sexta-feira, 2 de abril de 2010

Movimento Perpétuo

Escrito por Álvaro Ribeiro





As principais críticas de Aristóteles a todas as doutrinas da imobilidade encontram-se agrupadas nos livros de Metafísica, e com razão vemos incluída nessa miscelânea literária uma das mais belas obras de pura teologia. Só Deus é verdadeiramente imóvel, segundo a doutrina de Aristóteles. A Física é um desenvolvido tratado do movimento e do repouso, da quietação e da inquietação. Erro lamentável foi sempre o de confundir com a física a ciência da natureza, limitada esta aos entes que vivem sob as leis do nascer e do morrer, quer dizer, ao tempo. Erram os tradutores quando escrevem naturalmente por fisicamente, como na primeira frase do primeiro livro da Metafísica; impiedosas, efémeras ou falsas serão quaisquer representações da imobilidade.

A filosofia de Aristóteles, é, pois, a defesa do movimento; na parte trivial, demonstrando contra os cépticos a verdade do discurso, ela segue as vicissitudes do sujeito, segundo os modos de ser, ou das acepções do ser, que lhe são conferidos pelos categoremas e pelas categorias; na segunda parte, ou quadrivial, ela segue o movimento das substâncias naturais, considerando principalmente o que existe por natureza, mas também o que existe por arte e por acaso. Pensar é inferir para aferir. Neste preceito aristotélico está a condenação do princípio kantista segundo o qual pensar é julgar. Aférese e diérese.

Aplicando-lhe a doutrina das categorias, o movimento pode ser dito segundo a substância, a quantidade, a qualidade, o lugar e o tempo. Movimentos são o nascer, o crescer, o gerar, o reproduzir, o corromper e o morrer, movimentos significativos das leis da vida, género máximo ou supremo da filosofia aristotélica.

Cada ente é caracterizável pelo movimento que lhe é próprio, e por isso os escolásticos se apressavam a constituir uma linguagem de correspondência entre os substantivos e os respectivos verbos que exprimem acções e paixões.

O movimento mais simples é a deslocação de corpos ou de corpúsculos observáveis no mundo sensível, e a representação mental da deslocação de puras figuras geométricas, preparatórias das operações sobre números. É a mudança de lugar, de estado ou de estação, o movimento segundo o lugar, no dizer de Aristóteles. A substância ou sujeito do movimento permanece idêntico, inalterável e imóvel. A moção provém de uma causa exterior, de um segundo princípio, ou de uma forma, pelo que a deslocação se desenha como movimento relativo, representável por uma linha e limitado entre dois pontos. O movimento relativo pressupõe assim uma força absoluta, que actua a distância e conserva o seu carácter maravilhoso. Nas principais leis da mecânica moderna essa força é anunciada pelos verbos que, apesar da sua acepção simples, conservam todavia oculto o elemento essencial. Impelir, atrair, gravitar, etc., são palavras cuja clareza resultante da nossa familiaridade com os fenómenos não produz claridade suficiente para a explicação científica.



O movimento de rotação, por ser aparentemente múltiplo e essencialmente uno, múltiplo na periferia e uno no centro, afigura-se a Aristóteles como particularmente simbólico de toda a representação universal. A translação rectilínea, diz o Filósofo, é contínua por imitação do movimento circular.

A substituição da circunferência pelas outras curvas das secções cónicas, conferiu à mecânica celeste dos astrónomos modernos maior acentuação da relatividade do movimento, sem que alterasse no valor filosófico a ciência tradicional que se conserva na obra de Aristóteles.

A doutrina aristotélica do movimento admite, além da categoria de lugar, as categorias de quantidade e de qualidade. Ao progredir de categoria para categoria, deixa a representação figurativa do movimento relativo, à qual incessantemente regressam os pitagóricos, para cingir mais nitidamente a substância. O movimento segundo a quantidade traduz-se pelos verbos aumentar, crescer, acrescer, e seus contrários; o movimento segundo a qualidade traduz-se pelos verbos alterar, adulterar, transformar, seguidos da notação valorativa; assim se entende que no movimento estudado pelas categorias superiores o móvel deixe de ser considerado pontual ou uno, para admitir a multiplicidade actual ou potente de tudo quanto é sensível.

A física de Aristóteles não se confina a uma cinemática, isto é, a definir e a classificar os fenómenos de cinese que por ordem geométrica e progresso aritmético se enquadram na mnemónica pitagórica. Aristóteles estuda o movimento em todas as categorias, numa noção tão ampla que abrange a física, a fisiologia e a morfologia para incluir todos os fenómenos de génese, segundo as categorias de tempo e finalidade (carácter teleológico da acção e da paixão).

Só em ampla acepção pode ser a Física traduzida por Natureza, pois só esta procura o homem formalmente imitar quando pretende produzir obras de arte. Se os actos naturais são, predominantemente, o nascer, o crescer, o gerar, o reproduzir, o corromper e o morrer, todas as artes humanas, começando pela arte de pensar, hão-de de ser caracterizadas por operações que tenham com as da natureza não só uma relação de semelhança, mas também uma adequação capaz de lhe garantir a eficiência e fecundidade. O processo artístico de imitação da natureza há-de ser humanizado pelo acréscimo da noção do valor. Ao longo dos estudos de gramática, de retórica e dialéctica vimos no significado étimo de expressões correntes a semelhança notável com processos naturais, como nos exemplos de cópula, conceito e maiêutica. A classificação de modelo biológico por indivíduos, espécies e géneros, muitas vezes considerada como um erro de Aristóteles e um vício dos escolásticos, mantém, contudo, a superioridade mental das operações baseadas em palavras sobre as operações baseadas em números. Em vez de condenada, merece essa metodologia filosófica ser extensiva a todas as artes humanas, triviais e quadriviais, mediante a sucessiva aplicação das categorias previstas e imprevistas à substância do discurso profético. Liberta dos paralogismos relativistas ou terministas, que exigem uma sistematização culminante num absoluto, a humanidade vencerá a injustiça dos tempos modernos (in Estudos Gerais, Guimarães Editores, 1961, pp. 132-135).



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