segunda-feira, 26 de abril de 2010

Dualidade

Jiddu Krishnamurti em diálogo com os budistas 









Conversa com os mestres budistas Walpola Rahula e Irmgard Schloegl, com o Professor David Bohm e outros


WR: Quer dizer que estamos a falar em termos de dualidade.

K: Toda a linguagem é dualista.

WR: Você não pode falar, eu não posso falar sem ser em termos dualistas.

K: Sim, para comparar. Mas eu não estou a falar disso.

WR: Neste momento está a falar do absoluto, do supremo... Quando falamos de bom e mau estamos a falar dualisticamente.

K: Não, por isso é que quero sair deste assunto.

WR: Não se pode falar do absoluto, em termos de bom ou mau. Não há nada chamado bom absoluto ou mau absoluto.

K: Não. A coragem é o contrário do medo? Quer dizer, se não existir o medo, existe a coragem? Ou é uma coisa completamente diferente?

WR: É uma coisa completamente diferente.

K: Por isso, não é o contrário. A bondade nunca é o contrário da maldade. Então, de que estamos a falar quando dizemos: «Vou modificar-me, mudar do meu condicionamento, que é mau, para a libertação desse condicionamento, o que é bom?» Portanto, a libertação é o oposto do meu condicionamento. Por isso, não é liberdade de todo. Essa liberdade tem origem no meu condicionamento, porque estou enredado nesta prisão e quero libertar-me. Trata-se de uma reacção à prisão, não se trata de liberdade.

WR: Não percebo bem.

K: Vamos considerar por uns minutos o seguinte: o amor será o oposto do ódio?

WR: A única coisa que se pode dizer é que onde há amor não há ódio.

K: Não, a minha pergunta é diferente. Eu pergunto: o ódio é o oposto do afecto, do amor? Se é, então, nesse amor, há ódio porque tem origem no ódio, no seu oposto. Todos os opostos têm origem no seu oposto. Não?

WR: Não sei, isso é o que o senhor diz.

K: Mas é um facto. Olhe, se eu tenho medo, cultivo a coragem. Está a ver, para afastar o medo, tomo uma bebida ou qualquer coisa semelhante e tudo o mais para me ver livre do medo. E, no fim, digo que sou muito corajoso. Todos os heróis de guerra recebem medalhas por isso. Porque têm medo, dizem: «Temos de ir em frente, matar», ou fazem qualquer outra coisa e tornam-se muito corajosos, heróis.

WR: Isso não é coragem.

K: Eu digo que qualquer coisa com origem no seu oposto contém o seu próprio oposto.

WR: Como?







K: Se alguém odeia e, no fim, diz: «Tenho de amar», esse amor nasce do ódio. Porque sabe o que é o ódio e diz: «Não posso ser isto, tenho de ser aquilo». Portanto, aquilo é o oposto de isto. Assim sendo, o oposto contém isto.

WR: Não sei se é o oposto.

K: É assim que nós vivemos. É assim que nós agimos. Sou sexual, não devo ser sexual. Faço voto de celibato - não «eu» - as pessoas fazem voto de celibato, que é o oposto. É assim que estão sempre presas neste corredor de opostos. E eu questiono todo este corredor. Acho que ele não existe; nós inventámo-lo mas, de facto, ele não existe. Quero dizer, por favor, isto é apenas uma explicação, não aceitem qualquer coisa como certa.

IS: Pessoalmente, como hipótese de trabalho, considero este canal de opostos como um factor de humanização e nós estamos enredados nele.

K: Oh não, não é um factor de humanização. É como dizer: «Eu fui uma entidade tribal, agora tornei-me uma nação e, mais tarde, acabarei por me tornar internacional.» Continua a ser tribalismo em acção!

DB: Acho que vocês os dois estão a dizer que nós, de alguma forma, progredimos, na medida em que não somos tão bárbaros como éramos antes.

IS: Isso é o que eu quero dizer com factor de humanização.

K: Questiono que seja de humanização.

WR: Não gosto de entrar em extremos.

K: Isto não são extremos, são apenas factos. Os factos não são extremos.

DB: Está a dizer que isto não é progresso genuíno? No passado as pessoas eram em geral muito mais bárbaras do que são agora. O senhor diria que esse facto realmente não significa muita coisa?

K: Nós ainda somos bárbaros.

DB: Sim, somos, mas algumas pessoas dizem que não somos tão bárbaros como éramos.

K: Não tão bárbaros.

DB: Vamos ver se nos entendemos. Então, diria que isso não é importante, que isso não é significativo?

K: Não, quando digo que sou melhor do que era, isso não tem significado.

DB: Acho que temos de esclarecer isso.

WR: Em sentido relativo, dualista, não aceito isso, não o vejo assim. Mas, em sentido absoluto, último, não há nada disso.

K: Não, último, não - nem mesmo posso aceitar essa palavra «último». Vejo como o oposto surge no dia-a-dia, não no «sentido supremo». Sou ganancioso, isso é um facto. Tento tornar-me não-ganancioso, o que é um não-facto, mas, se permanecer com o facto de que sou ganancioso, posso, efectivamente, fazer alguma coisa a esse respeito. Assim, não há oposto. Por exemplo, a violência e a não-violência. A não-violência é o oposto de violência, um ideal. Por isso, a não-violência é um não-facto. O único facto é a violência. Desta forma, posso lidar com factos, não com não-factos.









WR: Então qual é a sua posição?

K: A minha posição é que não há dualidade mesmo na vida diária. Trata-se de uma invenção de todos os filósofos, dos intelectuais, visionários, idealistas, que dizem que existe o oposto, que trabalham para provar ou alcançar isso. O facto é que eu sou violento, é tudo, lidemos com isso. E, para lidar com isso, não inventemos a não-violência.

IS: A questão agora é: como hei-de eu lidar com isso já que aceitei o facto de que sou violento?

K: Aceitar, não, é um facto.

IS: Tendo compreendido isso.

K: Podemos então continuar, eu mostro-lhe. Mas, primeiro, tenho de ver o que estou a fazer agora. Estou a evitar o facto e a fugir para o não-facto. Isso é o que se passa no mundo. Por isso não fujam, permaneçam com o facto. São capazes disso?

IS: Bem, a questão é: somos capazes, mas, muitas vezes, não gostamos de o fazer.

K: Claro que somos capazes. É como ver alguma coisa perigosa e dizer: «É perigoso, não me vou aproximar.» É perigoso fugir do facto. Pronto, acabou-se, não fujamos. Isso não quer dizer que vamos treinar, que vamos praticar não fugir. Não fugimos, é tudo. Creio que os gurus, os filósofos, inventaram o fugir. Desculpem.

WR: Não se trata de fugir, é completamente diferente, é errado pôr a questão nesses termos.

K: Não, não é.

WR: Não podemos fugir.

K: Não, estou a dizer não fuja, veja, não fuja, veja. Mas, em vez disso, dizemos: «Não consigo ver porque estou enredado nisso.»

WR: Percebo, compreendo muito bem o que está a dizer.

K: Então, não há dualidade.

WR: Onde?

K: Agora, na vida quotidiana, não em sentido absoluto.

WR: O que é a dualidade?

K: A dualidade são os opostos. Violência e não-violência. Sabe, toda a Índia tem vindo a praticar a não-violência e isso não faz sentido. Apenas há violência, é com isso que temos de lidar. Os seres humanos têm é de lidar com a violência, não com o ideal da não-violência.

WR: Concordo plenamente que quando vemos o facto é com ele que temos de lidar.

K: Sendo assim, não há progresso.

WR: Isso é apenas uma palavra que se pode usar de qualquer forma.

K: Não, não é de qualquer forma. Quando tenho um ideal, para atingir esse ideal, preciso de tempo. Certo? Por isso, vou evoluir nesse sentido. Portanto, nada de ideais - só factos.

WR: É isso mesmo. Qual é a diferença? Qual é a discussão entre nós? Ambos concordamos que só existem factos.



O Taj Mahal em Agra (Índia).



K: O que significa que, para ver os factos, não é preciso tempo.

WR: Certamente que não.

K: Portanto, se não é preciso tempo, posso vê-los agora.

WR: Sim, de acordo.

K: Pode vê-los agora. Por que razão não os vê?

WR: Porquê? Essa é outra questão.

K: Não, não é outra questão.

DB: Se levarmos realmente a sério que o tempo não é necessário, podemos talvez esclarecer todo o assunto agora mesmo.

WR: Sim, o que não significa que todos os seres humanos sejam capazes, algumas pessoas são capazes.

K: Não, se eu sou capaz de ver o facto, você também é.

WR: Acho que não, não concordo consigo.

K: Não se trata de uma questão de concordar ou discordar. Contudo, quando temos ideais diferentes dos factos, é preciso tempo para lá chegar, é preciso progresso. Preciso de conhecimento para progredir. Isso tudo está implicado, certo? Então, é capaz de abandonar os ideais?

WR: É possível.

K: Ah, não! A partir do momento em que usa a palavra «possível», o tempo está implicado!

WR: O que quero dizer é que é possível ver os factos.

K: Faça isso agora - desculpe, não pretendo ser autoritário - quando diz «é possível», já se afastou do facto.

WR: Quero dizer, tenho de dizer, que nem toda a gente é capaz.

K: Como sabe?

WR: É um facto.

K: Não, isso não aceito.

IS: Talvez possa dar um exemplo concreto. Se eu estiver numa prancha, bem alto, sobre uma piscina, e não souber nadar e me disserem: «Limita-te a saltar, relaxa completamente e deixa que a água te leve», isso é completamente verdade, eu sou capaz de o fazer. Não há nada que mo impeça, excepto o medo de o fazer. Acho que é esta a questão. Claro que somos capazes, não há qualquer dificuldade, mas há este medo primário que não nos deixa raciocinar, que nos faz esquivar.

K: Por favor, desculpe, não estou a falar disso, não é isso que estamos a dizer. Mas, se percebermos que somos gananciosos, por que razão havemos de inventar a não-ganância.?

IS: Não sei, porque me parece tão óbvio que se eu sou ganancioso, então, sou ganancioso.





K: Então, por que razão temos o oposto? Porquê? Todas as religiões dizem que não devemos ser gananciosos, todos os filósofos dignos desse nome dizem: «Não sejam gananciosos» ou outra coisa qualquer. Ou dizem: «Se forem gananciosos não vão para o céu.» Por isso, através da tradição, por meio dos santos, e tudo o mais, cultivou-se sempre esta ideia de oposto. Ora, eu não aceito isso. Eu digo que isso é uma fuga a isto.

IS: E é. É, quando muito, um ponto intermédio.

K: É uma fuga a isto, certo? E não resolve o problema. Por isso, para lidar com o problema, para o eliminar, não posso ter um pé lá e outro cá. Tenho de ter os dois pés aqui.

IS: E se os meus dois pés estiverem aqui?

K: Espere, isto é apenas uma comparação, nada mais. De facto, não há oposto que implique tempo, progresso, prática, tentativa, vir a tornar-se, toda a gama disso.

IS: Então eu vejo que sou ganancioso ou violento.

K: Agora temos de aprofundar uma coisa completamente diferente. Poderá o ser humano libertar-se da ganância agora? Essa é a questão. Não futuramente. Repare, não me interessa não ser ganancioso na próxima vida ou depois de amanhã, o que é que isso interessa? Quero libertar-me da dor, do sofrimento, agora. Então, não tenho quaisquer ideais. Certo? Tenho apenas este facto: sou ganancioso. O que é a ganância? A própria palavra é condenatória. Há séculos que a palavra «ganância» permanece na minha mente e a palavra condena imediatamente o facto. Ao dizer: «Sou ganancioso», já condenei o facto de o ser. Mas serei capaz de olhar para o facto sem a palavra e todas as suas implicações, o seu conteúdo, e a sua tradição? Observe. Não podemos compreender a profundidade do sentimento de ganância ou libertarmo-nos dele se estivermos enredados em palavras. Então, como a ganância diz respeito a todo o meu ser, digo: «Está bem, não vou ficar preso nela, não vou usar a palavra "ganância".» Certo? Mas esse sentimento de ganância ficará, então, livre da palavra, separado da palavra «ganância»?

IS: Então, não fica. Continue, por favor.

K: Só assim vejo o facto, só assim vejo o facto.

WR: Sim, sem a palavra.

K: Por isso, a palavra não tem valor, acabou. Aí é que está a dificuldade. Quero libertar-me da ganância, porque tudo no meu sangue, na minha tradição, na minha educação, na minha cultura me diz para me libertar dessa coisa feia. Por isso, estou constantemente a esforçar-me por me libertar dela. Certo? Não fui educado nesses moldes, graças a Deus. Por isso, eu digo: «Está bem, tenho apenas o facto, o facto de que sou ganancioso. Quero compreender a natureza e estrutura dessa palavra, desse sentimento. O que é? Qual é a natureza desse sentimento? É uma lembrança? Se é uma lembrança, estou a observar a presente ganância com as lembranças do passado. As lembranças do passado dizem-me para a condenar. Serei capaz de a observar sem as antigas lembranças?

Vou aprofundar isto um pouco mais porque a lembrança do passado condena a ganância e, assim, fortalece-a. Se ela é uma coisa nova, não a condeno. Mas, como não é, porque é nova mas tornada antiga pelas lembranças, memórias e experiência, condeno-a. Ora, serei capaz de observar sem a palavra, sem a associação de palavras? Isto não precisa de disciplina ou treino, não precisa de um guia - apenas isto - sou capaz de a observar sem a palavra? Sou capaz de olhar para aquela árvore, para uma mulher ou um homem, para o céu, o firmamento ou um pássaro, sem a palavra e descobrir o que são? Mas se alguém surge a dizer: «Eu mostro-lhe como se faz», então estou perdido. E, o «como fazer» é tudo do que tratam os livros sagrados - desculpem - de todos os gurus, dos bispos, dos papas (in Será que a Humanidade pode mudar?, Dinalivro, 2007, pp. 40-48).













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