sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Porque dividimos o exterior e o interior?

Explorações com Jiddu Krishnamurti


 



«“É ver as coisas como são e não ficar ligado a nada. Lavar toda a sujidade que o nosso ser acumulou e revelar a realidade na sua essência, na sua nudez. Liberte-se do fardo das suas conclusões preconcebidas e “abra-se” a tudo e a todos os que o aguardam. Permita-se ser um observador calmo do que está a acontecer à sua volta. Limitar-se-á a ver, e, nesta visão, apresentar-se-á o todo, não o que é parcial.”

Este é um processo a que o meu pai chamava “consciência sem escolhas”. Adoptou o termo de Krishnamurti, um dos seus filósofos preferidos. A ideia é de que esteja consciente de tudo o que acontece à sua volta e dentro de si sem o avaliar, sem fazer uma escolha ou criar uma história, ao mesmo tempo que se mantém plenamente consciente. Que vê as coisas puramente pelo que são. Que experimente plenamente, para que possa ter uma experiência total, mais do que parcial (e, consequentemente, limitada).»

Shannon Lee («Sê Água, Meu Amigo»).

 

«Beyond liking and disliking. – You will see it without like or dislike, you simply see, and in this seeing, the whole is presented and not the partial.

(…) Totally in action. – Action is not a matter of right and wrong. It is only when action is partial, not total, that there is right and wrong.

To be whole. – An organism works as a whole. We are not a summation of part, but a very subtle coordination of all these different bits that go into the making of the organism – we Have not a liver or a heart. We ARE liver and heart and brain and so on.

On viewing totality – To view totality one has to be a total outsider

Bruce Lee («Striking Thoughts»).




Porque dividimos o exterior e o interior?

Eles tinham acabado de chegar à estação. Traziam Guirlandas. Vestiam roupas de algodão feitas em casa, conhecidas por khadi, e estas, com as sandálias que pareciam usar sempre, eram a sua marca distintiva. A paz residia no que diziam. Dedicavam-se à libertação da terra, tinham estado presos muitos anos, sofrido pela causa e, quando a potência estrangeira partiu, eram a nata da terra. A maior parte deles era brâmane, e Gandhi era o seu líder. Falavam constantemente sobre a ausência de violência, mas eram violentos. Acreditavam que não era necessário usar palavras, porém, todas as suas acções eram palavrosas, políticas, sociais. Tinham os gestos da humildade, mas mostravam-se arrogantes. Seguiam os bem-sucedidos, porque no íntimo não passavam de falhados. Tinham um pavor sagrado do sexo e alguns deles haviam feito votos de celibato; no entanto, andavam rodeados de raparigas. Procuravam a paz; contudo, eram seres humanos extraordinariamente torturados. Eram tradicionais, ainda que próximos dos modernos escritores ocidentais e das suas ideias; conheciam as escrituras e os filósofos modernos. Havia uma contradição entre o mundo científico e o mundo religioso. Eles identificavam-se com os pobres e eram próximos dos poderosos. Falavam das aldeias nas quais eram os líderes, arautos da iluminação e da esperança. De aparência simples nas vestes brancas, por dentro, eram seres humanos torturados, confusos, profundamente marcados, miseráveis.

Em 1948, eles eram os heróis desta luta e os guardiões que prometiam um futuro brilhante. Tinham grandes esperanças para a sua terra, e toda a gente acreditava que inaugurariam uma nova era dourada. Hoje, estão perdidos, inúteis, fracassados; esgotados. O seu fogo, entusiasmo e ânsia desapareceram. Sentem-se cansados, desiludidos, e levam uma vida sem sentido, isolados, ainda que falando, gesticulando e escrevendo. São muito espertos e podem discursar persuasivamente várias horas, mas estão perdidos, amargos, infelizes, solitários. São como quaisquer pessoas noutro lado qualquer que se tenham dedicado a um curso particular de acção que esperavam capaz de conduzir ao sucesso. Com ou sem sucesso, eles estão de mãos e coração vazios, cheios do conhecimento dos outros, e têm pouco deles mesmos. Este não é um cruel exagero. É um retrato triste para todos nós, porque todos nós pertencemos, de uma forma ou de outra, a este grupo de pessoas.

O que correu mal, o que aconteceu? Porque será que, sabendo tudo o que podem ensinar os livros, a experiência, as escrituras dos santos, nada aprenderam e estão absolutamente perdidos? Nós somos iguais. Isto não é uma crítica a um grupo em particular; através deste grupo, vemos todos os grupos, e por estas pessoas, vemo-nos a nós. A maior parte está perdida, infeliz, sozinha, amargurada.

Parece-me justo perguntar agora, vendo tudo isto, não apenas como prevenir a proliferação desta pavorosa doença, mas também o que fazer com ela no nosso coração. Este desejo de fazer algo exteriormente, de reformar, de organizar melhoramentos, é o primeiro sintoma desta doença fatal. O outro sintoma fatal é o oposto do primeiro: dizer que tudo reside em mim e que tenho de mudar primeiro. Esta divisão é a causa da doença. Nunca se pode separar o exterior do interior. A violência e a desordem no exterior são a violência e a desordem no interior: as duas são o mesmo indivisivelmente.



A paz deles era apenas um slogan, um instrumento político da violência no interior. Havia uma compulsão, uma disciplina rígida, uma conformidade com um padrão brutal do que consideravam moralidade. Havia sempre neles este cruel conflito a fim de uma conformidade com o que consideravam a mais destacada virtude, e essa era a sua intenção. Também forçavam os outros a conformar-se a esse padrão. Eram essencialmente tradicionalistas e, portanto, contraditórios.

Por que razão dividimos o exterior e o interior? Será porque não conseguimos controlar o exterior que esperamos controlar o interior? Fará parte da nossa fuga intelectual daquilo que realmente somos? Não vemos que somos o resultado do passado. Sem morrermos para o passado em nós, temos inevitavelmente de seguir o caminho da tradição que criou tanto o exterior como o interior. O exterior e o interior estão interligados e determinam-se um ao outro. Ambos são alterados quando o passado é negado. Negando o passado no nosso coração, negamo-lo também nas nossas acções que constituem o exterior.

Então o que temos, tu e eu, de fazer para evitar degenerar em seres humanos torturados e desesperados? Há alguma coisa de positivo que possamos fazer? Se fizeres algo positivo, vai estar na linha da tradição. Mas se negares a tradição, já terá ocorrido a mudança mais radical que poderás fazer.

A degeneração ocorre quando os hábitos passados, que são a tradição e as idiossincrasias particulares derivadas do passado, são perseguidos. Onde houver uma continuidade na conformação a um padrão conceptual de vida – quer seja um conceito tradicional, ortodoxo ou particular, projectado pelos teus desejos, inclinações e vontades, – há um declínio e uma vida sem significado. Esta visão é compreensão, e não um acto intelectual. Isto é energia que não está a agir contra ela própria. Tenham cuidado com tudo isto na acção, na vida e em todos os relacionamentos.

(In J. Krishnamurti, Como Pode a Mente Estar Quieta?, – Viver, Aprender e Meditar, Cultura Editora, 1.ª edição, Junho de 2021, pp. 27-29).



 

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