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sábado, 18 de julho de 2020

Mombaça, Terra do Mal

Escrito por António Telmo








«Ora uma fenomenologia do mal tem de ser desenvolvida a partir de um ponto de vista, se não metafísico, decerto com implicações teológicas. Precisa de considerar a origem misteriosa do mal e, portanto, um misterioso nexo que possibilite a interferência do mal no mundo do homem. "Causa vagabunda", como lhe chamou Platão (dizendo assim o mesmo que o povo designa ao falar do Diabo como essencialmente manhoso), o mal não confere à sua manifestação, à sua aparência, aquela continuidade e aquela persistência de formas que permitam ao pensamento doutriná-la e regulá-la. Por isso não pode o positivismo aceitar a realidade do mal visto que não pode apreender nela uma continuidade de formas de manifestação que fundamente a imutabilidade das leis científicas; considera-o como inexistente ou como resultado dos estados transitórios da humanidade que o positivo um dia virá, enfim, substituir. Inerente a esses estados, só para a teologia e para a metafísica o mal poderá constituir objecto de pensamento.»

Orlando Vitorino («A Fenomenologia do Mal»).


«A identificação de Luís de Camões com Vasco da Gama necessita de ser fundada. Não é, porém, difícil ver que Os Lusíadas, não deixando de ser os Lusitanos, descendentes de Luso, como Fiéis de Amor, têm em si o Luís, porquanto o poema é o cantar épico do Luís (de Camões), da sua navegação material e imaterial. Luís como luso são duas formas da palavra luz.

Por outro lado, n'Os Lusíadas, se declara que o homem Vasco da Gama, se o compararmos a César e a Alexandre, a Marco António e a Augusto tendo, como herói, a mesma bravura, era nulo no domínio do Espírito. Não tinha "na mão uma espada e na outra o livro", como de si diz Camões. Era rude, áspero e minguado de engenho.

Explicitamente, na estrofe 99 do Canto V, afirma ser ele, o Gama pouco amado das musas que inspiram Os Lusíadas, das Tágides e de Calíope. Daí podermos afirmar que o Vasco da Gama do Poema não é, senão por empréstimo, o homem Vasco da Gama.

Luís de Camões também fez materialmente a mesma viagem e, como o outro, sofreu as inclemências do mar. Como é possível, e mais do que possível, ver no "herói" um Cavaleiro do Amor, um Adepto, somos forçados a pensar que o nauta e a sua navegação, no que significa de iniciático, são a expressão da própria vivência do Poeta naquele domínio da alma em que a contemplação e a acção se reflectem uma na outra.

Posto isto, o caminho fica aberto para identificar Luís de Camões como também o Adamastor, como propusemos já. Luís de Camões é o Gama e é, nesse aspecto terrível, o Adamastor. Não se deve passar por alto aquilo que dele pensavam os seus contemporâneos, que era possuidor de uma natureza extraordinária, que tinham por terrível.»

António Telmo («Luís de Camões é verdadeiramente o Gama», in «Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas»).


Adamastor, escultura de Júlio Vaz Júnior no miradouro de Santa Catarina, Lisboa, Portugal.


«Claro que, cada povo, segundo a sua psicologia, segundo a sua maneira de ser, segundo o local do mundo em que vivia, segundo o que eram os ideais da sua vida, se comportou de uma ou de outra maneira. Nós podemos ver em todas as religiões, por exemplo, na religião judaica, na Bíblia, podemos ver em tradições orientais, podemos ver na Grécia, formas diferentes de entender o divino. Para a gente da Índia e para outra gente do Oriente, o divino devia ser sobretudo o repouso absoluto, o deitar-se numa confiança completa procurando cada homem atingir o ser, o nada, um vazio absoluto, para plenamente repousar num divino que eles viam como tendo por ideal ou sendo idealmente, também, um vazio absoluto. Mas, por exemplo, os gregos olharam o divino de uma maneira completamente diferente. Pela sua própria psicologia, pelas características da natureza da paisagem na Grécia, o que eles gostariam era de haver na Terra um bailado de vidas, tão belo, tão variado, tão pleno, como havia no politeísmo que eles imaginaram e, coisa curiosa, assim que esse politeísmo passou para uma nação que era, fundamentalmente, jurista e militar, a dos romanos, logo o politeísmo mudou. Não há mais o alegre bailado, e o variado bailado de deuses e de deusas; o que há é uma série de repartições públicas, de Estado organizado, de funções que cabem a este ou àquele deus, num retrato perfeito de que eram os romanos na Terra.

Para os portugueses, no entanto, havia essa saudade do Espírito Santo. Mas havia qualquer coisa ainda que opunha a Europa a Portugal nesse ponto teológico: é que os portugueses apreciavam o Espírito Santo além de tudo, porque era o aspecto divino do inesperado no mundo, do imprevisível, em que os portugueses tinham um grande interesse, provavelmente porque, dentro deles, a força maior que sentiam era essa paixão pelo inesperado, que lhes permitiria a eles mostrar toda a sua capacidade, todo o seu talento, de dar respostas improvisadas às perguntas em que ninguém tinha pensado.

Mas agora a Europa se lançava, e por intermédio dos navios portugueses, a Europa se lançava num empreendimento em que a paixão não devia ser pelo inesperado - pelo inesperado havia a curiosidade, naturalmente, o que se ia descobrindo, o que se ia vendo -, mas o que interessava era prever tudo aquilo que pudesse dar segurança ao marinheiro que já não pilotava uma caravela de descobrimento, mas ia pilotando naus, ia dirigindo naus com bons porões para levar mercadorias fabricadas no Ocidente que pudessem ser trocadas pelas matérias-primas ou pela mão-de-obra que era preciso trazer da África ou do Oriente. Então, começa uma pressão - até pelo envio de imagens que podíamos dizer de pensamento oficial -, começa a chegar a Portugal uma quantidade de imagens em que o divino é apresentado de uma forma inteiramente ortodoxa. Deus Pai sentado no trono, como convinha ao Rei e ao Criador do universo, segurando a cruz em que gente incompreendida tinha crucificado Seu Filho, o Cristo, e, sobre o grupo, a pomba do Espírito Santo, marcando a identidade da natureza do Pai com a natureza do Filho.»

«Agostinho da Silva - Ele Próprio».







«Foi muito aplaudida na revista Colóquio, julgo que pelo António Cândido Franco, a ideia, que lancei em Filosofia e Kabbalah e noutros lugares, de ser a palavra Adamastor, quase só pela simples troca de suas letras, interpretável como Adão Astral. O achado não teria qualquer importância, se de achado se trata, se não pudesse dar lugar ao entendimento daquilo que talvez representasse, no espírito do poeta, o tenebroso gigante.

Desde já, há que pensá-lo como uma forma do mundo intermediário ou subtil ou, como se prefere dizer por via de um estrangeirismo, do "mundo imaginal". Vimos como Tethys, a rainha do Oceano que esposou Gama, e Thétis, "das águas a princesa" por quem se apaixonou o Titan, dificilmente se distinguem no nome.  Parecem ser dois aspectos da mesma entidade feminina. É o que nos leva a conjecturar que o Adamastor será, no segredo do Poeta, a forma astral do Gama, a projecção do seu ser violento no mundo imaginal, a figura do que nele era impulso e desejo incontrolado. Ora, como, por outro lado, Gama é o avatar poético de Camões, tanto faz dizer que a aparição do Titan é Gama como a forma astral de Adão ou Luís de Camões como a mesma forma astral.

Eu sei que esta ideia é muito difícil de admitir, por isso mesmo se deve insistir nela pois, como dizia Sócrates no Crátilo, "as coisas belas são difíceis".

A aparição do Adamastor acontece de noite. É a aparição de um fantasma, uma criação da fantasia que põe perante os olhos do avatar do Poeta a forma terrível do seu próprio ser. É uma fantasia criada a partir de uma "nuvem escura", a matéria subtil da alma tenebrosa, irmã da noite. É na treva que se dão as transformações que depois aparecem à luz do dia. De olhos vendados é que se viajam as viagens de descobrimento. Se, enquanto o corpo se desloca no espaço, a alma permanece ligada às formas de percepção habituais, se não procura ver porque se fez treva, ir de continente para continente ou de mar para mar é não sair do mesmo, é levar consigo todo o peso oco do seu não-ser.»

António Telmo («O Adamastor», in  «Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas»).




Vasco da Gama



Fortaleza de Jesus de Mombaça



















MOMBAÇA, TERRA DO MAL


Ao dobrar o cabo da Boa Esperança, dir-se-á que Vasco da Gama se tornou um homem novo, liberto da Hybris, do orgulho desmedido, da violência, do sangue. O que é que, na narrativa d'Os Lusíadas, nos permite dizer isto? Eu compreendo que a inflexão da rota para Oriente, para aquele Oriente que Camões insistentemente diz ser o fim da viagem, se deva interpretar simbolicamente como uma «viragem» na alma. Porém, onde é que está isso afirmado explicitamente por Camões?

No meu texto [«O Messianismo de Camões»] dos Teoremas de Filosofia digo que Deus é o Amor. Direi agora que o Amor, o puro Amor é o Espírito Santo.

Dobrado o Cabo, as forças negativas reagem. Sempre a um momento de exaltação do intelecto divino em nós se seguem terríveis obstáculos. Os iniciados sabem isto, mas com alguma atenção todos o podemos verificar no próprio curso das nossas vidas, se nesse «todos» o desejo do melhor tiver algum lugar.

Aqui, n'Os Lusíadas, esse momento da reacção das forças do mal teve como nome «Mombaça».

Baco, sabendo que viriam dois exploradores informar-se das terras e de qual a qualidade das suas gentes, mascarou-se de sacerdote católico e celebrou missa para assim agradar aos dois exploradores.

Significativo é, porém, o facto de, nessa missa, se ter fingido o culto ao Espírito Santo, donde devemos depreender que o poeta considerava tal culto aquele que exactamente identificaria a religião dos portugueses.

Os dois navegadores, vendo isto, de joelhos na terra, puseram «os sentidos naquele Deus que o Mundo governava».

Este é o verdadeiro Deus, o Espírito Santo e, por esse modo, o falso Deus adorava o verdadeiro:


Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha debuxada
Sobre a única Fénix, Virgem pura;
A companhia santa está pintada
Dos Doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.

Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo governava.
                                                          (...)

(Canto II, 11-12)


Como se pode ver, aquele Deus que o mundo governava, é o Espírito Santo. Mas não é o que mais nos importa aqui para entendimento de toda a articulação interior do grande poema épico. O que devemos ver na estrofe é que para Baco, o inimigo, o melhor meio de enganar os portugueses é pô-los a assistir à missa que era a sua verdadeira missa. Em vez do Crucificado, está o alto e santo Espírito, está a pomba pairando sobre a única Fénix, estão os doze, figurados no momento em que, meio atónitos, vêem cair as línguas de fogo e se vêem de súbito com o dom das línguas, isto é, não só de as falarem, como de saberem encontrar a verdade em todas as Tradições. (in Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, Zéfiro, 2015, pp. 124-125).






Baco


segunda-feira, 28 de março de 2016

Mito e símbolo em António Quadros

Escrito por António Telmo




Rio de Janeiro



«(...) Como talvez já saiba, fui ao Brasil em Novembro [de 1986], onde durante 3 semanas fiz um curso sobre Pensamento Português na Universidade Gama Filho, no Rio de Janeiro, de que lhe envio o programa por eles distribuído, quase completamente cumprido.

Foi um curso para um grupo de alunos de Mestrado e Doutoramento em Pensamento Luso-Brasileiro, cerca de 30, todos extremamente interessados, tão interessados que fundaram um Centro de Estudos de Pensamento Luso-Brasileiro, que eu próprio inaugurei com uma conferência.

(...) Ali fui encontrar gente a fazer teses sobre Bruno, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra, Antero, Pascoaes, Eudoro de Sousa... e sobre si, caro António.

Ainda tentei trazer uma cópia da tese, feita à base da História Secreta de Portugal, pois a rapariga que a fez, muito inteligente e interessada, esteve em todo o meu curso. No entanto, ela não a deu a tempo, prometendo mandá-la pelo correio, mais tarde. Como agora estão lá em férias, todos se dispersaram, mas você tê-lá em Fevereiro ou Março, o mais tardar...».

António Quadros para António Telmo (Carta XIII, de 18.1.87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«(...) O António Quadros é dos que restam, o único que não "repele" a minha Teima ocultista, que não a teme, que a inclui numa das direcções da sua vida espiritual.

(...) Não vejo ninguém, a não ser o António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro e de comigo o seguir neste ponto crucial. Ocultismo sem catolicismo, como talvez o entendesse F. Pessoa, não está dentro dos planos da "Ordem Templária", a que ele dizia pertencer. O prestígio que se fez à sua volta e o silêncio tumular que sempre se faz à volta de Álvaro Ribeiro explicam-se, talvez, assim. Afigura-se-me impossível separar dois relativos: a ortodoxia e a heterodoxia.

Todavia, as notícias que me dá de que "as coisas andam" no Brasil e em Portugal deixam-me muito contente.










(...) O meu livro História Secreta de Portugal, veja bem com teses à volta, não presta. Amo os outros dois [Gramática Secreta da Língua Portuguesa e Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões], os filhos desprezados da sorte. São duas mónadas de luz iluminando o meu espírito. Mas as pessoas preferem o ocultismo enterrado na pedra. O capítulo sobre Pascoaes onde pus alguma coisa da minha orientação quotidiana e iniciática de viver o mundo passa esquecido. Só influenciamos os outros pelo que não presta: a sombra da morte atrai muito mais do que a luz da vida. Escreveu Álvaro Ribeiro, numa carta ao Rafael, que só quem estivesse sacramentado deveria tentar decifrar os Painéis. Posso garantir-lhe que os Grandes Iniciados dos Jerónimos fizeram passar pela minha carne a sombra da morte. Mas isso é outra história...».

António Telmo para António Quadros (Carta XIV, de 22-1-87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«(...) Não procure mais a razão para o relativo apagamento da "Gramática Secreta..." e do "Desembarque...", perante a "História Secreta". Nesta, ainda você se coloca num plano de comunicação com uma cultura média do português universitário, atraído pelo oculto (e patriota). Mas naqueles livros, você sobe por aí acima, e quantos de nós o podemos acompanhar?

Sem degraus, é preciso subir à corda, à força de músculo (intelectual), penetrando em zonas que são estrangeiras à tal cultura média.

Dir-se-ia (e falo também por mim), que você se retira cada vez mais para o tal espaço ígneo e lhe parece uma concessão, um compromisso inaceitável descer um milímetro que seja, até ao nível de gente de mais pobres elementos.

Será a razão por que já não gosta da "História Secreta"? Porque os seus livros têm de ser para nós, como que provas iniciáticas cada vez mais exigentes, para nós e também para si próprio, já para além do estádio ou grau da "História Secreta". Mas pense no que é o nosso sistema de ensino e a nossa cultura dominante. Nós, que passámos pelo magistério do Álvaro Ribeiro e do Marinho, aprendemos alguma coisa, que é inacessível à maioria.

Não lhe estou a dizer para mudar. É preciso que alguém fale para os poucos. Estou apenas a dizer-lhe que entenda a grande fragilidade intelectual de quase toda a gente, além dos tabus e bloqueios de toda a ordem (incluindo, e estou de acordo consigo, os católico-eclesiástico-hierárquicos).


António Quadros e António Telmo



Note esta conversa que tive ao telefone com o António Marques Bessa (do grupo "Futuro Presente", "Século", J. Valle de Figueiredo, J. Nogueira Pinto). Elogiou-me por "Portugal, Razão e Mistério", falou de si com entusiasmo, a propósito da "História Secreta..." (não sabia sequer que você é irmão do Orlando), mas depois disse-me que não entendia nada do Álvaro Ribeiro, que não gostava dele, nem da filosofia portuguesa, a não ser as nossas formas históricas, literárias, etc. É assim mesmo...

(...) Também lhe queria dizer duas palavras sobre o problema catolicismo - ocultismo (...). A verdade é que não vejo contradição entre os dois termos: catolicismo e ocultismo. É claro que as heterodoxias marcam grandes divergências em relação às ortodoxias. Mas estas também, não são estáveis, têm um percurso sinuoso. Além de tudo o mais, se eu leio os ocultistas, não significa que vá concordar com tudo. Mas... a verdade é que há muito a aprender.

Sou, digamo-lo, um católico liberal. Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida do espírito superior à dos interesses quotidianos. (...) O que importa quanto a mim é uma linha geral para o alto, não importando muitos os acidentes de percurso. Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrenos. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias e heresias para outros, ou são-no.

A Sua revelação está nos profetas, nos evangelistas, nos místicos, na Igreja, e está também na filosofia, e no esoterismo dos que quiseram ou querem ir mais longe do que o quadro mental oferecido eclesiasticamente e escolasticamente. A Sua revelação está também na linguagem, na ciência, na natureza, dentro de cada um de nós.

Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de "Portugal...", onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas... sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincido pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo - pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não-oriental -, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.

Ainda dois pontos:

Não acredite em si próprio quando me diz que a "História Secreta..." não presta. Talvez haja graus, do simbolismo expresso em pedra até ao expresso em poesia e palavra, mas todos convergem, todos são uma mesma linguagem poliédrica, com diferentes faces. Sobretudo, e este é um problema que eu também enfrento no curso do meu livro, o que o documento escrito tantas vezes cala, esconde, ou o que foi destruído em obras queimadas ou censuradas, ou ainda, o que foi dito no Capítulo de uma Ordem ou na pequena tertúlia de uma câmara ou de um café mesmo, escapa, passa no simbolismo da pedra, que não houve coragem para destruir pela sua monumentalidade, ou de que se perdeu a cifra, mas resta, à vista. Caso dos Painéis, como verá no meu livro: foram escondidos intencionalmente durante séculos, ao aparecerem dizem-nos agora muito que não ficou escrito, nem na literatura...

Painéis de Nuno Gonçalves




Ver aqui





(...) P. S. Não creio que seja eu o último que não repele a sua "teima ocultista". Ainda há pouco falei de si com o Jorge Preto. E o Rafael? E o próprio Orlando? E a Dalila?...».

António Quadros para António Telmo (Carta XV, de 29.1.87, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«(...) Sobre a História Secreta. Quando a publiquei, o Álvaro Ribeiro escreveu-me uma carta, amável e elogiosa, mas nas entrelinhas decifrei a sua discordância quanto à orientação geral do livro. Tenho em meu poder também um esboço de História de Portugal que só a si mostrarei quando vier a Estremoz. Está traçado com a sua mão. Comparando-o com o meu livro, apanha-se a funda razão da discordância. Eu sei que isto pode perturbá-lo agora que o António está a preparar os volumes seguintes de "Portugal Razão e Mistério", mas sei também que acredita na sua estrela, e que nem o António nem eu somos o Álvaro Ribeiro. Comunico-lhe, no entanto, porque calculo que deve ter nisso grande interesse.

De resto, a correspondência que possuo do nosso Amigo, a quem o António e eu tudo devemos, revela aspectos não ainda saudados da sua filosofia, que é, na parte e no todo, a ter em conta uma correspondência, uma obra de Kabbalah. A propósito fiquei contentíssimo ao ler na sua carta o que já julgara saber, isto é, o seu repúdio do ocultismo oriental e a sua ligação com o ocultismo de sinal cristão. De resto, tudo quanto me diz sobre a sua posição religiosa que admite a evolução dos dogmas pela sua concepção de Deus como puro Espírito está, julgo eu, na linha exacta da Tradição portuguesa. "Para mim, Deus é o Espírito Santo", costumava dizer o Álvaro Ribeiro nos últimos dias. A sua perspectiva da Trindade Cristã é a d'"Arte de Filosofar". A cristianização do "orientalismo" é tratada, contra a filosofia alemã, no prefácio a um livro de Nietzsche e integrada na significação dos Descobrimentos».

António Telmo para António Quadros (Carta XVI, de 2 de Fevereiro de 1987, in António Quadros e António Telmo: Epistolário e Estudos complementares).


«Diz Pinharanda Gomes, a páginas 401 do seu livro [A Filosofia Hebraico-Portuguesa], que "a escola formal é a iniciação esotérica e que este é o princípio da maçonaria".

O conceito de escola formal é de Álvaro Ribeiro, que o expõe no livro a que deu, precisamente, este título. Mas funda-se ele no conceito aristotélico de forma como o que dá origem, não princípio, à existência das coisas, dos seres e do mundo e só se distingue da categoria primacial, a substância, porque esta não dá origem, mas é o que faz substância, é o que faz perdurar. O conceito da escola formal, tal como Álvaro Ribeiro o pensou, destina-se a assegurar que o ensino seja uma imitação da criação, ou do espírito, tal como a arte é uma imitação da natureza. Estamos sempre seguindo e actualizando o aristotelismo.


Ao acrescentar ao conceito de escola formal o de escola material, Álvaro Ribeiro concedeu ao nosso calão pedagógico que chama matérias aos assuntos tratados nas disciplinas escolares. A palavra matéria tem uma longa história de múltiplos sentidos mas que, todos eles, sobretudo o do materialismo característico da filosofia e da ciência modernas, acabam por cair perante o de Aristóteles. Comprovam os eruditos que foi Aristóteles quem primeiro deu conceito à palavra matéria (ou àquela que os latinos traduzem, com milagrosa correcção, por matéria). Ora, nesse conceito a matéria é, em si mesma, o nada. Não o nada no sentido que lhe deram os filósofos cristãos, como José Marinho, M. Heidegger ou Hegel, inspirados na imagem bíblica segundo a qual o mundo foi criado do nada, mas no sentido do nenhum, onde coisa alguma é, e do nenhures, onde coisa alguma existe.

Torna-se, portanto, surpreendente que Pinharanda Gomes transponha para a maçonaria o conceito de escola formal, e o conceito de escola, ou escolas materiais, dando o primeiro como o de iniciação esotérica e o segundo como o dos vários ritos maçónicos para, dentro deste quadro mental, desenvolver eruditamente as relações entre pensamento hebraico e a prática da maçonaria.

Não sei se o Pinharanda tem informações, que eu não possuo, de a maçonaria utilizar a designação de escola formal. Mas sei fundamentadamente que o aristotelismo é incompatível com a doutrina oculta de uma associação secreta. Acontece com Aristóteles o que ainda não acontecera com Platão: a filosofia, ou o saber autêntico, radicado no homem e no mundo, distinto do saber revelado, separa-se das religiões do oculto porque deixa de carecer do oculto para garantir a sua autenticidade, porque a autenticidade passa a ter a garantia no pensamento. É esta separação que dá origem à lógica.

O cristianismo herdou de Aristóteles a separação das religiões do oculto e é delas, sempre prontas a reaparecer onde e quando o pensamento se debilita e evanesce, que se alimentam os seus adversários. A maçonaria constitui um entre múltiplos exemplos históricos.

Pinharanda Gomes não estranhará que, a seguir à recensão de um livro tão rico e admirável como é o seu, eu me demore a discutir apenas uma questão. Trata-se, porém, de uma questão crucial nas circunstâncias culturais e políticas em que nos encontramos. E acresce o facto de eu ter sido o responsável por uma revista, publicada entre 1976 e 1978, e na qual colaborou, que teve o título, precisamente, de Escola Formal. Também aí não faltou quem visse o dedo da maçonaria a apontar o liberalismo, ou o neoliberalismo, que a revista preconizava e doutrinava.
A confusão da maçonaria com o liberalismo é uma imagem que nos ficou da monarquia constitucional e da 1.ª República, que ainda não se desfez. Reaparece com frequência na linguagem dos políticos, o que não tem qualquer significado intelectual, mas figura em todas as pastorais emanadas do episcopado português nos últimos seis ou sete anos, o que nos deixa perplexos. Entre nós, como nalguns outros países, o chamado regime liberal que resultou da Revolução Francesa foi, efectivamente, o regime dos mações. Acontece, porém, (e o actual neoliberalismo já o demonstrou à saciedade), que tal regime pouco ou nada teve a ver com o liberalismo, mas constituía a sua dissolução, com a consequente preparação do advento do socialismo. O rosto visível que, no nosso país, a maçonaria hoje oferece, impulsionando, apoiando e comandando o regime socialista constitucionalizado pela revolução de 25 de Abril, só serve de confirmação ao que estou esclarecendo. O neoliberalismo preconizado pela revista Escola Formal é o antípoda do socialismo.

Uma última observação: a escola formal é o que há de mais contrário, não só ao esoterismo maçónico como a todo o ocultismo. A filosofia tem, decerto, uma iniciação, mas não no sentido esotérico e ocultista que se tornou habitual atribuir a toda a iniciação. O ocultismo é um culto romântico, muito expandido nos nossos dias, e tanto mais sedutor quanto menos sábias são as inteligências e orgulhosas as subjectividades.

A filosofia é, por definição, o que se oferece, no seu todo, a todas as inteligências e só pode existir por residir totalmente na natureza de cada ser humano. "Um homem que não é um filósofo - disse o mestre da 'filosofia portuguesa' que é José Marinho - é tudo menos um homem". Que a maior parte dos homens não tenha a consciência disso, nem a reflexão nem o saber, que a maior parte dos homens o ignore e se satisfaça nos actos da vida prática e da vontade dominadora, ou sublime essa ignorância nas imagens e ritos do culto religioso, não pode significar que a filosofia dependa de um saber secreto e oculto. O que só se tornou acessível a alguns, raros, não significa que tal acessibilidade seja negada ou condicionada por alguma secreta iniciação ocultista. É possível que os homens, movidos pelo espírito do mal, que é a vontade de persistir na ignorância, e atormentando-se, torturando-se e mentindo uns aos outros, forcem os melhores de entre eles a uma existência segregada e, portanto, a uma acção segregada. É possível que a história de Portugal seja mais verdadeira no que tem de secreto do que no que tem de patente. É possível até que a verdade "não venha nem se vá"... Mas nada é oculto. 

Se tudo fosse oculto, como disse o poeta festejado, ou apenas o de que tudo depende, então não haveria, como também o poeta concluiu, nem procura nem crença, nem filosofia nem religião».

Orlando Vitorino («A Filosofia como Imagem da Pátria»).









Mito e símbolo em António Quadros


Estamos aqui reunidos celebrando o pensamento de António Quadros para o tornar presente na nossa lembrança e na nossa saudade. Nesta época de televisão em que todas as noites nos expomos sem vergonha ou defesa, ao bombardeamento da imagem, é bom, de vez em quando, não morrer de todo relendo um conto tradicional, não para regressar à infância, mas para nele vermos como a imagem pode ser um símbolo para os homens, quando a luz não é manipulada pelos computadores, mas se revela nas formas da verdade.

"Era uma vez uma princesa que, ao descer, logo vieram sete fadas. Cada uma delas dotou-a com uma virtude, mas a sétima marcou o seu destino de infortúnio".

Eis que entramos no reino dos mitos e dos símbolos.

Só as almas superiores concentram sobre si, ao nascerem para a vida, os sete poderes fatais, significados pelos planetas.

António Quadros era um espírito superior. No horóscopo que dele fez Vasco da Gama Rodrigues, o signo de Câncer na casa Segunda está povoado de estrelas juntas olhando o recém-nascido. A Lua no seu domicílio domina o céu.

António Quadros não gostou do horóscopo, viu com incómodo que ele o caracterizava como um espírito lunar. E não se libertou desse desgosto mesmo quando outros astrólogos lhe lembraram que a Lua é o espelho do Sol e lhe mostraram que a conjunção de tantos astros no mesmo lugar do horóscopo era o sinal de um destino superior.

Morreu exactamente na hora em que teve início a Primavera de 1993, ali onde a roda do tempo recebe o impulso que o liberta do nocturno Inverno. Refere René Guénon que os iniciados escolhem esse dia para morrer porque assim propiciam que a viagem no outro mundo se inaugure em condições altamente favoráveis. António Quadros não era um iniciado, mas Deus, queremos todos pensar, terá escolhido por ele. Assim seja!

Mais imperioso é o facto de Agostinho da Silva ter pedido para o levarem do hospital para casa onde queria passar o Domingo de Páscoa, dia em que de facto partiu.

A obra de António Quadros é uma obra de reflexão. Não é um filósofo operativo, um filósofo que não confunde a categoria de paixão com a categoria de acção. Reflectiu, com muitas vezes perfeita limpidez, as doutrinas solares dos seus mestres, cuja luz encheu daquela suavidade que a torna suportável e até aceitável pelas almas inferiores que a noite dominada pela televisão envolve. Por vezes há manchas nessa reflexão, como a do excessivo valor que atribuiu à doutrina do inconsciente de Carl Jung.

Esta doutrina aparece a explicar e a defender o mito do Encoberto contra a grosseria de António Sérgio. É sobre o livro de António Quadros Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista que diremos qualquer coisa nos poucos minutos que a cada um de nós são concedidos. Espero que essa coisa qualquer seja a coisa que se quer.









Neste livro, como em Portugal. Razão e Mistério, o mito aparece a interpretar a história, mas é sempre a história que decide no sentido do mito através da política. O mito do Encoberto é a forma que em Portugal assumiu o messianismo, mas, se no judaísmo a espera do Messias degenerou no marxismo e na utopia da sociedade sem classes, aqui, em Portugal, país onde manda Cristo, é a unidade católica, que harmoniza mas não destrói as diferenças dos indivíduos, das classes e dos povos, aquilo que aparece prometido no regresso do Rei e que, sem dúvida, estará confiado à Idade do Espírito Santo. Em consequência. António Quadros não se limitou a criticar e a refutar o optimismo progressista de Marx e seus sequazes, mas repudiou também o pessimismo dos esoteristas, apesar da simpatia que eles lhe mereciam, cuja doutrina resume deste modo: "O albedo do Quinto Império virá assim depois das fases alquímicas de putrefactio e nigredo; a luz do Espírito Santo, após a putrefacção e a morte virtual de todo um povo. A terra portuguesa, queimada, gasta, desperdiçada, a wasteland, povoada de hollow men, de homens vazios, é um Calvário, onde um povo-Messias, um povo-D. Sebastião, um povo-Cristo, é crucificado para ressuscitar em glória e salvar a humanidade. Este é, para Abellio, o mais subtil sentido do sebastianismo do Quinto Império".

Se eu tivesse vindo aqui com a intenção de expor a mitosofia de António Quadros (era assim que ele gostava de exprimir-se), já há muito que estaria empregado numa universidade. Toda a interpretação que não vai além de si própria é uma redução, porque é nisso que consiste a objectividade científica, conservando-se dentro dos seus limites. Prefiro ler Leonardo Coimbra e ouvir as suas palavras à saída da fonte, mesmo que o não compreenda, do que lê-lo simplificado numa apreensão mais ou menos correcta. Se o autor disse o que disse naquelas palavras, outras palavras desdizem necessariamente o que ele disse. Antes a fantasia subjectiva dos que atiram ao lado de Leonardo Coimbra e, ao irem procurar o que disseram, descobrem um mundo maravilhoso. Por muito respeito que nos mereçam os estudos de um filósofo que só são científicos quando deixamos a alma em casa, é bom, de vez em quando, que sigamos o movimento da nossa imaginação.

Todos sabemos que o espiritismo é uma aberração, mas comportarmo-nos perante os mortos, com quem convivemos e que amámos em vida, como se tivessem passado a inexistentes e fossem hoje um nada, além de estúpido é imoral. Por isso Álvaro Ribeiro, quando José Marinho partiu, falava dele, nos meses sucessivos em que permaneceu entre nós, como se não tivesse morrido e em tais termos e com tal verdade que alguns julgaram que pelo seu cérebro perpassasse a asa da alucinação.

Façamos o mesmo com António Quadros!



Orlando Vitorino e António Quadros  (1988).



Eu discuti com ele enquanto preparava esta evocação do seu pensamento. O que lhe disse foi mais ou menos o seguinte.

"O meu amigo, levado pelo seu inteligente e corajoso patriotismo, compromete excessivamente o mito do Encoberto com a história política de Portugal. O sebastianismo, como movimento social, é apenas um aspecto menor desse mito. Com o Bandarra o sebastianismo foi anterior a si próprio porque as Trovas foram publicadas antes de Alcácer-Quibir. Você dirá que as profecias do sapateiro de Trancoso nasceram de condições históricas socialmente análogas às que permitiram mais tarde, depois do descalabro da batalha, criar pelo inconsciente colectivo a ideia de um rei eternamente vivo. Se observarmos, porém, que ao mito do Encoberto corresponde uma sabedoria do Encoberto, de que a filosofia portuguesa foi até si a explicitação actual, terá de situar essa sabedoria muito antes do Bandarra com o nascimento da Ordem do Templo como Portugal. No reinado de D. Dinis, as condições sociais eram completamente diferentes. Havia um país pleno de força e de confiança em si próprio e, no entanto, todas as Cantigas de Amigo têm por tema a demanda do Encoberto.


Ai flores, ai flores do verde pino
se sabedes novas do meu amigo
Ai Deus y u é?


O Encoberto aparece aqui significado por três vogais: i u e. Y u é, que quer dizer, como sabe, e onde está? O verde pino deve ser interpretado, em sintonia com a ilha verde em que habita o rei, como a comunidade gnóstica e as flores como os seres iluminados supremos. A pinha, símbolo sempre presente na arquitectura manuelina, sendo o fruto dessas flores concentra em si ocultas as sementes na forma vegetal duma chama.

Quando o Padre António Vieira desocultou o Encoberto apresentando-o como D. João IV, quando interpretou o Fuão das Trovas do Bandarra, como João Duque de Bragança, o sebastianismo, no sentido que lhe dou de uma sabedoria esotérica, acabou e a Pátria entrou em decadência até esta miséria do nosso tempo em que o deus que cultuamos é o deus Mamon. A revelação do oculto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma".

António Quadros ouviu-me com aquele jeito tão seu de quem não se sabe se está a ouvir mas que é o modo de quem segue a sua estrela interior e disse-me brandamente: "Está bem. Mas tudo isso não invalida o que eu exponho no meu livro. Os Antónios Sérgios continuam aí" (in Sabatina de Estudos da Obra de António Quadros / Contributo bibliográfico, Lisboa, Fundação Lusíada, 1995, pp. 65-68).







sexta-feira, 14 de março de 2014

A Ilha do Amor no pensamento de Álvaro Ribeiro

Escrito por António Telmo






René Guénon



«(...) Apesar das afinidades que existem entre as tradições iniciáticas dos vários povos que as têm, o que permitiu a um estudioso como René Guénon afirmar que a mesma metafísica se exprime nelas por formas distintas, não me parecem acidentais algumas características dominantes na tradição hebraico-portuguesa que fazem dela um caso único que, por si só, altera a fisionomia de um pensamento que se pretende igual em todas as partes. Tratando de João de Deus, o modo de pensar o amor aparece-nos, logo, como decisivo do abismo que nos separa das várias correntes gnósticas dos três continentes interpolares.

O amor, não qualquer forma abstracta do amor, mas aquele que une o homem e a mulher, constitui, na gnose em geral, uma barreira impeditiva da ascese do ser pelos graus da realização espiritual. Daqui a prescrição de um de dois procedimentos, daquele que resiste ao impulso do instinto sexual, abrindo o caminho da castidade entendida como abstinência, e daquele que prepara igual caminho produzindo a saturação e o nojo pela entrega excessiva e desmesurada a todas as modalidades de erotismo. Como vedes, os dois procedimentos, conquanto antagónicos, visam o mesmo fim que é o da neutralização do amor. Podeis ver isto documentalmente exposto no livro magistral de Hans Jones sobre A Gnose.


Desde D. Dinis e demais trovadores galaico-portugueses com as Cantigas de Amigo, passando, no cume, por Luís de Camões com os poemas líricos e sobretudo com a Ilha dos Amores, até João de Deus, Eugénio de Castro e Florbela Espanca, a nossa poesia, com raras excepções, faz a exaltação da companhia física, celebrando em verso o "puro amor" cuja presença invisível se manifesta pela santidade das relações sexuais entre homem e mulher».


António Telmo («Influência da Cabala na Cultura Portuguesa»).


«(...) A espiritualidade franciscana ortodoxa não consegue evitar o surgimento de uma gnose franciscana, já laicista, como a dos Espirituais (esta tendência permaneceu no país e revive no pensamento contemporâneo de Pascoaes, de Junqueiro, de Jaime Cortesão), já escatológica, como a de Joaquim de Fiora e, na modernidade, em Raul Leal e Agostinho da Silva e, bem assim, no cristianismo paraclético e pentecostalista. A gnose renascentista (é então que a gnose ocidental verdadeiramente se assume como tal, a partir dos místicos como Paracelso) parece não achar fundo eco na condição portuguesa, em virtude do ambiente da reforma católica e da primazia do realismo da Segunda Escolástica, mas há motivações nos iluminados, nos grupos de piedade, nos rigores místicos de algumas comunidades monásticas e no ideário de pensadores, de que são exemplo o irenismo teológico de Damião de Góis e o reformismo dos seguidores das doutrinas de Erasmo. Porém, gnose como tal só ocorre no magistério reintegracionista teosófico de Martins Pascoal, criador de uma nova Maçonaria no ambiente do maçonismo francês, numa época em que a gnose maçónica se radicou no nosso país onde, segundo alguns (António Quadros, António Telmo...) a gnose templária veiculada pacificamente pela Ordem de Cristo, é superior à Maçonaria implantada no século XVIII em meios políticos e não religiosos. As tendências e as doutrinas gnósticas foram condenadas (1864) pela encíclica Quanta Cura e pelo anexo Syllabus, de Pio IX, que refere as componentes gnósticas: panteísmo, naturalismo, racionalismo, libertismo e ocultismo. As teses gnósticas prevalecem nos poetas panteístas e simbolistas como Pascoaes, que buscam "a face espiritual que o mundo tem" (Pascoaes, Regresso ao Paraíso), havendo assunções gnósticas no surrealismo (António Maria Lisboa e Mário Cesariny de Vasconcelos), se bem que a gnose sistematizada só se ache, ou no martinismo de Bruno, ou no teosofismo do visconde Figanière. Em todo o caso, Álvaro Ribeiro imprimiu à "filosofia portuguesa" um ideal gnóstico, ainda quando, por solução críptica, substituiu o termo gnose por "arte de filosofar"».

Pinharanda Gomes («Dicionário de Filosofia Portuguesa»).


«Num fim de tarde de Setembro de 1509, Afonso de Albuquerque observava a sala alta da torre de menagem de Cananor, onde se encontrava cativo. Algumas horas antes, Martim Coelho, por ordem do vice-rei, entregara-o ao comandante da fortaleza, que o prendeu na companhia de um pagem e de um criado, apenas. Aproximando-se da estreita janela que dominava o pátio da cidadela, ele distinguia, para além dos barracões da feitoria, a folhagem dos coqueiros desenhada no mar e coroando o telhado do hospital e da cruz da capela. Naqueles últimos dias de Setembro, o oceano branqueava ainda às últimas rajadas da monção. O barulho das ondas a rebentarem contra a falésia misturava-se ao grito das gralhas e à chilreada das crianças que regressavam à aldeia cristã.



Afonso de Albuquerque



Inclinando-se para a direita, Albuquerque conseguia avistar, através do fumo das fogueiras, um grupo de palhotas encostadas à muralha. Ali mesmo viviam algumas famílias, fruto dos amores entre portugueses e indianas de baixa casta. Todas as noites, elas caminhavam ao longo da base da muralha, para irem, em teoria, polir as jarras de cobre com a areia da beira-mar. Fora bem necessário transigir quanto às proibições e renunciar a impor aos homens uma castidade que, afinal, todos os dias era infringida. O medo do pecado mortal foi rapidamente vencido pelo charme das jovens malabares que vinham rondar à volta da fortaleza, na esperança de uma ligação com os soldados da guarnição militar. Habituadas a juntarem-se com os estrangeiros para tirar o proveito que pudessem, iam de seios nus, como todas as mulheres de condição inferior. O vice-rei não pudera fazer mais do que mandar baptizar à pressa as mais belas e dar-lhes autorização para viverem com os seus homens. Aquelas uniões nem sempre eram consagradas pelo casamento, mas davam origem a crianças cristãs, que usavam nome português, embora sem patronímico.

(...) Albuquerque não se cansava de repetir ao rei a firme decisão em acabar com os Mouros. Aquele ostracismo era partilhado por todos os companheiros, incluindo os comerciantes italianos. Piero Strozzi dizia a seu Pai que "andamos sempre com o credo na boca, tanto no mar como em terra. [...] De outro modo seria impossível resistir a tamanha multidão. A terra mais pequena daqui conta de trezentas a quatrocentas mil pessoas, que parecem formigas".

Só algumas mulheres receberam misericórdia: "Aqy se tomárão allguas mouras, mulheres alvas e de bom parecer, e alguns homens limpos e de bem quiseram casar com ellas e fiquar aquy nesta terraa... e eu os casei com elas e lhe dei o casamento ordenado de vosa alteza, e a cada hum seu cavalo e casas e terras e gado... averá hy quatrocentas e cymqoemta almas; estaas cativas e estas molheres que casão, tornam as suas casas e desenterram suas joyaas e suas arrecadas d'ouro e aljofar e Robis e colares e manylhas... e tudo lhe deixo a elas".


Albuquerque tratava as jovens esposas com todo o respeito, acompanhando-as ao seu lugar na igreja, tratando-as por filhas e indo visitá-las todos os dias, em êxtase, perante a gracilidade que tinham e dignidade na conduta. É inútil dizer que tais casados - casados assim ficariam para sempre designados os portugueses casados com mulheres indianas - foram os herdeiros dos bens imóveis dos Mouros. As tanadarias eram atribuídas aos mais honrados e instruídos; os outros beneficiavam de privilégios para exercer o trabalho que escolhessem. Albuquerque promovia um verdadeiro estado de graça; até aos degredados permitia que apagassem o passado e recomeçassem vida nova. E, ao mesmo tempo, convidava os Hindus a repovoarem a cidade, devolvendo-lhes casas e bens, cargos administrativos e militares, sem impor sequer conversão ao cristianismo. E, deste modo, lançava os fundamentos de uma sociedade nova, da qual eram excluídos os Muçulmanos. Entendia os casamentos mistos como resultado da vontade divina: "Me parece que noso senhor ordena isto e imcrina os coraçõees dos homeens por algua cousa de muyto seu serviço escomdida a nos..."».


Geneviève Bouchon («Afonso de Albuquerque. O Leão dos Mares da Ásia»).




A ILHA DO AMOR NO PENSAMENTO DE ÁLVARO RIBEIRO



«O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos».



António Telmo


É só. Logo, para Álvaro Ribeiro, na natureza, criação divina, não há mal. É, no entanto, difícil, ou pelo menos apressado, concluir que o mal, na concepção de Álvaro, não tem origem, como ensina a Cabala, no mistério insondável de Deus. «O diabo, escreveu ele também, não é o inimigo de Deus, mas sim da natureza». E duas vezes alude a um misterioso agente intermediário que tem por fim monstruoso separar o homem da mulher.

Como quer que seja, a inveja dos homens que fazem mal por pensamentos, palavras e actos nasce do sofrimento que neles causa a felicidade dos outros no amor ou na filosofia. As melhores amizades têm sido envenenadas pelo intermediário que instiga a inveja.

Na natureza não há mal. As naturezas adoecem por acção do homem. No mundo criado a imaginação move o amor. A imaginação do homem pode, em certas condições, contrariar a imaginação divina pela magia que, neste caso, é propriamente aquela que se designa por negra. A medicina integral, isto é a filosofia, conforme se diz num admirável escrito de João Rêgo (1), é a que imita a imaginação divina lutando contra a doença. Enquanto integral actua contra a magia negra ali onde, como no ensino e na política, ela procede contra o amor e contra a filosofia.

Álvaro Ribeiro parece ter-se recusado a escrever sobre o problema do mal nas suas relações com o mistério insondável. Como se viu, não deixou de explicá-lo pelo seu segredo, que é a magia negra.

Tendo sido, como foi em vida, um filósofo que pôs o centro do seu pensamento na exaltação do amor entre o homem e a mulher, concitou a hostilidade dos sinistros instrumentos do mal que o agrediram com pensamentos, palavras e actos. Usou, por isso, de prudência no dizer. A palavra Cabala só quatro vezes aparece nas quatro mil páginas que escreveu para o público. Vestiu por vezes a pele do lobo para não ser devorado pelos lobos, mas a fidelidade constante à excelsa e bondosa doutrina é visível em cada proposição que pensou e escreveu.




Pinharanda Gomes classifica-o entre os «gnósticos» no seu Dicionário de Filosofia Portuguesa. Há, com efeito, em Álvaro Ribeiro o desgosto do mundo humano e a ideia de que a salvação vem pelo conhecimento. Como, porém, o conhecimento é interpretado em analogia com «O Homem conheceu a Mulher» do Génesis, o seu pensamento opõe-se a todas as correntes gnósticas que põem como condição do aperfeiçoamento humano a abstenção de relações sexuais ou a tolerância delas como um mal necessário, segundo o ensino de São Paulo. Deste ponto de vista, Álvaro Ribeiro não é um «gnóstico», é um adversário da Gnose.

Aquilo a que podemos chamar a baixa gnose e que perpetua degeneradamente o ensino de São Paulo, na impossibilidade de reprimir o puro, natural, santo impulso do amor entre o homem e a mulher, procedeu à sua conspurcação pelo cinema, pela imprensa, pela rádio, pela televisão, pela pornografia, fingindo defendê-lo ao tornar patente e público o que só é verdadeiramente pelo segredo e pela relação individual. A colectivização do acto sexual constitui a última e aparentemente decisiva, julgam eles, consagração da magia negra pelo socialismo. Compreende-se assim que o nome de Álvaro Ribeiro seja silenciado e odiado à esquerda e à direita.

O amor entre o homem e a mulher é, em primeiro plano, uma relação sem mácula de duas naturezas. Pela palavra, a relação natural torna-se transparente do sobrenatural. A sua socialização movimenta as palavras e as imagens obscenas que atraem o que no sobrenatural constitui o mais baixo e reles demonismo. A palavra é pelo pensamento como o acto é pela palavra. Só o pensamento, criando as palavras da imaginação amorosa faz nascer o acto que eleva e redime. O pensamento é, porém, como o filósofo diz, uma actividade invisível do espírito cujo meio próprio é o segredo e o mistério.

Assim se evidencia a íntima relação da filosofia com o amor. Pelo pensamento poderemos viver o mistério que é o universo, o imenso universo de que o amor entre o homem e a mulher assistido por Deus é a renovação miniaturial, mas infinita. O perfeito amor é o que corresponde a uma perfeita filosofia e essa é a de Deus que devemos procurar imitar.

O pensamento de Álvaro Ribeiro evolui pelo sistema das categorias fixadas por Aristóteles. Quando eu era moço, o filósofo entusiasmou-se a procurar a correspondência entre as categorias aristotélicas e o sistema hebraico das dez sefiras. Infelizmente, só alguns anos depois de nos ter deixado, encontrei a demonstração publicada em Filosofia e Kabbalah de que os dois sistemas se reflectem um no outro. Essa demonstração que passou despercebida em Portugal, movimentou certos meios iniciáticos franceses de vasta influência que nela viram a prova provada de que se deve rever a imagem que da Grécia e da sua filosofia foi formada e propagada pela filosofia alemã. Álvaro Ribeiro conhecia essa correspondência que explica o seu aristotelismo hebraico.

Cabe, então, interpretar pela árvore das categorias aquilo que, no ensino clássico de Aristóteles, se diz ser «a imanência da ideias», em oposição ao platonismo que as teria concebido separadas. O movimento é contrário ao do êxtase.








A contemplação não tem por fim libertar a alma da prisão natural, mas de fazer descer as influências dos mundos superiores aos mundos inferiores, tornando-as activas pela razão. Tal o sentido da crítica que o filósofo escreveu contra o misticismo e o cepticismo da Teoria do Ser e da Verdade do seu companheiro de viagem José Marinho.

Nos termos da Cabala, a contemplação tem por fim chamar Tipheret, orando, a Malkuth, através de Yesod. O processo é descrito no livro de A Santidade das Relações entre o Homem e a Mulher de Gikatila para que se cumpra em cada lar o mistério da encarnação de inteligências superiores. Álvaro Ribeiro não pôde ter conhecido este livro, traduzido do hebraico para o francês alguns anos depois da sua morte. É pela activação da inteligência que a união das sefiras inferiores, no plano fecundante de Yesod, prolonga a união das sefiras superiores. Daqui a suprema «dignidade do cérebro» insistentemente celebrada no segundo volume das Memórias de Um Letrado. Demora-se neste volume o filósofo a estudar as relações de Keter com Binah, cifrando a sua reflexão nos termos pelos quais Henrique Bergson descreve as relações do cérebro, «orgão de escolha e de acção» com a memória infinita.

Há, pois, uma educação sexual, mas não aquela que se propõe banalizar e desdivinizar o amor, «pondo a ferros a imaginação», como dizia José Marinho. Só pelo aprendizato da filosofia portuguesa o rapaz português e a rapariga portuguesa poderão aspirar à perfeição mental, cada um no seu género, criando as condições e as qualidades indispensáveis à celebração do «mistério supremo» (ver São Paulo, Epístola aos Coríntios).

Não é pela exposição e descrição das entranhas carnais, que só podem suscitar repulsa, que se faz educação sexual. É pelo aperfeiçoamento e desenvolvimento da alma masculina e da alma feminina. A alma é que é a amante.

Tal educação faz-se sem que a alma dê por isso. Ela não pode ainda saber que o estudo da gramática, da retórica e da dialéctica, da dança, da matemática, da astronomia têm por fim o matrimónio e a acção do homem e da mulher no plano terrestre de Asiah. Descobri-lo-ão, maravilhados, mais tarde.

É um pouco o que acontece neste escrito em que o leitor pode, talvez, sentir perturbada a corrente da leitura pelos termos hebraicos que designam e significam as sefiras. Sem que a sua alma dê por isso, sentir-se-á, porventura, chamada, nem que seja pela presença de uma vaga irritação, a imaginar o que ainda não sabe o que é.

Álvaro Ribeiro escreveu um volumoso livro sobre «A Literatura de José Régio». Dizia ele que cada filósofo tem o seu poeta com quem dialoga. José Régio terá sido o poeta do filósofo Álvaro Ribeiro.

A verdade, porém, é que, se quisermos encontrar um poeta cuja teoria do amor seja a que o filósofo pensou e ensinou, teremos de reconhecer que, bem mais exactamente do que José Régio, foi Camões quem versejou a sublime doutrina.

Neste sentido, tem inteira razão Fiama Hasse Pais Brandão quando defende serem Os Lusíadas a obra de um cabalista.

O leitor evocará logo a Ilha do Amor.

Menos se recordará das estrofes sobre Afonso de Albuquerque. As virtudes que exalta no herói estão, segundo ele, maculadas por um grande crime, o de ter castigado cruelmente um dos nobres que o seguiam por este se ter deixado enlear por uma beleza negra em cujo Paraíso de volúpia se deixou envolver. «O mal é só o que os homens fazem aos outros por pensamentos, palavras e actos» (in O Mistério de Portugal na História e n'Os Lusíadas, Ésquilo, 2004, pp. 259-263).


(1) A Medicina em Álvaro Ribeiro, Edições Tomé Natanael.