Eis uma interessante mentira na qual muita gente finge acreditar.
Padre liberal é um absurdo, os termos repelem-se, é como se disséssemos um malandro honrado. Se se é padre não se é livre, se se é livre não se é padre. O homem livre só aceita (como se afirma) verdades demonstradas, o padre aceita e afirma erros demonstrados. O homem livre, sendo o senhor da sua consciência, respeita a consciência alheia; o padre, tendo por consciência própria a infalibilidade do Papa, fabrica gazuas para devassar as consciências dos outros. Mas o padre que, atravessando serranias e descampados, vai ao lar frio e sem pão levar o pão e o afecto, a palavra de amor e o gesto da esperança?
O padre que, por entre o ódio dos homens, passa erguendo a cruz do perdão, pronunciando palavras de paz, tendo para o crime a indulgência do forte, para a virtude ternura e carinho de irmão?
O padre confidente e amigo da família, feiticeiro do coração humano, que sabe levar ao lar alanceado a intimidade, a alegria sã, o são aconchego que dá a presença da bondade, a força de vida, a esperança que dá a presença da virtude?
Pode o padre ser isto?
Podia tê-lo sido e, por excepção, foi-o.
Quando a razão humana se não tinha ainda incompatibilizado com o dogma, quando o dogma ainda não tinha declarado guerra, quando ainda a alma ingénua do povo guiava a mão simples e a alma pura do pastor; o padre ideal, cheio de poesia e de religião, era na verdade o herói familiar, o amigo certo, o manto do nu, o pão do faminto, o enfermeiro das almas.
As tempestades levantadas no Vaticano mal atingiam o solitário pastor da Montanha. O alto clero intrigava, o padre curava doentes, visitava tristes, via alvoradas e primaveras, falava aos homens e às aves, rezava a Deus e às estrelas.
Hoje a tempestade estremece por toda a terra, um vento genésico abala as montanhas, encrespa os mares, fustiga árvores e os homens. A terra revolve as entranhas e, de serra em serra, a voz do vento, pregando criação, revela energias ocultas, levanta forças indomáveis, grita o ritmo selvagem das formas novas ansiosas, loucas da proximidade da criação. O homem concebeu um novo Ideal, quebrou os moldes acanhados do antigo mundo e aflito, hesitante ainda, procura a nova Terra da Promissão.
Desfeitas, desmoronadas estão as catedrais e as mesquitas. As religiões morreram, com elas levaram os seus deuses, que, analisados de perto, se viu serem de barro. Nenhuma religião está segura, todas condenadas. Caíram as catedrais gigantes porque as abalou o vento de criação, como hão-de ficar em pé esses grotescos edifícios civis, que albergam o deus-humanidade?
Os homens perderam um Deus.
Não seria a retirada de um Deus falso e intruso a quem o verdadeiro Deus expulsou?
A morte do Deus das religiões é o prelúdio do advento do verdadeiro Deus, integração do indivíduo no Universo, individual, evolutivo, efectivando-se na acção contínua e infinita, no progresso eterno do amor e da justiça.
O padre, delegado daquele Deus morto, como pode ser livre?
A quem há-de ouvir?
Ao passado que o prende, ou ao futuro que o impele e ilumina, ao Papa que o manda olhar para as Trevas ou à ciência, à filosofia que lhe apontam o Sol, as estrelas, o mar, a montanha, a vida, o homem, o Universo?
Ao dogma que lhe prega a morte, a maldade da alegria, a impureza da criança, o pecado da mulher ou à vida que lhe prega a saúde da alegria, a bondade do riso, a eterna glória da mulher, a suprema beleza da criança, a grandeza do amor e das flores, do céu e da terra, da alma e do corpo, do pensamento e dos astros? (in Dispersos V - Filosofia e Política, Editorial Verbo, 1994, pp. 43-45).
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