domingo, 11 de abril de 2010

Uma descolonização sui generis...

Escrito por Agostinho da Silva





Antigo canhão português em Díli.



«Roma, 29 de Junho [de 1963] - Jantar na embaixada do Brasil. Fico à direita do Presidente João Goulart. Não encontrei conversa que valesse com um homem que é chefe do Estado do Brasil. Primarismo das ideias, ignorância de pasmar quanto a coisas elementares, vocabulário tosco, conceitos demagógicos e infantis - e tudo isto envolto na inconsciência e na irresponsabilidade. Disse-me assim: "nós somos anticolonialistas, Portugal é colonialista, e o Brasil é contra, e pronto". E pronto: que se responde a isto? Como se argumenta neste caso? Estava também o novo ministro das Relações Exteriores do Brasil, Evandro Lins: pareceu-me mais sereno, mais composto: mas compenetrado da sua alta importância: e imensamente reservado».

Franco Nogueira («Um Político Confessa-se. Diário: 1960-1968»).




Ali, em Timor, deu-se um conjunto de circunstâncias realmente terríveis... Aquela gente, não imagina, aquela gente tinha um gosto, um respeito, sabe, por Portugal, no aspecto até religioso. Quer dizer, pela ideia de não pisar a sombra da bandeira de Portugal, quando estava hasteada nos edifícios, de desviar-se do caminho para não a pisar. Vi, por exemplo, o palácio do governador guardado por soldados timorenses, vestidos à maneira indígena, à maneira dos guerreiros de Timor, nenhum tinha uniforme do exército português. Fui uma vez acompanhar o governador a uma povoação do interior onde havia um velho muro de defesa português, acompanhados de duas ou três pessoas, sem nenhuma espécie de escolta e fomos recebidos pela população armada da aldeia, os guerreiros com lanças, as mulheres fazendo uma festa enorme para o governador, com um gosto, sabe, um interesse, uma amizade realmente inolvidáveis. E, portanto, parecia que Timor ia continuar naquilo, que um dia haveria qualquer transformação em Portugal e que Timor teria um estatuto naturalmente diferente. Pensava-se que quando a Ditadura acabasse em Portugal abririam pois um estatuto diferente para os territórios que até aí se chamavam colónias ou províncias ultramarinas.

Mas a ideia geral talvez fosse, e eu próprio a defendia e procurei no princípio da guerra em Angola, junto de autoridades portuguesas, por exemplo de um embaixador no Rio, pôr-lhes essa ideia na cabeça... fazer das colónias e de Portugal uma comunidade de língua portuguesa. Ideia que expus a Franco Nogueira quando vim a Portugal, em 1962, convidado pelo Governo português para discutir o estatuto do Centro de Estudos Portugueses em Brasília. O ministro Franco Nogueira, ministro dos Estrangeiros nessa altura, recebeu-me e pudemos conversar com toda a franqueza, perguntando-me ele se eu achava que a ideia de uma comunidade luso-brasileira seria bem recebida no Brasil, respondi-lhe que não. Exactamente por causa da atitude que Portugal estava a tomar com as colónias, com Angola naquela ocasião, o Brasil de nenhuma maneira ia aceitar isso, pois recordava-se muito bem que tinha sido colónia. A meu ver, Portugal tratou o Brasil muito bem quando foi colónia e se não tivessem sido os portugueses, o Brasil não se teria constituído. Mas o Brasil muitas vezes achava que os portugueses tinham tido defeitos na colonização - a meus olhos esses defeitos não existiram, embora houvesse muita coisa individual de tipo geralmente conotado com a colonização rapinante dos países. Mas não me parecia que naquela altura aceitassem uma coisa dessas. Mas havia algo que achava que aceitavam e que tomava a liberdade de expor a Franco Nogueira, que de resto tinha tido relações com um grande amigo meu, o poeta Casais Monteiro, e, portanto, eu podia falar com uma certa liberdade, por isso disse-lhe que o que me parecia que se devia fazer era uma comunidade luso-afro-brasileira com o ponto africano muito bem marcado. Quer dizer, se pudesse, eu poria o ponto central da comunidade, embora cada um dos países tivesse a sua liberdade, a sua autonomia, em África, talvez Luanda ou no interior de Angola, no planalto, de maneira que ali se congregassem Portugal e o Brasil para o desenvolvimento de África e para que se firmasse no Atlântico um triângulo de fala portuguesa - Portugal, Angola, Brasil - que pudesse levar depois a outras relações ou ao oferecimento de relações de outra espécie aos outros países. Então Franco Nogueira disse-me que isso era completamente impossível, que Portugal não se podia dividir e que não havia nada a fazer nesse ponto. De maneira que eu continuo a pensar que, aquando da revolução em 1974, se poderia talvez ter tentado isso. No entanto, é muito possível que a situação tivesse avançado tanto, que a guerra tivesse castigado tanto, quer os africanos, quer os portugueses, que o que cada um queria era ver-se livre do outro. Portanto, não havia já nenhuma possibilidade de fazer senão o que se fez, uma descolonização decerto apressada, mas trazida pelas circunstâncias; parecia que não podia ser de outro modo e, no entanto, talvez a coisa pudesse ter tido outro caminho. Quanto a Timor, achava que podia ter sido incluído num quadro futuro de uma comunidade de língua portuguesa e desempenhar um papel importante.

 Ilha de Ataúro (Timor-Leste).






Ataúro a norte do distrito de Díli.


Não, não me pareceu que a revolução de 1974 tal como estava a ser feita, conduzisse a alguma coisa em que valesse a pena colocar essas ideias. Pareceu-me que era um pronunciamento militar sem grande largueza política e que por outro lado se entrava em passo de pôr imediatamente Portugal a caminho de um regime parlamentarista que continuo a achar que não é o regime mais adequado a Portugal. E os acontecimentos imediatamente se precipitaram. Em Timor apareceram partidos políticos de várias espécies numa população em que eram uma coisa inimaginável, não tinham nenhum sentido para aquela gente.

Imediatamente estalou a luta entre aqueles que se reclamavam de uma democracia e os outros, sobretudo os timorenses, que achavam que os processos ali tinham de ser diferentes de qualquer espécie de democracia ocidental e, provavelmente, tinham. De maneira que estalou a guerra, e quem fez a acção mais pronunciada foi exactamente a parte de timorenses chamada hoje Fretilin. Parece que o governo indonésio ficou com muito medo que ali se estabelecesse uma sucursal da China Comunista, ou qualquer coisa dessa espécie, e a situação tornou-se rapidamente irremediável, sem possibilidade nenhuma de intervenção. E está hoje cada vez menos a favor de qualquer autodeterminação dos timorenses e é evidente que acaba pela inclusão na Indonésia.

Apenas a esperança é que um dia o próprio regime mude de aspecto e a Indonésia possa ser uma verdadeira federação de ilhas autónomas. É possível que isso possa fazer-se desse modo ainda que demore muito tempo, e então até talvez Timor seja um ponto muito importante como ponto de reflexão, como uma espécie de distrito federal, não só da Indonésia como de outras ilhas, digamos malaias, como de outras ilhas polinésias e sobretudo de alguma ligação com as Filipinas. Bem, isso tudo vai levar - se é que alguma vez acontecerá - muito tempo na história.

Mas foi de facto uma pena que as coisas tivessem sucedido daquela maneira quanto a Timor que era alguma coisa à parte em que se podia ter... talvez se pudesse ter pensado para Timor uma dupla nacionalidade, sendo aquele território o ponto de ligação de todos os países de língua portuguesa com os de língua, vamos dizer malaia, tanto o malaio da Malásia como o malaio da Indonésia... se as coisas tivessem levado outro caminho. Mas não foi assim, portanto, agora a história vai seguir a sua rota, mas suponho que a seguirá nessa direcção.

Timor-Leste


Creio que os políticos estão com demasiados problemas que para eles têm mais importância política do que Timor, mas que pelo menos saiam da situação - vamos usar uma frase oriental - salvando a face, pelo menos isso. É que a Indonésia além de tudo tem a força económica, quer dizer, muitos países têm a sua economia dependente daquilo que ela fornece, quer em matéria-prima, quer em manufactura. De forma que esses países procuram que esse incidente acabe depressa, vão dizendo coisas líricas sobre a autodeterminação dos povos, mas a coisa fica exactamente na mesma sem grandes alterações, e a defesa de Portugal de uma autodeterminação para o povo timorense vai passar à história. Talvez um dia os restos de uma consciência timorense acordem para isso, mas suponho que se resultar vai ser sobretudo de movimentos internos da Indonésia, pois não me parece que seja de longa duração o poder centralizador de Java sobre o resto das ilhas. Provavelmente vai dar-se ali o mesmo movimento que eu desejaria que um dia sucedesse no mundo: o máximo de descentralização possível, o máximo de colocação das pessoas e do poder local em regiões limitadas, embora as pessoas ampliem ao mesmo tempo a sua consciência do universal. Quer dizer que ao mesmo tempo se devia cuidar que cada pessoa compreendesse muito bem o local onde nasceu ou onde habita, onde a sua vida está confinada, nos mínimos pormenores, que estivesse inteiramente coordenada com a vida local, com a geografia, com a zoologia, com a botânica, com tudo o que faz o território e ao mesmo tempo tivesse uma consciência do universal. Exactamente como no mosaico, onde cada pessoa pode admirar a realização de cada um dos seus bocadinhos. Ou como nos vitrais das catedrais. Assim, nós no mundo devíamos caminhar para ter ao mesmo tempo a ideia do muito grande e do muito pequeno. Aplicarmos ao mundo, à nossa vida, aquilo que aplicamos na ciência, quando usamos quer o microscópio, mesmo o electrónico, quer o telescópio, ou ainda quando fazemos mais que é mandar um telescópio dentro de um satélite para observar o mundo. O mundo hoje está a caminhar na direcção do infinitamente pequeno e na do infinitamente grande e nós, gente, temos de caminhar também para isso, por um lado na nossa geografia, no nosso habitat na Terra, tendo a consciência plena da nossa aldeia e gostando do que ela for, mesmo que seja uma rua da cidade, sentindo-lhe o valor e ao mesmo tempo fazendo ingressar isso na harmonia completa de um vitral ou de um mosaico. E também na nossa vida pessoal devíamos fazer o mesmo, darmos toda a atenção ao que em nós às vezes há de fugitivo, de rápido e termos atenção a isso (in Vida Conversável, Assírio & Alvim, 1998, pp. 51-55).


Timor-Leste














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