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sábado, 31 de dezembro de 2022

Sobre os perigos e a destrutividade das escolas, ou da incrível insuficiência das universidades e dos colégios por muito conhecimento científico, informação tecnológica e capacidades que possam aparentemente dar

Explorações com Jiddu Krishnamurti

 






Ver aqui e aqui

«O professor universitário, em geral, não discute nem consente discussão com os alunos; em alguns casos declara permitir a manifestação de opiniões, mas consegue sempre, por qualquer jeito de deslealdade, impor silêncio ao ingénuo que em tal afirmação acreditou; raramente exerce amigável assistência pedagógica junto dos seus alunos. É que entre o lente e o estudante abre-se uma abismal distância que só o urso pode atravessar.»

Álvaro Ribeiro («Inquérito sobre a Universidade», in A Voz da Justiça, ano 31.º, n.º 3118, Figueira da Foz, 25 de Março de 1933, pp. 1-2).


«Alegria da memória, doce alegria crepuscular, que, enternecidamente, apagas os contornos demasiadamente vivos, e vais mergulhando o mundo numa readquirida unidade toda de íntimo e recolhido silêncio!

Misterioso espelho, onde contemplo paisagens desaparecidas; que, diante dum astro morto, levanta o espectáculo da vida e do movimento!

Se abris um escrínio, há muito fechado, é um rumor de perfumes evocando...

E o que não é a memória, se discorrem as lembranças!...

Um bando de pombas abate sobre a minha eira: são as recordações que chegam...

Cada uma vem dum ponto do céu, dos caminhos em flor, das margens dos regatos. E trazem no bico as flores dos caminhos e trazem nas plumas o orvalho dos regatos. Que brando sono, no meu coração, dormiam as crianças, que eu fui!

Que alarido, que aurora, que instantâneo abrir de pétalas no meu oculto jardim!

Brancos babeiros enfunados de brisa, faces rosadas latejantes de sol, olhos profundos deliquescidos de assombros! Primavera íntima abrindo as asas; maré alta trazendo em espuma, na crista da vaga, os sorrisos de todas as nossas alegrias.

Se hoje passo num caminho da minha infância, de todos os lados se erguem vultos amigos. Ao dobrar duma volta tocam-me o rosto as brancas asas dum bando levantado de meus passos, e um rancho de crianças bate palmas e ri...

E colégio?

Um casarão enorme que ainda assim vive na minha imaginação e que, no entanto, verifiquei outro dia ser uma bem pequena casa.

Aí, a incerteza dos nossos sentidos, como tudo é sonho! Era em Penafiel. Que melhor sítio para cadeia? Um alto, em roda verdes planícies, regatos cristalinos, plátanos, freixos, acácias, austrálias e, ao longe, em frente de mim, na sala do estudo, uma linha de horizonte de pinheiros em filas.

Nunca me pude convencer que não ouvisse a voz das camponesas da minha aldeia, que sempre julgava ser ali. E eram cinco léguas de separação!

O meu colégio era dos velhos moldes; a disciplina era brutal e assustadora, muitas palmatoadas reais, muitas em ameaça, e longas horas de silencioso estudo na sala da minha janela.

Oh, secretos mistérios da pedagogia!

Se consultam a minha proficiência pedagógica, dir-lhes-ei que a do meu colégio era péssima; reconheço todavia que ela me fez sonhador.

Sim, foi no colégio que aprendi a cismar.

Horas seguidas na sala de estudo a ouvir a imaginária voz da minha aldeia, subindo do horizonte por entre os pinheiros; a compor um mundo sem colégios, sem estudos, só de brincar, de gozar a alegria dos campos, os dias de Sol, as noites de luar, as romarias e as epopeias da minha força.

Eu era um conquistador. Impetuosa figura de Mouzinho de Albuquerque, foste o despertar do meu quixotismo heróico! E já então, dos nove aos catorze, uma feminina graça me sorria o prémio das imortais façanhas.





Conjunto de espadas e o bastão de guerra de Mouzinho de Albuquerque.




Mas, que frio, se a lembrança da família me povoava as noites, as intermináveis noites da sala de estudo! Como desejava a hora do dormitório para quebrar as cadeias, que me limitavam o sonho, e viver toda a noite em minha casa e com os meus!

Mas que horror o despertar!

Eu pertencia à classe dos pequenos que tinha um rei. Um dia conspirámos e o rei foi destronado.

Ele agora é monárquico, eu sou republicano; aqui o abraço em boa amizade e recordação.

E a vinda das férias?

Ouvi dizer que a Primavera está a chegar. Sim. A Primavera vem por um duplo movimento de aproximação. Ela vem de nós, da profundeza do nosso ser, como em lembrança vegetal, na aceleração, no esto da vida. Ela vem para nós na morna aragem cariciosa, na verde pujança dos troncos, na luz perfumada e tépida.

As férias vinham para nós como uma Aurora da própria Primavera, qualquer coisa como um nascimento de árvores e aves, de flores e luz, de todo o movimento, de toda a agilidade; todas as prisões abertas, todas as vozes soltas, asas batendo: como a aproximação dum louco bondoso que, pelo mundo, andasse a abrir cadeias, a soltar as águas, cascatas de alegria, cantando...

A véspera das férias!

Encontrei, há dias, um meu companheiro de colégio. É um banal capitalista.

Trocámos palavras inúteis, destas palavras sem alma que um pensador e um capitalista podem trocar. Mas, quando falámos no colégio, a alma subiu aos lábios e fomos sinceros e iguais.

Aos trinta anos, com fortuna e encarando a vida sob o aspecto do prazer, ele me disse, contudo, que nunca sentiu nem sentirá uma alegria como a da véspera de férias.

No dia imigrávamos aos grupos, e era tanta a Alegria que resistia ao envenenamento do tabaco.

Ao entrar na Aldeia, que orgulhoso galope, o da parelha que nos trouxera, que animal e humana alegria correndo no mesmo exaltado ritmo!

Ah, mas a volta!

Chegávamos à noite, e, ao atravessar a cidade, uma mesma impressão nos possuía.

Todas as luzes das lojas e das casas brilhavam com uma fria impotência, como que fendia uma treva empedernida, que logo as estrangulava com mãos de regelada sombra.

Se as casas não eram lares!

Meu Pai!

Como sinto viva e presente aquela noite que juntos dormimos num quarto de hotel da pequena cidade provinciana!

Era uma dessas noites de abandono em que me sentia perdido no frio e na escuridão. Meu Pai apareceu inesperadamente e saímos juntos.

Que intimidade, que conforto, que protecção amiga!

Alguém caminha, perdido, horas sem conta, na Noite tempestuosa e negra, sem um astro.

De repente aparece ao longe o foco dum lar hospitaleiro, onde se acolhe. Ao lume generoso vai aquecendo o corpo entorpecido e a sua alma entra a pacificar-se, protegida e grata.

Deitado no braço paterno eu senti a amizade perfeita, a tranquilidade plena, o enternecimento da felicidade.

Como a Solidão Infinita enchendo-se lenta e suavemente do coração de Jesus!...

A memória é a mais alta realidade, que nos é dado atingir.

Bem se diz que Deus sabe tudo.

Se o Universo se não possuísse numa unidade interior, de integral presença, era impossível a harmonia, a ordem e a proporção.»

Leonardo Coimbra («A Alegria, a Dor e a Graça»). 


«A falência do ensino liceal, sempre em crise, resulta do excessivo número de disciplinas que o constituem e, consequentemente, do excessivo número de professores que o praticam. A habilitação especializada por professores licenciados por escolas universitárias, e invocada em nome de habilitação profissional, longe de concorrer para o aperfeiçoamento do ensino médio, tem por resultado a divergência de linguagens opostas, contrárias e contraditórias que excitam o espírito de dispersão e divergência, adverso à finalidade de educar adolescentes. Este ensino por não ser formativo, nem formal, não oferece resultados mnemónicos, como se prova pelo esquecimento a que os alunos votam tudo quanto não seja de utilizar na aprendizagem das disciplinas do ano seguinte.

Aos professores do ensino liceal tem faltado o estudo teórico ou racional da psicologia dos adolescentes, a qual só lhes é dada ao fim de muitos anos de experiência docente, quer dizer, de modo empírico. Colocados em frente de uma turma, e só durante uma hora, porque no seguinte tempo lectivo irão presidir a outra, desconhecem a caracterologia, e consequentemente, a ética, de cada um dos seus alunos, pelo que não asseguram a eclosão das virtudes, dos valores e dos sentimentos que constituem a base da educação moral que, depois da puberdade, precede e prevalece sobre a educação intelectual.

É dada temporalmente à adolescência, marcada pelo ritmo evolutivo do coração, do cérebro e do sexo, a experiência social e um modo por vezes doloroso de se desprender da mentalidade infantil. O eu afirma-se, então de preferência pelo instinto agressivo, que convém dominar, pacificar ou sublimar, o que é deveras difícil perante os adultos que falam sempre em termos de conquista, luta, combate, batalha e guerra, em termos desportivos de perder, ganhar e vencer, com imagens terríveis que a análise detecta subjacentes nos verbos e nos adjectivos da linguagem quotidiana. Se ao educador de adolescentes compete propor-lhes imagens de trabalho, construção e edificação, para acordar e despertar a inteligência produtiva e pacífica, dificilmente haverá educação, instrução e ensino perante livros, revistas e jornais onde se lê a exaltação de actividades contrárias ao culto e à civilização.

Os adultos transmitem, aos adolescentes máximas, conselhos e exemplos de argumentação egoísta, tornando consciente e voluntário o que no infante era natural mas inconsciente. Compete ao professor evitar os erros fundamentais do individualismo absoluto, demonstrando a subordinação da personalidade à sociedade, como sinal de aperfeiçoamento da razão humana. O adolescente, consciente da sua inteligência que apura no exercício reflexivo e especulativo da filosofia, tende a individualizar-se, a autonomizar-se, independentizar-se tanto quanto lhe seja possível, para lenta e dolorosamente aprender que a unidade da vida reside em uma entidade transcendente, nominada ou inominada, que lhe cumpre servir por destino religioso.

Compreende-se, assim, que ao adolescente não seja agradável seguir por uma outra carreira de estudos que não interessam para a resolução dos seus problemas individuais, evolutivos no decurso do aperfeiçoamento da inteligência, nem para a satisfação imediata dos seus anseios, dos seus sentimentos e das suas vontades. A escola oferece-lhe a imagem de uma prisão, internato ou externato com trabalhos forçados. A educação é então adulterada por uma espécie de constrangimento, a que o estudante se conforma, com a hipocrisia sórdida de quem colabora em algo que está à margem dos fins superiores da humanidade.»

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», I).



COMO EDUCO OS MEUS FILHOS

Era outono e o sol entrava pelas janelas. Os ventos ainda não tinham começado e nestes dias agradáveis, quentes e soalheiros, as folhas adquiriam lentamente tons de vermelho, amarelo e, nalgumas delas, púrpura. Os céus encontravam-se extraordinariamente claros, de um azul-suave, e muito próximos da terra. As nuvens pousavam no horizonte e a terra mostrava-se feliz. As sombras eram compridas, pesadas, a erva naquela manhã estava coberta por um pesado orvalho. A beleza da terra e do céu parecia preencher o ar e havia uma sensação agradável advinda do verão que passara e da primavera que viria. E por estes dias ter-se-ia talvez de pagar a conta com um árduo inverno.

Não sei se alguma vez olhas para as árvores. Não com memórias, imaginação e conhecimento, mas apenas olhar de forma pacífica, quieta, sem reacções ou resistência do cérebro; só para observar, em que o observador chegou ao fim; ver a árvore, a verdura do relvado e as vacas no campo; apenas observá-los. Enquanto se observa, o espaço que provoca divisão parece desvanecer-se e há apenas observação e alegria de olhar.

O homem tinha olhos brilhantes e sorriso fácil. E perguntou: «Como devo educar os meus filhos? O que devo fazer com eles? Tenho cinco filhos. Três deles são muito inteligentes, lindos e cheios de sonhos. Os outros dois são muito emocionais, muito carinhosos, muito afectuosos; não parecem lutar, discutir; ainda têm aquela inocência que vem com a meninice, cheios de curiosidade. Os três são muito espertos, sempre a fazer perguntas, a lutar, a discutir entre eles, provocando-se uns aos outros. O que devo fazer com eles? Se enviar os três para uma escola, irão naturalmente aprender muitas coisas, vão passar nos exames, ser moldados por outras crianças, pelo professor, pelo conhecimento, pelo ambiente dessa escola em particular. E irão para a universidade e serão engolidos pela estrutura social. No que respeita aos outros dois, tenho medo de que se magoem, sofram, que se virem mais e mais para dentro, que recuem de vez e sejam tratados como excêntricos. Não sei quão longe irão nos estudos. Como poderei educá-los conhecendo os perigos, a destrutividade das escolas, a incrível insuficiência das universidades e dos colégios, por muito conhecimento científico, informação tecnológica e capacidades que possam dar-lhes? Não quero que sejam destruídos. Amo os meus filhos. Olho para eles todos os dias ao pequeno-almoço e volto para casa especialmente para os poder ver ao almoço e ao jantar. Passo muito tempo com eles, vendo-os, conversando e brincando, sinto-me próximo deles. Eles irão enfrentar este perigo da educação, o competitivo e impiedoso mundo da ambição, o sucesso e a brutalidade que encerram. Como posso ajudá-los a evitar tudo isto?»

Pode na realidade ajudá-los a evitar toda essa violência e insana brutalidade? Ou educá-los para se prepararem inteligentemente para tudo isso?

«Sim, mas como posso dar-lhes essa inteligência, ajudá-los a adquirir essa capacidade, da qual tanto fala, para se observarem a eles próprios e ao mundo; e não eles separados do mundo, sendo antes eles próprios o mundo? Como posso dar-lhes – não, não dar-lhes, ajudá-los – essa capacidade para ver?

Se os enviar para a escola, como inevitavelmente fará, serão influenciados por outras crianças que são condicionadas como as suas crianças o são. Vão influenciá-los deliberada ou inconscientemente. O professor vai influenciá-los e eles irão começar a perder a sensibilidade, a curiosidade, o espírito inquisitivo. Vão torná-los medíocres e o seu modo de vida irá cair no padrão que a sociedade estabeleceu.



«Temo que terei de os mandar para a escola; não posso ser eu a dar-lhe aulas particulares. Seria mau para eles; devem conhecer e brincar com outras crianças; e serão influenciados, moldados, quebrados. Não sei realmente o que fazer. Eu e a minha mulher conversámos bastante sobre isto e não parecemos capazes de encontrar uma solução. Há momentos em que me arrependo de ter tido filhos. Em casa, posso ajudá-los a compreender a influência da escola, das outras crianças, e também a ensiná-los a libertar-se da minha influência e da da minha mulher, para que sejam realmente livres, de forma inteligente? Eles são condicionados; têm as suas qualidades, inclinações, tendências, as suas personalidades e exigências particulares.»

Eles estão condicionados, e esse condicionamento é o resultado de muitos milhares de anos de influências. Quando fala de liberdade, esta só é possível quando há um fim desta influência. Seja consciente e livre deste condicionamento; só então podem a mente e o coração ser livres.

A educação não é apenas fornecer informação. É também, seguramente, para que eles compreendam os próprios preconceitos, inclinações e tendências, os seus condicionamentos: e dar-lhes oportunidades para testarem esses condicionamentos, para que vejam os perigos que encerram e sejam incondicionalmente livres. A total cultivação do homem é também parte da educação.

«Mas não há escolas dessas no mundo. Ninguém está interessado, no verdadeiro sentido, nas crianças; as pessoas não têm tempo, energia, paciência, ou talvez amor. Então, o que posso fazer? Onde fico eu no meio de tudo isto? O que devo fazer com os meus filhos? Em casa, posso ser razoável e discutir com eles, a fim de os ajudar a ver como as outras crianças os influenciam? Parece-me que é tudo o que posso fazer. Ou encontrar uma escola que não condicione completamente as crianças. Haverá escolas assim? É um grande problema, e tenho pensado muito nisso. Não sei para onde me virar.»

«Parece-me», continuou, «que deve haver escolas dessas um pouco por todo o mundo. Mas requerem muito dinheiro, espaço, um edifício, e por aí fora, e não somos pessoas ricas. Nesse sentido, estou de volta ao ponto de partida. Na verdade, não sei o que fazer, como educá-los. Compreendo como é importante alterar toda a estrutura da sociedade em que vivemos, e parece-me que devemos começar pelos mais novos, educá-los de uma forma completamente diferente, ajudá-los a transformar-se e, assim, talvez a sociedade. Tudo isto implica muito trabalho, exige muita energia. Gostava que houvesse escolas destas pelo mundo inteiro e não apenas num ou dois sítios.»

O sol começava a ficar mais brilhante e o céu mais azul. Os pássaros tinham voado para longe; à medida que o inverno se aproximava havia cada vez menos pássaros no relvado. Restavam o pavão, o coelho e os pombos. E, tal como manda o costume, vão ser caçados, mortos.

 A essência da inteligência é a sensibilidade.

(In J. Krishnamurti, Como Pode a Mente Estar Quieta?, Eigal – Indústria Gráfica S.A., 1.ª edição, Junho de 2021, pp. 35-38). Ver aqui e aqui



sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Porque dividimos o exterior e o interior?

Explorações com Jiddu Krishnamurti


 



«“É ver as coisas como são e não ficar ligado a nada. Lavar toda a sujidade que o nosso ser acumulou e revelar a realidade na sua essência, na sua nudez. Liberte-se do fardo das suas conclusões preconcebidas e “abra-se” a tudo e a todos os que o aguardam. Permita-se ser um observador calmo do que está a acontecer à sua volta. Limitar-se-á a ver, e, nesta visão, apresentar-se-á o todo, não o que é parcial.”

Este é um processo a que o meu pai chamava “consciência sem escolhas”. Adoptou o termo de Krishnamurti, um dos seus filósofos preferidos. A ideia é de que esteja consciente de tudo o que acontece à sua volta e dentro de si sem o avaliar, sem fazer uma escolha ou criar uma história, ao mesmo tempo que se mantém plenamente consciente. Que vê as coisas puramente pelo que são. Que experimente plenamente, para que possa ter uma experiência total, mais do que parcial (e, consequentemente, limitada).»

Shannon Lee («Sê Água, Meu Amigo»).

 

«Beyond liking and disliking. – You will see it without like or dislike, you simply see, and in this seeing, the whole is presented and not the partial.

(…) Totally in action. – Action is not a matter of right and wrong. It is only when action is partial, not total, that there is right and wrong.

To be whole. – An organism works as a whole. We are not a summation of part, but a very subtle coordination of all these different bits that go into the making of the organism – we Have not a liver or a heart. We ARE liver and heart and brain and so on.

On viewing totality – To view totality one has to be a total outsider

Bruce Lee («Striking Thoughts»).




Porque dividimos o exterior e o interior?

Eles tinham acabado de chegar à estação. Traziam Guirlandas. Vestiam roupas de algodão feitas em casa, conhecidas por khadi, e estas, com as sandálias que pareciam usar sempre, eram a sua marca distintiva. A paz residia no que diziam. Dedicavam-se à libertação da terra, tinham estado presos muitos anos, sofrido pela causa e, quando a potência estrangeira partiu, eram a nata da terra. A maior parte deles era brâmane, e Gandhi era o seu líder. Falavam constantemente sobre a ausência de violência, mas eram violentos. Acreditavam que não era necessário usar palavras, porém, todas as suas acções eram palavrosas, políticas, sociais. Tinham os gestos da humildade, mas mostravam-se arrogantes. Seguiam os bem-sucedidos, porque no íntimo não passavam de falhados. Tinham um pavor sagrado do sexo e alguns deles haviam feito votos de celibato; no entanto, andavam rodeados de raparigas. Procuravam a paz; contudo, eram seres humanos extraordinariamente torturados. Eram tradicionais, ainda que próximos dos modernos escritores ocidentais e das suas ideias; conheciam as escrituras e os filósofos modernos. Havia uma contradição entre o mundo científico e o mundo religioso. Eles identificavam-se com os pobres e eram próximos dos poderosos. Falavam das aldeias nas quais eram os líderes, arautos da iluminação e da esperança. De aparência simples nas vestes brancas, por dentro, eram seres humanos torturados, confusos, profundamente marcados, miseráveis.

Em 1948, eles eram os heróis desta luta e os guardiões que prometiam um futuro brilhante. Tinham grandes esperanças para a sua terra, e toda a gente acreditava que inaugurariam uma nova era dourada. Hoje, estão perdidos, inúteis, fracassados; esgotados. O seu fogo, entusiasmo e ânsia desapareceram. Sentem-se cansados, desiludidos, e levam uma vida sem sentido, isolados, ainda que falando, gesticulando e escrevendo. São muito espertos e podem discursar persuasivamente várias horas, mas estão perdidos, amargos, infelizes, solitários. São como quaisquer pessoas noutro lado qualquer que se tenham dedicado a um curso particular de acção que esperavam capaz de conduzir ao sucesso. Com ou sem sucesso, eles estão de mãos e coração vazios, cheios do conhecimento dos outros, e têm pouco deles mesmos. Este não é um cruel exagero. É um retrato triste para todos nós, porque todos nós pertencemos, de uma forma ou de outra, a este grupo de pessoas.

O que correu mal, o que aconteceu? Porque será que, sabendo tudo o que podem ensinar os livros, a experiência, as escrituras dos santos, nada aprenderam e estão absolutamente perdidos? Nós somos iguais. Isto não é uma crítica a um grupo em particular; através deste grupo, vemos todos os grupos, e por estas pessoas, vemo-nos a nós. A maior parte está perdida, infeliz, sozinha, amargurada.

Parece-me justo perguntar agora, vendo tudo isto, não apenas como prevenir a proliferação desta pavorosa doença, mas também o que fazer com ela no nosso coração. Este desejo de fazer algo exteriormente, de reformar, de organizar melhoramentos, é o primeiro sintoma desta doença fatal. O outro sintoma fatal é o oposto do primeiro: dizer que tudo reside em mim e que tenho de mudar primeiro. Esta divisão é a causa da doença. Nunca se pode separar o exterior do interior. A violência e a desordem no exterior são a violência e a desordem no interior: as duas são o mesmo indivisivelmente.



A paz deles era apenas um slogan, um instrumento político da violência no interior. Havia uma compulsão, uma disciplina rígida, uma conformidade com um padrão brutal do que consideravam moralidade. Havia sempre neles este cruel conflito a fim de uma conformidade com o que consideravam a mais destacada virtude, e essa era a sua intenção. Também forçavam os outros a conformar-se a esse padrão. Eram essencialmente tradicionalistas e, portanto, contraditórios.

Por que razão dividimos o exterior e o interior? Será porque não conseguimos controlar o exterior que esperamos controlar o interior? Fará parte da nossa fuga intelectual daquilo que realmente somos? Não vemos que somos o resultado do passado. Sem morrermos para o passado em nós, temos inevitavelmente de seguir o caminho da tradição que criou tanto o exterior como o interior. O exterior e o interior estão interligados e determinam-se um ao outro. Ambos são alterados quando o passado é negado. Negando o passado no nosso coração, negamo-lo também nas nossas acções que constituem o exterior.

Então o que temos, tu e eu, de fazer para evitar degenerar em seres humanos torturados e desesperados? Há alguma coisa de positivo que possamos fazer? Se fizeres algo positivo, vai estar na linha da tradição. Mas se negares a tradição, já terá ocorrido a mudança mais radical que poderás fazer.

A degeneração ocorre quando os hábitos passados, que são a tradição e as idiossincrasias particulares derivadas do passado, são perseguidos. Onde houver uma continuidade na conformação a um padrão conceptual de vida – quer seja um conceito tradicional, ortodoxo ou particular, projectado pelos teus desejos, inclinações e vontades, – há um declínio e uma vida sem significado. Esta visão é compreensão, e não um acto intelectual. Isto é energia que não está a agir contra ela própria. Tenham cuidado com tudo isto na acção, na vida e em todos os relacionamentos.

(In J. Krishnamurti, Como Pode a Mente Estar Quieta?, – Viver, Aprender e Meditar, Cultura Editora, 1.ª edição, Junho de 2021, pp. 27-29).



 

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Meditação

Escrito por Jiddu Krishnamurti 








A mente meditativa é silenciosa. Não é o silêncio que o pensamento pode imaginar; não é o silêncio de um calmo anoitecer; é o silêncio que vem quando o pensamento - com todas as suas imagens, palavras e percepções - cessa completamente. Esta mente meditativa é a mente verdadeiramente religiosa - religiosidade que não é tocada pelas igrejas, os templos ou os cânticos.

A mente religiosa é a explosão do amor - de um amor que não conhece a separação. Para ele, o longe é perto. Não é o amor de um só, ou de muitos; é, antes, um estado de amor no qual toda a divisão desaparece. Tal como a beleza ele também não cabe na medida das palavras. E só a partir deste silêncio a mente meditativa actua.

(...) A meditação é uma das maiores artes da vida - talvez a maior, e não é possível aprendê-la de ninguém. Nisso reside a sua beleza. Não está sujeita a nenhuma técnica, e portanto a nenhuma autoridade.

(...) É curioso como a meditação se torna uma constante presença: não há um fim nem um princípio para ela. É como uma gota de chuva: nela estão todos os regatos, os grandes rios, os mares e as quedas de água... A gota de chuva alimenta a terra e o homem; sem ela, a terra seria um deserto. Sem a meditação, também o coração se torna um deserto, um lugar abandonado.

(...) Silêncio e amplidão interior andam juntos. A imensidão do silêncio é a imensidade da mente em que não existe centro.

(...) Andar sempre à procura de «experiências transcendentes», mais variadas e intensas, é uma forma de fugir da realidade presente, daquilo que é, ou seja, de nós mesmos, da nossa própria mente condicionada. Uma mente desperta, inteligente, livre, que necessidade tem dessas experiências? A luz é luz; não anda à procura de mais luz.

(...) Se nos esforçamos por meditar, não estamos a meditar. Se nos esforçamos por sermos bons, a bondade não floresce. Se cultivamos a humildade, ela fica ausente.

(...) A meditação é a brisa que entra quando deixamos a janela aberta; mas se deliberadamente a mantemos aberta, com o propósito de atrair a brisa, ela não aparece.

(...) Temos de descobrir por nós mesmos - e não por intermédio de quem quer que seja - o que é a meditação. Tem-se aceitado a autoridade de instrutores, salvadores e mestres. Se realmente queremos saber o que é a meditação, temos de pôr completamente de lado toda a autoridade.

(...) Não sei se alguma vez reparastes que, quando estais totalmente atentos, há interiormente completo silêncio. E nessa atenção não existe nenhuma fronteira, nenhum centro, ou seja, nenhum «eu» que esteja atento. Essa atenção, esse silêncio, é um estado de meditação.

(...) Meditar é compreender o que é - ou seja, o facto - e ir para além dele.

(...) Meditar é estar inocente do tempo.

(...) Meditar é descobrir se há um campo que não esteja já contaminado pelo conhecido.



A meditação é o desabrochar da compreensão. A compreensão não está dentro das fronteiras do tempo; o tempo nunca traz compreensão. A compreensão não é um processo gradual em que se vá juntando pouco a pouco, cuidadosamente e pacientemente. A compreensão acontece agora ou nunca; é um relâmpago «destruidor», - e não uma coisa monótona; é desse estilhaçar que se tem medo e, assim, procura-se evitá-lo, consciente ou inconscientemente. A compreensão pode alterar o curso da nossa vida, o modo de pensarmos e agirmos; pode ser agradável ou não, e ser um «perigo» para os nossos relacionamentos. Sem compreensão, o sofrimento continua. O sofrimento só finda através do autoconhecimento, através da atenção a cada pensamento e emoção, a cada movimento daquilo que se revela a nível consciente e daquilo que está oculto. Meditação é a compreensão da consciência - a da superfície e a oculta - e é também a compreensão do movimento que está para além de todos os pensamentos e emoções.

(...) A meditação não é um meio para atingir um fim, não há nenhum fim, não há nenhum chegar; ela é um movimento no tempo e fora do tempo. Qualquer sistema, qualquer método, prende o pensamento ao tempo. A atenção, sem escolha, a cada movimento do pensamento e do sentir, a compreensão dos seus motivos, dos seus mecanismos, permitindo que o pensamento e o sentir «floresçam», é o nascer da meditação. Quando o pensamento e o sentir florescem e morrem, a meditação é um movimento além do tempo. Nesse movimento há êxtase; nesse vazio total há amor, e com amor há destruição e criação.

A meditação é aquela luz que, na mente, ilumina o caminho da acção; e sem essa luz não existe amor.

Meditação nunca é prece. A prece, a súplica nascem da autocomiseração. Suplica-se quando se está em dificuldades, quando há sofrimento; mas quando há felicidade, não há qualquer súplica. A autocomiseração, tão profundamente entranhada no ser humano, é a raiz da separação. O que está separado, ou o que a si mesmo se pensa separado, sempre em busca de uma identificação com algo que não esteja separado, apenas acarreta mais divisão e dor. A partir desta confusão, suplica-se aos céus, ou ao marido ou a alguma divindade criada pela mente. Esta súplica poderá encontrar uma resposta, mas a resposta é o eco da autocomiseração, na sua separação. A repetição de palavras, de orações, é auto-hipnótica, fecha a pessoa em si mesma e é destruidora. O isolamento provocado pelo pensamento dá-se sempre dentro do campo daquilo que é conhecido, e a resposta à prece é a resposta desse conhecido.

A meditação acontece longe de tudo isto. Nesse campo, o pensamento não pode entrar, não há lá nenhuma separação e, portanto, nenhuma identidade. A meditação acontece em abertura total; o secretismo não tem nela lugar. Tudo está à vista, tudo é bem claro; então, existe a beleza do amor.

(...) A crença é completamente desnecessária, tal como os ideais. Crenças e ideais dissipam energia que é necessária para perceber o revelar do facto, aquilo que é. Crenças e ideais são meios de se fugir ao facto e, nessa fuga, o sofrimento é infindável. O findar do sofrimento vem com a compreensão do facto, de momento a momento. Não há nenhum sistema ou método que dê essa compreensão; só uma atenção sem escolha ao facto a conseguirá. Meditar de acordo com um sistema é evitar o facto, que é aquilo que somos. Compreendermo-nos a nós mesmos, e compreender a constante mudança dos factos que nos dizem respeito, é de longe mais importante do que «meditar» tendo em vista «encontrar deus» ou ter visões, sensações, ou outras formas de entretenimento.






(...) Na meditação temos de descobrir se é possível um cessar dos conhecimentos, e libertarmo-nos, assim, do conhecido.

(...) Meditação não é concentração, já que esta é exclusão, resistência e, portanto, conflito. A mente meditativa pode concentrar-se, só que então não há exclusão, resistência. A mente que apenas se concentra não pode meditar.

Na compreensão do que é meditar, há amor; e o amor não é produto de sistemas, de hábitos, de se seguir um método. O amor não pode ser cultivado pelo pensamento. O amor pode surgir quando há completo silêncio, um silêncio no qual aquele que medita está inteiramente ausente. A mente só pode estar em silêncio quando se apercebe do seu próprio movimento como um processo de pensar e de sentir. Para se compreender este movimento de pensar e de sentir, na observação desse movimento não pode haver condenação alguma. Observar desta maneira é disciplina - não a do conformismo, mas uma disciplina fluida, livre.

(...) As palavras «tu» e «eu» separam: esta divisão não existia naquele estranho silêncio e naquela serenidade. E quando olhámos através da janela, espaço e tempo pareciam ter desaparecido; e o espaço que divide deixou de ter realidade. Aquelas folhas, aquele eucalipto e o azul brilhante da água não eram diferentes de nós.

(...) A meditação é um movimento no desconhecido e do desconhecido. Nós não existimos, só o movimento existe. Somos demasiado insignificantes ou sentimo-nos demasiado «importantes» para este movimento. Ele não tem nada atrás dele ou à sua frente. É aquela energia que o pensamento-matéria não é capaz de tocar. Este movimento é pervertido pelo pensamento, porque o pensamento é o conhecido, é produto do ontem; e está prisioneiro de penosos e duros esforços de séculos e, assim, é confuso e tem falta de lucidez. Faça-se o que se fizer, o conhecido não pode atingir o desconhecido. Meditar é morrer para o conhecido.

(...) A meditação não tem princípio nem fim; nela não há nem sucesso nem fracasso, nenhuma acumulação e nenhuma renúncia; é um movimento sem finalidade, e para além do tempo e do espaço. Experienciá-la é negá-la, pois aquele que a experiencia está preso ao tempo e ao espaço, à memória e ao re-conhecer. A base para a verdadeira meditação é aquela atenção passiva, disponível, que é libertarmo-nos da autoridade e da ambição, da inveja e do medo. A meditação não tem qualquer sentido sem esta liberdade, sem autoconhecimento; enquanto psicologicamente houver escolha não há autoconhecimento. Essa escolha implica conflito, e este torna impossível a compreensão de o que é. Entregar-se a qualquer fantasia, a quaisquer crenças românticas, não é meditação; o cérebro deve despir-se de todo o mito, de toda a ilusão e busca de segurança e enfrentar a realidade da falsidade de todos eles.

Não existe qualquer separação; tudo se encontra no movimento do meditar. A flor é a forma, o aroma, a cor e a beleza que é o seu todo. Se a despedaçarmos, de facto ou por palavras, então deixa de existir a flor, fica apenas uma lembrança do que era, o que nunca é a flor. A meditação é a flor inteira na sua beleza, a murchar e a viver.

Meditar é libertarmo-nos do pensamento; é um movimento no êxtase da verdade.

(...) Meditar é transcender o tempo. O tempo (psicológico) é a distância que o pensamento percorre na sua busca de sucesso pessoal. A viagem é assim sempre ao longo do velho caminho, revestido de uma nova aparência, novas paisagens, mas sempre a mesma estrada, que não conduz a lado nenhum - excepto à dor e à infelicidade.

Só quando a mente transcende o tempo é que a verdade deixa de ser uma abstracção. Então, a felicidade profunda não é uma ideia derivada do prazer mas uma realidade não verbal.

Esvaziar a mente do tempo é o silêncio da verdade, e assim ver é agir; portanto não existe nenhuma divisão entre o ver e o agir. É no intervalo entre ver e agir que nascem o conflito, a infelicidade e a confusão. Aquilo que está fora do tempo é eterno.

A meditação é um estado da mente que olha tudo com completa atenção, não fragmentariamente, mas de maneira total.










Meditar é destruir a «segurança», e há grande beleza na meditação, não a beleza das coisas produzidas pelo homem ou pela natureza; é a beleza do silêncio. Este silêncio é o vazio no qual, e a partir do qual, todas as coisas fluem e têm a sua existência. Não pode ser conhecido; o intelecto e a emotividade não podem chegar até ele; não há caminho para o silêncio e um método para tentar alcançá-lo é invenção de um cérebro ambicioso. Todos os caminhos e meios de que se serve o «eu» calculista têm de ser completamente destruídos; todo o movimento para a frente ou para trás, o modo como funciona o tempo, tem de cessar, sem nenhum amanhã. Meditação é «destruição»; é um perigo para aqueles que desejam levar uma vida superficial e uma vida de fantasia e de mito.

A morte a que a meditação dá origem é a imortalidade do novo.

Meditar é algo realmente maravilhoso, quando acontece. Posso falar sobre a meditação, mas a descrição não é o que é descrito. Cabe a cada um de nós aprender tudo isto, olhando para nós próprios - nenhum livro, nenhum professor pode ensinar-nos. Assim, não dependamos de ninguém, não nos juntemos a organizações «espirituais»; temos de aprender tudo isto a partir de nós mesmos. E então a mente descobrirá coisas inacreditáveis. Mas para tal, não pode haver fragmentação e por isso tem de haver imensa estabilidade, percepção rápida e flexibilidade. Para uma mente assim não há tempo e o viver tem, portanto, um sentido completamente diferente (in J. Krishnamurti, Meditações, Editorial Presença, 1999).


segunda-feira, 26 de abril de 2010

Dualidade

Jiddu Krishnamurti em diálogo com os budistas 









Conversa com os mestres budistas Walpola Rahula e Irmgard Schloegl, com o Professor David Bohm e outros


WR: Quer dizer que estamos a falar em termos de dualidade.

K: Toda a linguagem é dualista.

WR: Você não pode falar, eu não posso falar sem ser em termos dualistas.

K: Sim, para comparar. Mas eu não estou a falar disso.

WR: Neste momento está a falar do absoluto, do supremo... Quando falamos de bom e mau estamos a falar dualisticamente.

K: Não, por isso é que quero sair deste assunto.

WR: Não se pode falar do absoluto, em termos de bom ou mau. Não há nada chamado bom absoluto ou mau absoluto.

K: Não. A coragem é o contrário do medo? Quer dizer, se não existir o medo, existe a coragem? Ou é uma coisa completamente diferente?

WR: É uma coisa completamente diferente.

K: Por isso, não é o contrário. A bondade nunca é o contrário da maldade. Então, de que estamos a falar quando dizemos: «Vou modificar-me, mudar do meu condicionamento, que é mau, para a libertação desse condicionamento, o que é bom?» Portanto, a libertação é o oposto do meu condicionamento. Por isso, não é liberdade de todo. Essa liberdade tem origem no meu condicionamento, porque estou enredado nesta prisão e quero libertar-me. Trata-se de uma reacção à prisão, não se trata de liberdade.

WR: Não percebo bem.

K: Vamos considerar por uns minutos o seguinte: o amor será o oposto do ódio?

WR: A única coisa que se pode dizer é que onde há amor não há ódio.

K: Não, a minha pergunta é diferente. Eu pergunto: o ódio é o oposto do afecto, do amor? Se é, então, nesse amor, há ódio porque tem origem no ódio, no seu oposto. Todos os opostos têm origem no seu oposto. Não?

WR: Não sei, isso é o que o senhor diz.

K: Mas é um facto. Olhe, se eu tenho medo, cultivo a coragem. Está a ver, para afastar o medo, tomo uma bebida ou qualquer coisa semelhante e tudo o mais para me ver livre do medo. E, no fim, digo que sou muito corajoso. Todos os heróis de guerra recebem medalhas por isso. Porque têm medo, dizem: «Temos de ir em frente, matar», ou fazem qualquer outra coisa e tornam-se muito corajosos, heróis.

WR: Isso não é coragem.

K: Eu digo que qualquer coisa com origem no seu oposto contém o seu próprio oposto.

WR: Como?







K: Se alguém odeia e, no fim, diz: «Tenho de amar», esse amor nasce do ódio. Porque sabe o que é o ódio e diz: «Não posso ser isto, tenho de ser aquilo». Portanto, aquilo é o oposto de isto. Assim sendo, o oposto contém isto.

WR: Não sei se é o oposto.

K: É assim que nós vivemos. É assim que nós agimos. Sou sexual, não devo ser sexual. Faço voto de celibato - não «eu» - as pessoas fazem voto de celibato, que é o oposto. É assim que estão sempre presas neste corredor de opostos. E eu questiono todo este corredor. Acho que ele não existe; nós inventámo-lo mas, de facto, ele não existe. Quero dizer, por favor, isto é apenas uma explicação, não aceitem qualquer coisa como certa.

IS: Pessoalmente, como hipótese de trabalho, considero este canal de opostos como um factor de humanização e nós estamos enredados nele.

K: Oh não, não é um factor de humanização. É como dizer: «Eu fui uma entidade tribal, agora tornei-me uma nação e, mais tarde, acabarei por me tornar internacional.» Continua a ser tribalismo em acção!

DB: Acho que vocês os dois estão a dizer que nós, de alguma forma, progredimos, na medida em que não somos tão bárbaros como éramos antes.

IS: Isso é o que eu quero dizer com factor de humanização.

K: Questiono que seja de humanização.

WR: Não gosto de entrar em extremos.

K: Isto não são extremos, são apenas factos. Os factos não são extremos.

DB: Está a dizer que isto não é progresso genuíno? No passado as pessoas eram em geral muito mais bárbaras do que são agora. O senhor diria que esse facto realmente não significa muita coisa?

K: Nós ainda somos bárbaros.

DB: Sim, somos, mas algumas pessoas dizem que não somos tão bárbaros como éramos.

K: Não tão bárbaros.

DB: Vamos ver se nos entendemos. Então, diria que isso não é importante, que isso não é significativo?

K: Não, quando digo que sou melhor do que era, isso não tem significado.

DB: Acho que temos de esclarecer isso.

WR: Em sentido relativo, dualista, não aceito isso, não o vejo assim. Mas, em sentido absoluto, último, não há nada disso.

K: Não, último, não - nem mesmo posso aceitar essa palavra «último». Vejo como o oposto surge no dia-a-dia, não no «sentido supremo». Sou ganancioso, isso é um facto. Tento tornar-me não-ganancioso, o que é um não-facto, mas, se permanecer com o facto de que sou ganancioso, posso, efectivamente, fazer alguma coisa a esse respeito. Assim, não há oposto. Por exemplo, a violência e a não-violência. A não-violência é o oposto de violência, um ideal. Por isso, a não-violência é um não-facto. O único facto é a violência. Desta forma, posso lidar com factos, não com não-factos.









WR: Então qual é a sua posição?

K: A minha posição é que não há dualidade mesmo na vida diária. Trata-se de uma invenção de todos os filósofos, dos intelectuais, visionários, idealistas, que dizem que existe o oposto, que trabalham para provar ou alcançar isso. O facto é que eu sou violento, é tudo, lidemos com isso. E, para lidar com isso, não inventemos a não-violência.

IS: A questão agora é: como hei-de eu lidar com isso já que aceitei o facto de que sou violento?

K: Aceitar, não, é um facto.

IS: Tendo compreendido isso.

K: Podemos então continuar, eu mostro-lhe. Mas, primeiro, tenho de ver o que estou a fazer agora. Estou a evitar o facto e a fugir para o não-facto. Isso é o que se passa no mundo. Por isso não fujam, permaneçam com o facto. São capazes disso?

IS: Bem, a questão é: somos capazes, mas, muitas vezes, não gostamos de o fazer.

K: Claro que somos capazes. É como ver alguma coisa perigosa e dizer: «É perigoso, não me vou aproximar.» É perigoso fugir do facto. Pronto, acabou-se, não fujamos. Isso não quer dizer que vamos treinar, que vamos praticar não fugir. Não fugimos, é tudo. Creio que os gurus, os filósofos, inventaram o fugir. Desculpem.

WR: Não se trata de fugir, é completamente diferente, é errado pôr a questão nesses termos.

K: Não, não é.

WR: Não podemos fugir.

K: Não, estou a dizer não fuja, veja, não fuja, veja. Mas, em vez disso, dizemos: «Não consigo ver porque estou enredado nisso.»

WR: Percebo, compreendo muito bem o que está a dizer.

K: Então, não há dualidade.

WR: Onde?

K: Agora, na vida quotidiana, não em sentido absoluto.

WR: O que é a dualidade?

K: A dualidade são os opostos. Violência e não-violência. Sabe, toda a Índia tem vindo a praticar a não-violência e isso não faz sentido. Apenas há violência, é com isso que temos de lidar. Os seres humanos têm é de lidar com a violência, não com o ideal da não-violência.

WR: Concordo plenamente que quando vemos o facto é com ele que temos de lidar.

K: Sendo assim, não há progresso.

WR: Isso é apenas uma palavra que se pode usar de qualquer forma.

K: Não, não é de qualquer forma. Quando tenho um ideal, para atingir esse ideal, preciso de tempo. Certo? Por isso, vou evoluir nesse sentido. Portanto, nada de ideais - só factos.

WR: É isso mesmo. Qual é a diferença? Qual é a discussão entre nós? Ambos concordamos que só existem factos.



O Taj Mahal em Agra (Índia).



K: O que significa que, para ver os factos, não é preciso tempo.

WR: Certamente que não.

K: Portanto, se não é preciso tempo, posso vê-los agora.

WR: Sim, de acordo.

K: Pode vê-los agora. Por que razão não os vê?

WR: Porquê? Essa é outra questão.

K: Não, não é outra questão.

DB: Se levarmos realmente a sério que o tempo não é necessário, podemos talvez esclarecer todo o assunto agora mesmo.

WR: Sim, o que não significa que todos os seres humanos sejam capazes, algumas pessoas são capazes.

K: Não, se eu sou capaz de ver o facto, você também é.

WR: Acho que não, não concordo consigo.

K: Não se trata de uma questão de concordar ou discordar. Contudo, quando temos ideais diferentes dos factos, é preciso tempo para lá chegar, é preciso progresso. Preciso de conhecimento para progredir. Isso tudo está implicado, certo? Então, é capaz de abandonar os ideais?

WR: É possível.

K: Ah, não! A partir do momento em que usa a palavra «possível», o tempo está implicado!

WR: O que quero dizer é que é possível ver os factos.

K: Faça isso agora - desculpe, não pretendo ser autoritário - quando diz «é possível», já se afastou do facto.

WR: Quero dizer, tenho de dizer, que nem toda a gente é capaz.

K: Como sabe?

WR: É um facto.

K: Não, isso não aceito.

IS: Talvez possa dar um exemplo concreto. Se eu estiver numa prancha, bem alto, sobre uma piscina, e não souber nadar e me disserem: «Limita-te a saltar, relaxa completamente e deixa que a água te leve», isso é completamente verdade, eu sou capaz de o fazer. Não há nada que mo impeça, excepto o medo de o fazer. Acho que é esta a questão. Claro que somos capazes, não há qualquer dificuldade, mas há este medo primário que não nos deixa raciocinar, que nos faz esquivar.

K: Por favor, desculpe, não estou a falar disso, não é isso que estamos a dizer. Mas, se percebermos que somos gananciosos, por que razão havemos de inventar a não-ganância.?

IS: Não sei, porque me parece tão óbvio que se eu sou ganancioso, então, sou ganancioso.





K: Então, por que razão temos o oposto? Porquê? Todas as religiões dizem que não devemos ser gananciosos, todos os filósofos dignos desse nome dizem: «Não sejam gananciosos» ou outra coisa qualquer. Ou dizem: «Se forem gananciosos não vão para o céu.» Por isso, através da tradição, por meio dos santos, e tudo o mais, cultivou-se sempre esta ideia de oposto. Ora, eu não aceito isso. Eu digo que isso é uma fuga a isto.

IS: E é. É, quando muito, um ponto intermédio.

K: É uma fuga a isto, certo? E não resolve o problema. Por isso, para lidar com o problema, para o eliminar, não posso ter um pé lá e outro cá. Tenho de ter os dois pés aqui.

IS: E se os meus dois pés estiverem aqui?

K: Espere, isto é apenas uma comparação, nada mais. De facto, não há oposto que implique tempo, progresso, prática, tentativa, vir a tornar-se, toda a gama disso.

IS: Então eu vejo que sou ganancioso ou violento.

K: Agora temos de aprofundar uma coisa completamente diferente. Poderá o ser humano libertar-se da ganância agora? Essa é a questão. Não futuramente. Repare, não me interessa não ser ganancioso na próxima vida ou depois de amanhã, o que é que isso interessa? Quero libertar-me da dor, do sofrimento, agora. Então, não tenho quaisquer ideais. Certo? Tenho apenas este facto: sou ganancioso. O que é a ganância? A própria palavra é condenatória. Há séculos que a palavra «ganância» permanece na minha mente e a palavra condena imediatamente o facto. Ao dizer: «Sou ganancioso», já condenei o facto de o ser. Mas serei capaz de olhar para o facto sem a palavra e todas as suas implicações, o seu conteúdo, e a sua tradição? Observe. Não podemos compreender a profundidade do sentimento de ganância ou libertarmo-nos dele se estivermos enredados em palavras. Então, como a ganância diz respeito a todo o meu ser, digo: «Está bem, não vou ficar preso nela, não vou usar a palavra "ganância".» Certo? Mas esse sentimento de ganância ficará, então, livre da palavra, separado da palavra «ganância»?

IS: Então, não fica. Continue, por favor.

K: Só assim vejo o facto, só assim vejo o facto.

WR: Sim, sem a palavra.

K: Por isso, a palavra não tem valor, acabou. Aí é que está a dificuldade. Quero libertar-me da ganância, porque tudo no meu sangue, na minha tradição, na minha educação, na minha cultura me diz para me libertar dessa coisa feia. Por isso, estou constantemente a esforçar-me por me libertar dela. Certo? Não fui educado nesses moldes, graças a Deus. Por isso, eu digo: «Está bem, tenho apenas o facto, o facto de que sou ganancioso. Quero compreender a natureza e estrutura dessa palavra, desse sentimento. O que é? Qual é a natureza desse sentimento? É uma lembrança? Se é uma lembrança, estou a observar a presente ganância com as lembranças do passado. As lembranças do passado dizem-me para a condenar. Serei capaz de a observar sem as antigas lembranças?

Vou aprofundar isto um pouco mais porque a lembrança do passado condena a ganância e, assim, fortalece-a. Se ela é uma coisa nova, não a condeno. Mas, como não é, porque é nova mas tornada antiga pelas lembranças, memórias e experiência, condeno-a. Ora, serei capaz de observar sem a palavra, sem a associação de palavras? Isto não precisa de disciplina ou treino, não precisa de um guia - apenas isto - sou capaz de a observar sem a palavra? Sou capaz de olhar para aquela árvore, para uma mulher ou um homem, para o céu, o firmamento ou um pássaro, sem a palavra e descobrir o que são? Mas se alguém surge a dizer: «Eu mostro-lhe como se faz», então estou perdido. E, o «como fazer» é tudo do que tratam os livros sagrados - desculpem - de todos os gurus, dos bispos, dos papas (in Será que a Humanidade pode mudar?, Dinalivro, 2007, pp. 40-48).