sábado, 18 de julho de 2020

Mombaça, Terra do Mal

Escrito por António Telmo








«Ora uma fenomenologia do mal tem de ser desenvolvida a partir de um ponto de vista, se não metafísico, decerto com implicações teológicas. Precisa de considerar a origem misteriosa do mal e, portanto, um misterioso nexo que possibilite a interferência do mal no mundo do homem. "Causa vagabunda", como lhe chamou Platão (dizendo assim o mesmo que o povo designa ao falar do Diabo como essencialmente manhoso), o mal não confere à sua manifestação, à sua aparência, aquela continuidade e aquela persistência de formas que permitam ao pensamento doutriná-la e regulá-la. Por isso não pode o positivismo aceitar a realidade do mal visto que não pode apreender nela uma continuidade de formas de manifestação que fundamente a imutabilidade das leis científicas; considera-o como inexistente ou como resultado dos estados transitórios da humanidade que o positivo um dia virá, enfim, substituir. Inerente a esses estados, só para a teologia e para a metafísica o mal poderá constituir objecto de pensamento.»

Orlando Vitorino («A Fenomenologia do Mal»).


«A identificação de Luís de Camões com Vasco da Gama necessita de ser fundada. Não é, porém, difícil ver que Os Lusíadas, não deixando de ser os Lusitanos, descendentes de Luso, como Fiéis de Amor, têm em si o Luís, porquanto o poema é o cantar épico do Luís (de Camões), da sua navegação material e imaterial. Luís como luso são duas formas da palavra luz.

Por outro lado, n'Os Lusíadas, se declara que o homem Vasco da Gama, se o compararmos a César e a Alexandre, a Marco António e a Augusto tendo, como herói, a mesma bravura, era nulo no domínio do Espírito. Não tinha "na mão uma espada e na outra o livro", como de si diz Camões. Era rude, áspero e minguado de engenho.

Explicitamente, na estrofe 99 do Canto V, afirma ser ele, o Gama pouco amado das musas que inspiram Os Lusíadas, das Tágides e de Calíope. Daí podermos afirmar que o Vasco da Gama do Poema não é, senão por empréstimo, o homem Vasco da Gama.

Luís de Camões também fez materialmente a mesma viagem e, como o outro, sofreu as inclemências do mar. Como é possível, e mais do que possível, ver no "herói" um Cavaleiro do Amor, um Adepto, somos forçados a pensar que o nauta e a sua navegação, no que significa de iniciático, são a expressão da própria vivência do Poeta naquele domínio da alma em que a contemplação e a acção se reflectem uma na outra.

Posto isto, o caminho fica aberto para identificar Luís de Camões como também o Adamastor, como propusemos já. Luís de Camões é o Gama e é, nesse aspecto terrível, o Adamastor. Não se deve passar por alto aquilo que dele pensavam os seus contemporâneos, que era possuidor de uma natureza extraordinária, que tinham por terrível.»

António Telmo («Luís de Camões é verdadeiramente o Gama», in «Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas»).


Adamastor, escultura de Júlio Vaz Júnior no miradouro de Santa Catarina, Lisboa, Portugal.


«Claro que, cada povo, segundo a sua psicologia, segundo a sua maneira de ser, segundo o local do mundo em que vivia, segundo o que eram os ideais da sua vida, se comportou de uma ou de outra maneira. Nós podemos ver em todas as religiões, por exemplo, na religião judaica, na Bíblia, podemos ver em tradições orientais, podemos ver na Grécia, formas diferentes de entender o divino. Para a gente da Índia e para outra gente do Oriente, o divino devia ser sobretudo o repouso absoluto, o deitar-se numa confiança completa procurando cada homem atingir o ser, o nada, um vazio absoluto, para plenamente repousar num divino que eles viam como tendo por ideal ou sendo idealmente, também, um vazio absoluto. Mas, por exemplo, os gregos olharam o divino de uma maneira completamente diferente. Pela sua própria psicologia, pelas características da natureza da paisagem na Grécia, o que eles gostariam era de haver na Terra um bailado de vidas, tão belo, tão variado, tão pleno, como havia no politeísmo que eles imaginaram e, coisa curiosa, assim que esse politeísmo passou para uma nação que era, fundamentalmente, jurista e militar, a dos romanos, logo o politeísmo mudou. Não há mais o alegre bailado, e o variado bailado de deuses e de deusas; o que há é uma série de repartições públicas, de Estado organizado, de funções que cabem a este ou àquele deus, num retrato perfeito de que eram os romanos na Terra.

Para os portugueses, no entanto, havia essa saudade do Espírito Santo. Mas havia qualquer coisa ainda que opunha a Europa a Portugal nesse ponto teológico: é que os portugueses apreciavam o Espírito Santo além de tudo, porque era o aspecto divino do inesperado no mundo, do imprevisível, em que os portugueses tinham um grande interesse, provavelmente porque, dentro deles, a força maior que sentiam era essa paixão pelo inesperado, que lhes permitiria a eles mostrar toda a sua capacidade, todo o seu talento, de dar respostas improvisadas às perguntas em que ninguém tinha pensado.

Mas agora a Europa se lançava, e por intermédio dos navios portugueses, a Europa se lançava num empreendimento em que a paixão não devia ser pelo inesperado - pelo inesperado havia a curiosidade, naturalmente, o que se ia descobrindo, o que se ia vendo -, mas o que interessava era prever tudo aquilo que pudesse dar segurança ao marinheiro que já não pilotava uma caravela de descobrimento, mas ia pilotando naus, ia dirigindo naus com bons porões para levar mercadorias fabricadas no Ocidente que pudessem ser trocadas pelas matérias-primas ou pela mão-de-obra que era preciso trazer da África ou do Oriente. Então, começa uma pressão - até pelo envio de imagens que podíamos dizer de pensamento oficial -, começa a chegar a Portugal uma quantidade de imagens em que o divino é apresentado de uma forma inteiramente ortodoxa. Deus Pai sentado no trono, como convinha ao Rei e ao Criador do universo, segurando a cruz em que gente incompreendida tinha crucificado Seu Filho, o Cristo, e, sobre o grupo, a pomba do Espírito Santo, marcando a identidade da natureza do Pai com a natureza do Filho.»

«Agostinho da Silva - Ele Próprio».







«Foi muito aplaudida na revista Colóquio, julgo que pelo António Cândido Franco, a ideia, que lancei em Filosofia e Kabbalah e noutros lugares, de ser a palavra Adamastor, quase só pela simples troca de suas letras, interpretável como Adão Astral. O achado não teria qualquer importância, se de achado se trata, se não pudesse dar lugar ao entendimento daquilo que talvez representasse, no espírito do poeta, o tenebroso gigante.

Desde já, há que pensá-lo como uma forma do mundo intermediário ou subtil ou, como se prefere dizer por via de um estrangeirismo, do "mundo imaginal". Vimos como Tethys, a rainha do Oceano que esposou Gama, e Thétis, "das águas a princesa" por quem se apaixonou o Titan, dificilmente se distinguem no nome.  Parecem ser dois aspectos da mesma entidade feminina. É o que nos leva a conjecturar que o Adamastor será, no segredo do Poeta, a forma astral do Gama, a projecção do seu ser violento no mundo imaginal, a figura do que nele era impulso e desejo incontrolado. Ora, como, por outro lado, Gama é o avatar poético de Camões, tanto faz dizer que a aparição do Titan é Gama como a forma astral de Adão ou Luís de Camões como a mesma forma astral.

Eu sei que esta ideia é muito difícil de admitir, por isso mesmo se deve insistir nela pois, como dizia Sócrates no Crátilo, "as coisas belas são difíceis".

A aparição do Adamastor acontece de noite. É a aparição de um fantasma, uma criação da fantasia que põe perante os olhos do avatar do Poeta a forma terrível do seu próprio ser. É uma fantasia criada a partir de uma "nuvem escura", a matéria subtil da alma tenebrosa, irmã da noite. É na treva que se dão as transformações que depois aparecem à luz do dia. De olhos vendados é que se viajam as viagens de descobrimento. Se, enquanto o corpo se desloca no espaço, a alma permanece ligada às formas de percepção habituais, se não procura ver porque se fez treva, ir de continente para continente ou de mar para mar é não sair do mesmo, é levar consigo todo o peso oco do seu não-ser.»

António Telmo («O Adamastor», in  «Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas»).




Vasco da Gama



Fortaleza de Jesus de Mombaça



















MOMBAÇA, TERRA DO MAL


Ao dobrar o cabo da Boa Esperança, dir-se-á que Vasco da Gama se tornou um homem novo, liberto da Hybris, do orgulho desmedido, da violência, do sangue. O que é que, na narrativa d'Os Lusíadas, nos permite dizer isto? Eu compreendo que a inflexão da rota para Oriente, para aquele Oriente que Camões insistentemente diz ser o fim da viagem, se deva interpretar simbolicamente como uma «viragem» na alma. Porém, onde é que está isso afirmado explicitamente por Camões?

No meu texto [«O Messianismo de Camões»] dos Teoremas de Filosofia digo que Deus é o Amor. Direi agora que o Amor, o puro Amor é o Espírito Santo.

Dobrado o Cabo, as forças negativas reagem. Sempre a um momento de exaltação do intelecto divino em nós se seguem terríveis obstáculos. Os iniciados sabem isto, mas com alguma atenção todos o podemos verificar no próprio curso das nossas vidas, se nesse «todos» o desejo do melhor tiver algum lugar.

Aqui, n'Os Lusíadas, esse momento da reacção das forças do mal teve como nome «Mombaça».

Baco, sabendo que viriam dois exploradores informar-se das terras e de qual a qualidade das suas gentes, mascarou-se de sacerdote católico e celebrou missa para assim agradar aos dois exploradores.

Significativo é, porém, o facto de, nessa missa, se ter fingido o culto ao Espírito Santo, donde devemos depreender que o poeta considerava tal culto aquele que exactamente identificaria a religião dos portugueses.

Os dois navegadores, vendo isto, de joelhos na terra, puseram «os sentidos naquele Deus que o Mundo governava».

Este é o verdadeiro Deus, o Espírito Santo e, por esse modo, o falso Deus adorava o verdadeiro:


Ali tinha em retrato afigurada
Do alto e Santo Espírito a pintura,
A cândida Pombinha debuxada
Sobre a única Fénix, Virgem pura;
A companhia santa está pintada
Dos Doze, tão torvados na figura
Como os que, só das línguas que caíram
De fogo, várias línguas referiram.

Aqui os dous companheiros conduzidos
Onde com este engano Baco estava,
Põem em terra os giolhos, e os sentidos
Naquele Deus que o mundo governava.
                                                          (...)

(Canto II, 11-12)


Como se pode ver, aquele Deus que o mundo governava, é o Espírito Santo. Mas não é o que mais nos importa aqui para entendimento de toda a articulação interior do grande poema épico. O que devemos ver na estrofe é que para Baco, o inimigo, o melhor meio de enganar os portugueses é pô-los a assistir à missa que era a sua verdadeira missa. Em vez do Crucificado, está o alto e santo Espírito, está a pomba pairando sobre a única Fénix, estão os doze, figurados no momento em que, meio atónitos, vêem cair as línguas de fogo e se vêem de súbito com o dom das línguas, isto é, não só de as falarem, como de saberem encontrar a verdade em todas as Tradições. (in Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, Zéfiro, 2015, pp. 124-125).






Baco


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