Escrito por Franco Nogueira
(...) entre fins de Agosto e princípios de Setembro [1961], Salazar trabalha sobretudo com o ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Este tem preparado alguns diplomas que levam aos territórios ultramarinos vastas reformas. Entre aqueles, o projecto de decreto abolindo o estatuto de
indigenato. Trata-se de matéria básica, de uma instituição medular da política portuguesa; e o seu desaparecimento constitui marco histórico nos planos político, sociológico e administrativo. É verdadeiramente de uma revolução que se cuida. Em larga medida, pode entender-se que a decisão é apressada pelas circunstâncias externas: desde o início dos ataques na ONU, a crítica fundamental incide sobre o facto de nem todos os habitantes dos territórios portugueses gozarem de plena cidadania portuguesa. Porque é assim, Oliveira Salazar deseja escolher um momento em que seja menor a pressão internacional, e em que o terrorismo no Norte de Angola não disponha de qualquer foco organizado de acção militar. E o mês de Setembro aparece como o mais favorável. Estão ainda encerradas as Nações Unidas, e novos ataques não são de esperar antes de princípios de Outubro, no decurso da próxima Assembleia Geral; e o último reduto de terroristas em Nambuangongo, transformado quase em símbolo de resistência às armas portuguesas, fora enfim esmagado há semanas. Está politicamente aberto o caminho. E por decreto de 6 de Setembro de 1961 é abolido o
indigenato em todo o território português (1). No preâmbulo do diploma aparece o seu justificativo. Em que se baseava uma instituição aliás tão mal compreendida internacionalmente? Antes de mais, no respeito do direito privado de populações a pouco e pouco incorporadas no Estado português a partir das descobertas, e isso na convicção de que esse direito exprime os valores fundamentais de qualquer comunidade; e assim, nesta orientação, que é parte valiosa do património histórico português, Portugal antecedeu de muitos séculos as proclamações de organismos internacionais da actualidade. Depois, a progressiva implantação do conceito de Estado, representando uma soberania portuguesa que se exercia em todos os continentes sem violência, levou à formulação lenta de um conjunto de preceitos que traduziam a ética missionária e exprimiam com fidelidade a
«particular maneira portuguesa de estar no mundo»; e assim foi criado um corpo de imperativos legais destinados a proteger populações e a respeitar as formas tradicionais da propriedade, da família e das sucessões. Além de tudo, no século XIX, aceitava-se que a cidadania tinha o significado de nacionalidade; mas o racionalismo do direito público da época suscitou um problema de técnica jurídica que se traduziu na confusão do conceito de cidadania com a capacidade de gozo e exercício de direitos políticos; e o predomínio do espírito de missão e o sentido de não-violência levaram a um relacionamento formal do estatuto de direito privado com o estatuto político, e a fazer depender este da espécie de lei privada a que cada português estivesse subordinado, sem prejuízo de uma nacionalidade comum atribuída a todos segundo as mesmas regras. São portanto sem procedência as críticas feitas: tudo foi determinado pela composição heterogénea do povo português, pela sua dispersão geográfica, pelo respeito por outras sociedades e culturas, pelo espírito de missão, pelo conceito de que cada homem é um fenómeno único, por um humanismo que se revelou como capaz de implantar uma democracia humana no mundo por onde fez caminho o Ocidente. Na raiz deste processo sociológico, está a tendência para uma assimilação que levasse todos os elementos estruturais da Nação a intervir na vida administrativa e na feitura das leis. E deste modo, no plano dos princípios e em tese, qualquer português de qualquer etnia pode ascender à Presidência da República; e assim se destrói o argumento de que, pelo facto do indigenato, os territórios portugueses são colónias habitadas por cidadãos de segunda classe.
Paralelamente à supressão do indigenato, outras reformas são decretadas. Instituem-se
regedorias (2) destinadas a fazer intervir os vizinhos na gestão dos interesses comuns. Cada regedoria é chefiada por um regedor, a ser investido pelo governador de distrito ou província, e aquele será assistido por um conselho de sua escolha formado pelos homens bons da área; e as regedorias terão representantes nos conselhos legislativos ou de governo de cada província. É publicado um extenso regulamento sobre ocupação e concessão de terrenos no Ultramar, que facilita o processo de outorga de títulos que garantem a posse, o direito de propriedade, a usufruição (3). No plano do direito privado, são conhecidos os usos e costumes locais, estejam codificados ou não (4). E são ainda publicados outros diplomas. Por virtude da abolição do indigenato, são reorganizados os tribunais, pondo-se termo à distinção de foro judicial em razão das pessoas, e reestruturado o processo especial, em função do estatuto do direito privado costumeiro não codificado (5). E são em conformidade ampliados, ou criados onde não existem, os serviços de notariado e os de registo civil, predial, comercial e outros (6).
Simultaneamente, no plano económico e financeiro, são anunciadas outras medidas, de repercussão vasta, ainda que a mais longo prazo. Correia de Oliveira, ministro de Estado adjunto do chefe do governo, torna público o projecto de um
«mercado único português», a transformar em realidade no decurso de 1962, com a dimensão que corresponda ao espaço português. Que se prevê para aquele fim? Supressão de taxas alfandegárias entre territórios portugueses, a efectuar em fases progressivas; desenvolvimento regional, devendo aquela supressão acompanhar este e estar cumprida em dez anos; criação de um fundo monetário e de um sistema de compensação inter-regional. E a opinião pública entende que o governo, para frisar com a da unidade política da Nação, se lança deliberadamente numa política de unidade económica: é o caminho integracionista (in
Salazar, Livraria Civilização Editora, 1984, V, pp. 325-327).
Notas:
(1) Trata-se do decreto-lei n.º 43.893. É extremamente simples a sua formulação legislativa. Tem um
artigo único, que diz:
«É revogado o Decreto-Lei n.º 39.666 de 20 de Maio de 1954».
(2) Decreto n.º 43.896, de 6 de Setembro de 1961.
(3) Decreto n.º 43. 894, de 6 de Setembro de 1961.
(4) Decreto n.º 43.897, da mesma data.
(5) Decreto n.º 43.898, da mesma data.
(6) Decreto n.º 43.899, da mesma data.
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Praia Amélia - Namibe (Província de Angola).
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