, teve como efeito neutralizar a paixão propriamente bélica dos combatentes. Não se tratava já de violência do sangue mas sim de brutalidade quantitativa, de massas lançadas umas contras as outras, já não pelos movimentos do delírio passional, mas sim pela inteligência calculadora de engenheiros. Agora o homem é apenas o servo do material; ele próprio passa ao estado de material, tanto mais eficaz quanto menos humano for nos seus reflexos individuais. Assim, apesar da drogagem empreendida pela propaganda, a vitória depende, no fim de contas, das leis da mecânica, mais do que das previsões da psicologia. O instinto combativo é frustrado. De 1914 a 1918, a habitual explosão de sexualidade que acompanhava os grandes conflitos só se produziu na retaguarda, nas populações civis. A despeito dos esforços do lirismo oficial, duma certa literatura e da imagística popular, o gozo de licença assemelha-se bastante à corrida do macho longamente privado. Testemunhos sem conta de médicos e de soldados, provam que a guerra do material se traduziu na realidade por uma «catástrofe sexual» (1). A impotência generalizada, ou pelo menos os seus pródromos, como o onanismo crónico e a homossexualidade, foi o resultado estatístico de quatro anos passados nas trincheiras. E daí resulta que, pela primeira vez, se tenha assistido a uma revolta generalizada dos soldados contra a guerra (2), deixando esta de figurar como exutório das paixões para passar a ser uma espécie de imensa castração da Europa.

c) A guerra total pressupõe a destruição de todas as formas convencionais da luta. A partir de 1920, já ninguém se submete aos «fingimentos diplomáticos» do ultimato e da «declaração» de guerra. Os tratados já não serão a solene conclusão das hostilidades. As distinções arbitrárias entre cidades abertas e cidades fortificadas, civis e militares, meios de destruição permitidos ou condenados, cairão em desuso. Donde resulta que a derrota dum país já não será simbólica, metafórica, quer dizer, limitada a certos sinais convencionais, mas será concretamente a morte desse país. Mais uma vez, desde que se abandone a ideia de regras, a guerra já não traduz o acto de violação no plano das nações mas sim o acto do crime sádico, a posse duma vítima morta, portanto de facto uma não-posse. Já não exprime o instinto sexual normal, nem mesmo a paixão que o utiliza e o transcende, mas apenas essa perversão da paixão - de resto fatal, como já vimos - que é o «complexo de castração».


A PAIXÃO TRANSPOSTA PARA A POLÍTICA


Hitler e Hindenburg









Desastre do dirigível Zeppelin (LZ 129 Hidenburg) em 1937.





Escorraçada do campo da guerra cavalheiresca - quando esse campo deixa de ser fechado como deve ser um terreno de jogo e já se não trata duma liça decorada de símbolos mas dum sector de bombardeamento - a paixão procurou e encontrou outros modos de expressão em actos.

De resto, a isso era obrigada pela depreciação das resistências morais e privadas, assim como pela deturpação da guerra. Por um lado, nos países democráticos, os costumes abrandaram a tal ponto que tendiam a já não oferecer nenhuns obstáculos absolutos, portanto exaltantes para a paixão; por outro lado, nos países totalitários, a mentalização dos jovens pelo Estado tendia a eliminar da vida privada toda a espécie de trágico íntimo e de problemática mais ou menos no mesmo sentido: desencorajam a necessidade de paixão, hereditária ou adquirida pela cultura; afrouxam os estímulos íntimos e pessoais.

O amor, entre as duas guerras, foi curiosa mistura de intelectualismo angustiado (literatura da inquietação e da anarquia burguesa) e de cinismo materialista (Neue Sachlichkeit dos alemães). Viu-se bem que a paixão romântica já não encontrava com que elaborar um mito; já não encontrava resistências no seio duma atmosfera de tempestuosa e secreta devoção. O receio mórbido das seduções «ingénuas» e das «ílusões do coração», aliado a um desejo febril de aventura, é o clima dos principais romances desse período. O que significa sem equívoco que as relações individuais dos sexos deixaram de ser o lugar por excelência onde se realiza a paixão. Esta parece desligar-se do seu suporte. Entramos na era das líbidos errantes, em busca dum teatro novo. E o primeiro que se lhe ofereceu foi o teatro político.

A política de massas, tal como foi praticada a partir de 1917, mais não é do que a continuação da guerra total por outros meios (para retomar mais uma vez, invertendo-a, a célebre fórmula de Clausewitz). O termo de «frentes» já o indica. E por outro lado, o Estado totalitário não é mais do que o estado de guerra prolongado, ou permanentemente recriado e mantido na nação. Mas se a guerra total aniquila toda a possibilidade de paixão, a politica transpõe as paixões individuais para o nível do ser colectivo. Tudo o que a educação totalitária recusa aos indivíduos isolados, ela o transfere para a Nação personificada. É a Nação (ou o Partido) que tem paixões. É ela (ou ele) que assume a dialéctica do obstáculo exaltante, da ascese e da inconsciente corrida para a morte heróica, divinizante.






Enquanto no interior e na base se esterilizam os problemas pessoais, no exterior e no cimo o potencial de paixão cresce dia a dia. O eugenismo triunfa na moral que concerne os cidadãos: e o eugenismo é a negação racional de toda a espécie de aventura privada. O que só pode aumentar a tensão do conjunto, personificada na Nação. De 1933 a 1939, o Estado-Nação de Hitler diz aos alemães: Procriai! - o que é uma negação da paixão; mas diz aos povos vizinhos: - Nós somos demasiado numerosos dentro de fronteiras, exijo portanto novas terras! - o que é a nova paixão. Assim, todas as tensões suprimidas na base se acumulam no cimo. Ora é claro que estas vontades opostas de poder - já há vários estados totalitários - não podem, com efeito, deixar de se embaterem passionalmente. Mutuamente se transformam no obstáculo. O objectivo real, tácito, fatal dessas exaltações totalitárias é portanto a guerra, que significa a morte. E como se vê no caso da paixão de amor, esse objectivo não só é negado com vigor pelos interessados como é realmente inconsciente. Ninguém ousa dizer: quero a guerra; assim como no amor-paixão os amantes não dizem: quero a morte. Apenas tudo o que se faz prepara esse fim. E tudo o que se exalta aí encontra o seu sentido real.

Seria fácil multiplicar as provas deste novo paralelismo entre a política e a paixão. As restrições que o Estado impõe em nome da grandeza nacional correspondem a uma ascese colectivizada. A honra do cavaleiro é a inquieta susceptibilidade das Nações totalitárias. Por fim, sublinharei um facto bastante impressionante: é que as multidões reagem perante o ditador, num dado país, da mesma maneira que a mulher, nesse país, reage às solicitações do homem. Escrevia eu em 1938: «Os franceses espantam-se do êxito de Hitler junto da massa germânica, mas não se espantariam menos dos modos que agradam aos alemães. Nos países latinos, fazer a corte a uma mulher é atordoá-la com palavras lisonjeiras; tal como os nossos homens políticos, ao pretenderem seduzir uma assembleia eleitoral. Hitler é mais brutal: zanga-se e queixa-se ao mesmo tempo; não persuade, enfeitiça; invoca enfim o destino e afirma que esse destino é ele... Desse  modo, ele liberta a multidão da responsabilidade dos seus actos, portanto do sentimento opressivo da sua culpabilidade moral. Ela entrega-se ao salvador terrível e nomeia-o o seu libertador no próprio instante em que ele a acorrenta e a possui. Não esqueçamos que o termo popular que designa na Alemanha o acto de desposar é freien, verbo que significa literalmente: libertar... Hitler sabe-o e talvez bem de mais:

«Na sua maioria, escreve ele, o povo acha-se numa disposição e num estado de espírito de tal modo femininos que as suas opiniões e os seus actos são determinados muito mais pela impressão produzida nos sentidos do que pela pura reflexão. A massa é pouco acessível às ideias abstractas. Em contrapartida, muito mais fácil é convencê-la no domínio dos sentimentos (...) Desde sempre a força que pôs em marcha as revoluções mais violentas residiu bem menos na proclamação duma ideia científica que se apoderava das multidões do que num fanatismo animador e numa verdadeira histeria que as entusiasmava loucamente» (Mein Kampf).







Sim, «desde sempre» assim foi. Mas a novidade do nosso tempo está em que a acção passional sobre as massas, como a definiu Hitler, é agora acompanhada duma acção racionalizante sobre os indivíduos. Por outro lado, essa acção já não é exercida por um «condutor» qualquer mas pelo Chefe que encarna a Nação. Donde a força sem precedente da transferência que se opera do privado para o público.

Que sobre-humano Wagner estaria à altura de orquestrar a grandiosa catástrofe da paixão que se tornou totalitária?

Isto conduz-nos ao limiar duma conclusão que eu estava longe de prever (...). Que se siga a evolução do mito ocidental da paixão na história da literatura ou na história dos métodos da guerra, é a mesma curva qua aparece. E chega-se igualmente a esse aspecto demasiado ignorado da crise da nossa época que é a dissolução das formas instituídas da cavalaria.

Foi no domínio da guerra, onde toda a evolução é praticamente irreversível - enquanto há «regressos» literários - que a necessidade duma solução nova surgiu em primeiro lugar. Essa solução chama-se Estado totalitário. É a resposta do século XX, nascida da guerra, à ameaça permanente que a paixão e o instinto da morte fazem pesar sobre a sociedade.

A resposta do século XII tinha sido a cavalaria cortês, a sua ética e os seus mitos romanescos. A resposta do século XVII tem por símbolo a tragédia clássica (3). A resposta do século XVIII foi o cinismo de Don Juan e a ironia racionalista. Mas o romantismo não foi uma resposta, a não ser que se admita - e é possível - que o seu eloquente abandono às potências nocturnas do mito tenha sido um último meio de a deprimir por um excesso intencional. De qualquer modo, essa defesa era fraca perante o perigo desencadeado. As forças antivitais longamente contidas pelo mito espalharam-se pelos domínios mais diversos, donde resultou uma dissociação, no sentido preciso de afrouxamento dos laços sociais. A primeira guerra europeia foi o julgamento dum mundo que havia julgado poder abandonar as formas e libertar duma maneira anárquica o «conteúdo» mortal do mito.

Todavia, não creio que a drenagem de toda a paixão pela Nação seja mais do que medida de desespero. É afastar a ameaça imediata, mas agravá-la, fazendo-a pesar sobre a própria vida dos povos assim constituídos em blocos. O estado totalitário é de facto uma forma recriada, mas uma forma demasiado vasta, demasiado rígida e demasiado geométrica para poder modelar e organizar nos seus limites a vida complexa dos homens, mesmo militarizados. Medidas policiais não fazem uma cultura, os slogans não fazem uma moral. Entre o quadro artificial dos grandes Estados e a vida quotidiana dos homens, subsiste ainda demasiado jogo, demasiada angústia e demasiado possível. Nada está realmente resolvido. Pelo que:

Ou será a guerra atómica total, a desintegração física e moral e o problema da paixão será suprimido com a civilização que o originou:

Ou será a paz, e o problema renascerá nos países totalitários, como não deixa de acontecer nas sociedades liberais (in «O Amor e o Ocidente», Vega, pp. 239-245).




Denis de Rougemont






Notas:

(1) Conclusão de uma investigação feita sobre a conduta de Magnus Hirschfeld por doze sábios alemães e austríacos, e publicada sob o título de Sittengeschichte des Welkriegs (História dos costumes durante a guerra mundial).

(2) O lansquenete moderno, achando a guerra total uma negação da paixão guerreira lança-se em aventuras absurdas que procura enquanto absurdas e desumanas (ver La Guerre notre Mère de Ernst Jünger e Les Reprouvés de Ernst Von Solomon). Combate-se por prazer, ou antes, mais por desespero, contra quem quer que seja. Proletariado guerreiro dos «voluntários» (Báltico, Espanha, China). É a devassidão desesperada e venal do desiludido da paixão. Vingança sádica.

(3) Bachofen (autor do Mutterrecht: o Matriarcado) expõe uma teoria análoga a propósito da tragédia grega, considerada Auseinandersetzung (a discussão, a querela, a explicação) entre a comunidade e as potências do mito.


quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O Amor Cortês: trovadores e cátaros

Escrito por Denis de Rougemont








«Mais vale casar do que abrasar».

São Paulo («Epístola aos Coríntios»).


«Amor não é amor; Amor é Anti-Roma».

Sampaio Bruno («Os Cavaleiros do Amor»).


«Amor, anti-Roma, não vem com a Igreja Romana; vem com a Roma cesarista e cesarina. (...) Tanto Bruno como Pascoaes leram a tradição anti-Roma como dirigida à Igreja romana, mas, ao que julgamos, a tradição anti-Roma é anterior à cristianização peninsular. O carácter anti-Roma eclesial só lhe foi dado, por antonomásia, no movimento albigense, nunca antes».


Pinharanda Gomes («A Patrologia Lusitana»).


«A poesia dos trovadores, que se aclimou entre nós durante o reinado de D. Afonso III, tem origens imprecisas que tanto podem ser atribuídas à poesia árabe como à poesia provençal».

Álvaro Ribeiro («Filosofia Escolástica e Dedução Cronológica»).



«Aquele que ama, que se abstém de tudo o que é interdito, que guarda o seu amor secreto e que morre de seu segredo, esse morre mártir».


(Versículo do Al-Quran).



«Em Portugal, o catarismo foi tão episódico como, mais tarde, o protestantismo. É inegável, porém, que as cantigas d'amor e só as cantigas d'amor podem ser interpretadas como cifras da iniciação cátara: o amor que nasce é um mal que ensandece; a afinidade do amor com a morte; a recusa por parte da amiga de se entregar ao amigo, que a deseja fisicamente; e tudo o mais pode ser referido à endura, termo que, aliás, os poetas galaico-portugueses usam para caracterizar a paixão. Pelo contrário, nas cantigas d'amigo, em que várias vezes vem referida a consumação do acto sexual, onde nunca o marido aparece como obstáculo à união dos amantes, mas a mãe (o que faz supor tratar-se de raparigas solteiras), onde a natureza conspira com os amantes na realização do amor, parece residir a cifra doutro tipo de iniciação erótica, que subsistiria ao lado e ao mesmo tempo do catarismo importado com as cantigas d'amor. Os investigadores portugueses que trataram do assunto, de Rodrigues Lapa a Natália Correia, atribuíram às cantigas d'amigo um fundo pagão, especificamente celta, que explicará a ressonância naturalista. Hernâni Cidade, procurando fontes mais próximas, sugere uma origem em Prisciliano nas cantigas d'amigo».


António Telmo («História Secreta de Portugal»).








«O voi, ch’avete gl’intellectti sani
Mirate la dottrina che s’asconde
Soto’l velame versi strani».

Dante Alighieri


«Oh vós, qu’Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades, quando lerdes
N'um breve livro, casos tão diversos,

Verdades puras são, e não defeitos;
Entendei que, segundo o Amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos».

Luís de Camões («Os Lusíadas»).



«Ved cómo Platón va derecho, sin vacilaciones, y agarra com sus pinzas mentales el nervio tremebundo del amor. "El amor – dice – es un anhelo de engendrar en la belleza". Qué ingenuidad! – dicen las damas doctoresas en amor, tomando sus cocktails en todos los hoteles Ritz del mundo. No sospecham las damas la irónica complacência del filósofo cuando ante sus palabras ve saetear en los ojos encantadores de las damas esa atribución de ingenuidad. Olvidam um poco que quando el filósofo les habla sobre el amor, no les hace el amor, sino todo lo contrario».


José Ortega y Gasset («Estudios sobre el Amor»).









O Amor Cortês: trovadores e cátaros


Que toda a poesia europeia tenha saído da poesia dos trovadores no século XII, é um facto que ninguém contestará. «Sim, entre os séculos XI e XII, a poesia, donde quer que fosse (húngara, espanhola, portuguesa, alemã, siciliana, toscana, genovesa, pisana, picarda, flamenga, inglesa, etc.) fora previamente languedociana, isto é, o poeta, não podendo ser senão trovador, era forçado a falar – e a aprendê-la se a não soubesse - a língua do trovador, que sempre foi o provençal» (1).

Que é a poesia dos trovadores? A exaltação do amor infeliz. «Há em toda a lírica occitana e na lírica de Dante e de Petrarca um só tema: o amor; e não o amor feliz, realizado ou satisfeito (espectáculo que nada pode engendrar) mas, pelo contrário, o amor perpetuamente insatisfeito; ou seja, apenas duas personagens: o poeta que, oitocentas, novecentas, mil vezes, reedita a sua queixa e uma bela que diz sempre que não».

A Europa não conheceu poesia mais profundamente retórica: não só nas suas formas verbais e musicais, como também, por paradoxal que isso pareça, na sua própria inspiração, uma vez que esta tem como fonte um sistema fixo de leis que serão codificadas sob o nome de leys d’amors. Mas deve também dizer-se que nunca a retórica foi mais exaltante e ardente. O que ela exalta é o amor fora do casamento, porque o casamento significa apenas a união dos corpos, enquanto o «Amor», que é o Eros supremo, é o transporte da alma para a união luminosa, para lá de todo o amor possível nesta vida. Eis por que o Amor supõe a castidade. E d’amor mou castitaz (de amor vem castidade), canta o trovador de Toulouse, Guilhem Montanhagol. O amor supõe também um ritual: o domnei ou donnoi, vassalagem amorosa. O poeta conquista a sua dama pela beleza da sua homenagem musical. Jura-lhe, de joelhos, uma eterna fidelidade, como se faz a um suserano. Como garantia de amor, a dama dava ao seu poeta-paladino um anel de oiro, ordenando-lhe que se erguesse e depondo-lhe um beijo na fronte. A partir daí, os amantes estão ligados pelas leis da cortesia: o segredo, a paciência e a «mesura» que não é totalmente sinónimo de castidade, como veremos, mas antes de contentação… E, sobretudo, o homem será o servo da mulher.







Donde vem essa concepção nova do amor «perpetuamente insatisfeito» e esse louvor entusiasta e queixoso de «uma bela que diz sempre que não»? E donde vem esse sábio lirismo que de repente aí se encontra para traduzir a nova paixão?

Não será exagerado sublinhar o carácter miraculoso deste duplo nascimento, tão rápido: no espaço de cerca de vinte anos, nascimento duma visão da mulher inteiramente contrária aos costumes tradicionais – a mulher vê-se elevada acima do homem, para quem se torna o ideal nostálgico – e nascimento duma poesia de formas fixas, muito complicadas e requintadas, sem precedente em toda a Antiguidade nem nos poucos séculos de cultura românica que se sucedem ao renascimento carolíngio.

Ou tudo isso «cai do céu», quer dizer, brota duma inspiração súbita e colectiva – mas ainda seria necessário explicar porque é que se produziu em dado momento e dados locais bem definidos; ou tudo isso resulta duma causa histórica concreta, - e então trata-se de saber por que razões ela permaneceu obscura até aos nossos dias.

O que é extremamente curioso é o embaraço dos romanistas mais sérios logo que chegam a reconhecer a questão, e a facilidade com que decidem não responder.

Toda a gente admite hoje em dia que a poesia provençal, e as concepções do amor que ela ilustra, «longe de se explicar pelas condições em que nasceu, parece em contradição absoluta com essas condições» (2). «É evidente que ela não reflecte de modo algum a realidade, já que a condição da mulher não foi, nas instituições feudais do Sul, menos humilde e dependente que nas do Norte» (3). Ora, se é «evidente» a esse ponto que os trovadores não colhiam nada da realidade social, parece não menos evidente que a sua concepção do amor tem outra origem. Qual poderia ela ser?

A mesma pergunta se põe em relação à sua arte, quer dizer, à sua técnica poética. «Criação extremamente original», escreve Jeanroy (mesmo que censure a cada um destes poetas, tomado separadamente, não terem mostrado nenhuma espécie de originalidade e se terem limitado a apurar formas fixas e lugares-comuns: mas ainda era preciso que um deles, pelo menos, as tivesse criado!». Ora desde que um historiador se arrisca a formular uma hipótese sobre a origem da retórica cortês, os especialistas cumulam-no das mais ácidas ironias, sobretudo em França.

Sismondi fazia remontar aos Árabes o misticismo do sentimento: afasta-se desdenhosamente «essa enormidade» (4). Diez mostrou as semelhanças de forma (ritmos e cortes) entre a lírica árabe e a lírica provençal: não é sério, dizem-nos. Brinkmann e outros supuseram que a poesia latina dos séculos XI e XII podia ter fornecido modelos: bem vistas as coisas, essa hipótese não é sustentável porque os trovadores, parece, não tinham suficiente cultura para conhecer essa poesia. E assim, para cada resposta proposta, a «seriedade» dos sábios parece consistir sobretudo numa propensão para qualificar de enormidade ou de fantasia tudo o que ameace dar um sentido ao fenómeno que passam a vida a estudar.






É certo que Wechssler, numa obra famosa (5), julgou poder esclarecer tudo distinguindo na origem da lírica provençal influências religiosas, neoplatónicas e cristãs adulteradas… Mas essas «afirmações ousadas» em breve ergueram contra si o conjunto dos nossos eruditos. Wechssler viu-se tratado de «doutrinário» - suprema injúria – e vários insinuaram que a qualidade de alemão desse professor os dispensava de refutar um sistema incompatível com o claro génio da nossa raça.

Resta, portanto, dum lado um fenómeno estranho e, doutro, sábias refutações de tudo o que pretenda explicá-lo. «É igualmente possível – escreve um dos nossos professores – ver nessas canções de amor, que constituem três quartas partes da poesia provençal, uma imagem fiel da realidade e uma pura colecção de fórmulas vazias de sentido». Sem dúvida. Mas aí o autor anuncia que, como «historiador escrupuloso», evita pronunciar-se. O que equivale a dizer que a lírica cortês de que se ocupa permanece a seus olhos, e até haver mais ampla informação, «uma colecção de fórmulas vazias de sentido». Excelente «material» é certo, para um filólogo que se preze e que não queira «forçar» os textos, nem sequer pela menor tentativa de os compreender.

Pela minha parte não poderei contentar-me com uma hipótese a tal ponto escrupulosa. Recuso-me a supor um só momento que os trovadores foram uns fracos de espírito, apenas bons para repetir incansavelmente fórmulas aprendidas não se sabe de onde. E a mim mesmo pergunto, depois de Aroux e Péladan, se o segredo de toda essa poesia não deveria ser procurado muito mais próximo dela do que se tem feito – lá mesmo: lá, no próprio meio em que ela nasceu. E não no meio puramente «social» no sentido moderno, mas sim na atmosfera religiosa que determinava as formas, mesmo sociais, desse meio (6).

Partindo daí, verificamos que um grande facto histórico domina o século XII provençal.

Ao mesmo tempo que o lirismo do domnei e nas mesmas províncias – Languedoc, Poitou, Renânia, Catalunha – uma heresia poderosa se desenvolvia. Pôde dizer-se da religião cátara que ela representou para a Igreja um perigo tão grave como o do arianismo. Não vão alguns ao ponto de pretender que ela fez no Ocidente milhões de fiéis secretos, apesar de tão sangrenta cruzada dos Albigenses no século XIII e até à Reforma?

Pode atribuir-se como origem precisa da heresia as seitas neo-maniqueístas da Ásia Menor e as Igrejas bogomiles da Dalmácia e da Bulgária. Os «puros» ou cátaros (7) ligam-se às grandes correntes gnósticas que atravessam o primeiro milénio do cristianismo. E sabemos bem que a Gnose, assim como as doutrinas de Mani ou Manés, mergulha as raízes na religião dualista do Irão.

Qual era a doutrina dos cátaros? Longamente se repetiu que «nunca se saberá», e isso pela excelente razão de que a Inquisição queimou todos os livros de culto e tratados da doutrina da Heresia e que os únicos testemunhos subsistentes eram os interrogatórios pelos escrivães. De facto, a descoberta e a publicação, em 1939, duma obra teológica (tardia, é certo) o Livre des deux Principes (8), acrescentada à recuperação dum Novo Testamento e de rituais utilizados pelos Heréticos (9), permite hoje conhecer, no seu conjunto e em algumas das suas variantes, os dogmas da «Igreja de Amor», nome que por vezes se deu à heresia também chamada «albigense» (10).

A origem permanente e sempre tragicamente actual da atitude cátara ou, duma maneira mais geral, do dualismo nas religiões mais diversas, como na reflexão de milhões de indivíduos, foi e permanece o problema do Mal, tal como o homem espiritual o experimenta neste mundo.






O cristianismo traz ao problema uma resposta dialéctica e paradoxal que se resume nas palavras liberdade e graça. Mais pessimista e duma lógica mais maciça, o dualismo estabelece a existência absolutamente heterogénea do Bem e do Mal, quer dizer, de dois mundos e de duas criações. Com efeito, Deus é Amor mas o mundo é mau. Portanto, Deus não poderia ser o autor do mundo, das suas trevas e do pecado que nos rodeia. A sua primeira criação na ordem espiritual, depois anímica, foi terminada na ordem material pelo Anjo revoltado, o Grande Arrogante, o Demiurgo, isto é, Lúcifer ou Satanás. Este tentou as Almas ou Anjos dizendo-lhes «que mais lhes valia estar cá em baixo, onde podiam praticar o mal e o bem, do que lá em cima, onde Deus só lhes permitia o bem» (11). Para melhor seduzir as Almas, Lúcifer mostrou-lhes «uma mulher duma beleza esplendorosa que os inflamou de desejo». Depois deixou o Céu com ela para descer para a matéria e para a manifestação sensível. As Almas-Anjos seguiram Satanás e a mulher duma beleza esplendorosa, foram presas em corpos materiais que lhes eram e permanecem estranhos. (Esta ideia parece-me esclarecer uma sensação fundamental do homem, mesmo em nossos dias). A alma, a partir de então, encontra-se separada de seu espírito, que permanece no Céu. Tentada pela liberdade, torna-se de facto prisioneira dum corpo com apetites terrestres, submetido às leis da procriação e da morte. Mas Cristo veio até nós para nos mostrar o caminho de regresso à Luz. Esse Cristo, nisso semelhante ao dos Gnósticos e ao de Manés, não incarnou verdadeiramente: apenas tomou a aparência dum homem. É aqui que reside a grande heresia docetista (do grego dokesis, aparência) que, de Marcião até aos nossos dias, traduz a nossa recusa «natural» em admitir o escândalo dum Deus-Homem. Os Cátaros rejeitam portanto o dogma da Encarnação e, a fortiori, a sua tradução romana no sacrifício da missa: eles substituem-no por uma ceia fraterna simbolizando acontecimentos puramente espirituais. Rejeitam também o baptismo pela água e não reconhecem senão o baptismo pelo espírito consolador: esse consolamentum tornou-se o rito maior da sua Igreja. Este era dado, a quando de cerimónias de iniciação, aos irmãos que aceitavam renunciar ao mundo e se comprometiam solenemente a consagrar-se unicamente a Deus, a jamais mentir nem prestar juramento, a não matar nem comer animal algum, e finalmente a abster-se de todo o contacto com suas mulheres, se fossem casados. Parece que um jejum de quarenta dias (12) precedia a iniciação e que um outro de duração igual se lhe sucedia (mais tarde, no século XIV, esse jejum ritual ou endura conduzirá alguns dos «puros» até à morte voluntária, morte por amor de Deus, consumação do desapego supremo de toda a lei material). O Consolamentum era administrado pelos bispos e comportava a imposição de mãos, no meio do círculo dos «puros», seguido do beijo da paz trocado pelos irmãos. Após o que o iniciado era objecto de veneração para os simples crentes não ainda «consolados»: tinha direito à «saudação» dos crentes, isto é, a três «reverências».

Viu-se o papel da Mulher, engodo do Diabo para arrastar as almas para os corpos. Em contrapartida (em compensação, dir-se-ia), um princípio feminino, pré-existente à criação material, desempenha no catarismo um papel análogo ao da Pistis-Sophia nos gnósticos. À Mulher, instrumento de perdição das almas, responde Maria, símbolo da pura Luz salvadora, Mãe intacta (imaterial) de Jesus e, parece, Juiz cheio de doçura dos espíritos libertados.

Os maniqueístas conheciam há séculos os mesmos sacramentos que os Cátaros: a imposição das mãos, o beijo da paz e a veneração dos Eleitos (ou «puros»). É importante mencionar aqui a veneração maniqueísta dirigida à «forma de luz» que em cada um representa o seu próprio espírito (que permaneceu no Céu, fora da manifestação) e que acolhe a homenagem da sua alma por uma saudação e um beijo.


Lúcifer


Sendo o inferno a prisão da matéria, Lúcifer, anjo revoltado, não pode aí reinar a não ser durante o tempo que durar o «erro» das almas. No termo do ciclo de suas provas – comportando várias vidas, físicas ou outras, para os homens ainda não iluminados – a criação será reintegrada na unidade do Espírito original, os pecadores arrastados por Satanás serão salvos e o próprio Satanás entrará de novo na obediência do Altíssimo.

O dualismo dos Cátaros resolve-se portanto num verdadeiro monismo escatológico, enquanto a ortodoxia cristã, decretando a condenação eterna do Diabo e dos pecadores endurecidos, conduz a um dualismo final, se bem que, ao contrário do maniqueísmo, ela professe a ideia duma criação única, divina e boa na origem.

Notemos finalmente este último aspecto: como sucedeu com tantas seitas e religiões orientais – jainismo, budismo, essenismo, gnosticismo cristão – a Igreja cátara dividia-se em dois grupos: os «Perfeitos» (perfecti) (13) que haviam recebido o consolamentum, e os simples «crentes» (credentes ou imperfecti). Só os segundos tinham o direito de se casar e de viver no mundo condenado pelos puros, sem se submeterem a todos os preceitos da moral esotérica: mortificações corporais, desprezo pela criação, dissolução de todos os laços mundanos.

São Bernardo de Claraval (citado por Rahn) pôde dizer dos Cátaros, que todavia combatia com todas as suas forças: «Não houve certamente sermões mais cristãos que os deles e seus costumes eram puros…».

Este juízo redime, em parte, as calúnias da Inquisição. Mas admiramo-nos de ver este Santo doutor qualificar de «cristã» uma prédica que nega vários dos dogmas fundamentais da sua Igreja. Quanto à pureza dos costumes dos Cátaros, vimos que ela traduzia crenças muito diferentes das que fundamentam a moral cristã ortodoxa. A condenação da carne, onde alguns julgam ver hoje uma característica cristã, é na verdade de origem maniqueísta e «herética». Porque, é essencial notá-lo aqui, a «carne» de que fala São Paulo não é o corpo físico mas o total do homem não crente, corpo, razão, faculdade, desejos – e portanto também a alma.

A cruzada dos Albigenses, conduzida pelo Abade de Cister no princípio do século XIII, destruiu as cidades dos Cátaros, queimou os seus livros, massacrou e queimou as populações que os amavam, violou os seus santuários e o seu último lugar sagrado, o castelo-templo de Montségur (14) – ou seja, saqueou brutalmente a civilização tão requintada de que tinham sido a alma austera e secreta. E, contudo, dessa cultura e de suas doutrinas fundamentais somos ainda tributários, para lá do que se possa imaginar…


Dante herético?






Independentemente dos trabalhos muito sérios de um Asín Palacios sobre uma possível influência da mística sufi na Comédia, pode ter interesse citar a tese difícil e um pouco ousada de dois autores do século passado: Eugène Aroux e, depois dele, Péladan. Aroux expõe o resultado das suas induções, numa obra, hoje em dia praticamente impossível de encontrar, intitulada: Dante, révolutionnaire, hérétique et socialiste (1854). Dante não só fazia parte da Ordem dos Templários, mas a ordem teria estado ligada à heresia cátara – apesar das aparências – como o braço secular à autoridade espiritual. Então, toda a Comédia, o Convívio e até o De vulgari eloquentia deveriam ser interpretados simbolicamente. Num opúsculo posterior, Aroux concretiza a sua interpretação. O título da brochura é significativo: Clef de la Comédie anticatholique de Dante Alighieri, Pasteur de l’Église albigeoise de la ville de Florence, afflié à l’ordre du Temple – donnant l’explication du langage symbolique des fidèles d’Amour dans les compositions lyriques, romans et épopées chevaleresques des troubadours (1856). É um léxico que dá o sentido de cerca de 500 palavras, como por exemplo:

«Árvores mortas». – Os católicos. Os trovadores chamavam aos membros do clero católico árvores outonais mortas.

«Albigenismo, Albigense». – Palavras que não se encontram na Comédia, mas cuja ideia está sempre presente.

«Damas». – Os iniciados do templarismo albigense que, por um desdobramento místico de alma e corpo, se supunha terem os dois sexos, homens enquanto corpo e forma material, e mulheres enquanto inteligência e pensamento livre da união com a miséria.

«Lancelote». - «(…) Foi preciso que os decifradores dos velhos manuscritos tivessem uma preocupação total com a letra para não terem visto em toda a literatura que passou sob os seus olhos senão contos sem sentido, com difusão europeia, e amores de uma pureza angélica a serem imitados como modelo pelas raças futuras!».

Não vou examinar estas «explicações», por vezes muito penetrantes, outras muito arbitrárias. Mas a história literária e religiosa confirmou, mais tarde, a exactidão de muitos dos pontos de vista de Aroux. (Gaston Paris quando estabeleceu em 1880 a filiação trovadores-troveiros-romance bretão; Asín Palacios quando retomou o problema da heresia em Dante, etc.) [in O Amor e o Ocidente, Vega, pp. 64-71 e 298-99).


Notas:

(1) Charles-Albert Cingria, Ieu oc tan (em Mesures, n.º 2, 1937). «Provençal» quer realmente dizer aqui: tolosino.

(2) A. Jeanroy, La poésie lyrique des troubadours, 1934.

(3) A. Jeanroy, Introdução a uma Anthologie des Troubadours, 1927.

(4) Jeanroy, La poésie lyrique des trobadours, I, p. 69.

(5) E. Wechssler, Das Kulturproblem des Minnesangs, Halle, 1909.

(6) Foram tentadas algumas explicações sociológicas da «cortesia». Ligam-se a suposições – muitas vezes contraditórias – sobre a condição da mulher no Languedoc. Vernon Lee, por exemplo, num ensaio intitulado Medieval Love, diz que nas cortes medievais havia «uma enorme preponderância numérica de homens», dos quais poucos podiam casar. Daí a idealização do objecto de um desejo tão difícil de satisfazer. Podemos aceitar a informação mas no fundo nada explica de exacto sobre a retórica cortês.

(7) Cátaro vem do grego catharoi, puros.


Castelo de Montségur


(8) Liber de duobus principiis, publicado por A. Dondaine, O. P., Roma, 1939. Dondaine e Arno Borst datam este tratado da segunda metade do século XIII.

(9) Cf. La Cène secrète publicada por Döllinger em Munique em 1890.

(10) Foram recentemente publicadas três obras importantes sobre o catarismo: Études manichéennes et cathares, de Déodat Roché (1952); Le Catharisme, de René Nelli, Charles Bru, cónego de Lagger, D. Roché, L. Sommariva (1953); Die Katharer, de Arno Borst (1953). Esta terceira obra opõe-se em muitos pontos às duas primeiras, mas o seu confronto é muito esclarecedor quanto à natureza exacta, evolução e complexidades da heresia.

(11) Cf. Prière cathare, citada por Döllinger. Repare-se que a liberdade do homem, o poder de praticar o mal ou o bem, teria a sua origem não em Deus mas no Diabo.

(12) Este número é arquetípico. Jesus permaneceu quarenta dias no Deserto. Os Hebreus erraram durante quarenta anos entre o Egipto e a Terra Prometida. O Dilúvio foi provocado por uma chuva de quarenta dias. No tantrismo budista, o «serviço» da Mulher está dividido em provas de quarenta dias, etc. Quarenta é o número da Provação.

(13) A expressão «perfeitos» só a encontramos nos registos da Inquisição. A palavra «bonshommes» (ou simplesmente cristãos) parece ter sido utilizada pelos próprios Cátaros, e «perfeitos» teria um sentido irónico.

(14) Ver o excelente trabalho de Fernand Niel, Montségur, la montagne inspirée, 1955. «Se Montségur não era o castelo do Graal [como afirmava Rahn], nenhum outro na Europa se adapta melhor do que ele às lendas graálicas». Para F. Niel o problema levantado por Rahn continua por solucionar. Acrescento que os adversários mais violentos desta hipótese são os que não conhecem o local de Montségur. O choque emocional provocado pela fantástica aparição do pico sagrado contém uma evidência de ordem diferente da que as «provas» escritas podiam trazer.