Escrito por Stefan Zweig
«O que (...) chamei “ídolo”, é precisamente o que até agora se chamou Verdade. “Crepúsculo dos ídolos” significa: estamos no fim das velhas verdades.»
Frederico
Nietzsche («ECCE HOMO. Como se chega a ser o que se é»).
«(...) a impressão de Goethe é sobretudo
cerebral e estética e a de Nietzsche é vital; enquanto aquele leva da Itália um
estilo artístico, Nietzsche descobre aí um estilo de vida. Goethe é
simplesmente fecundado; Nietzsche sofreu aí uma transplantação e uma renovação.
É verdade que o sábio de Weimar experimenta o anseio de se renovar, “certamente
seria melhor que não voltasse se não posso regressar com uma nova vida”, mas,
como qualquer forma já estável, só tem a capacidade de sofrer “novas impressões”.
Para sofrer uma mudança radical como a de Nietzsche, Goethe, aos quarenta anos,
tem demasiada experiência, é demasiado egotista, sobretudo demasiado rebelde, e
está pouco disposto a isso; o seu poderoso e sólido instinto de conservação (que
nos últimos anos é já uma verdadeira couraça) não consente numa mudança que
comprometa o homem erudito e ordenado; só aceita aquilo que ele pensa dever ser
proveitoso para a sua natureza (enquanto as naturezas dionisíacas aceitam tudo,
até um excesso de perigo). Goethe só quer enriquecer-se espiritualmente, mas
nunca se perder numa inclinação excessiva, numa transformação radical.
Por isso, as suas últimas palavras
dirigidas ao Sul são medidas, agradecidas, mas, apesar de tudo, de ordem
negativa: “Entre as coisas louváveis que aprendi nesta viagem”, disse ao
abandonar a Itália, “está o facto de que já não posso, de modo algum, estar só
nem viver afastado da minha pátria”.
Basta inverter completamente essas palavras, duras como a legenda de uma medalha, para ter em substância o efeito que o Sul produziu em Nietzsche. Ao contrário de Goethe, chega à conclusão de que já só pode viver sozinho e fora da sua pátria. Enquanto Goethe, ao sair da Itália, regressa ao ponto de onde partiu, depois de uma viagem instrutiva e interessante, levando, na sua bagagem, no seu coração e no seu cérebro, muitas coisas preciosas para o lar, para o seu lar, Nietzsche fica expatriado para sempre e encontra o seu verdadeiro “eu”: príncipe fora da lei, apátrida feliz, sem lar, sem bens, afastado para sempre das “mesquinharias” da pátria e de qualquer sujeição patriótica. De futuro, já não há para ele outra perspetiva que a contemplação superficial do “bom europeu”, desta espécie de homem essencialmente nómada e que está colocado acima das Nações, um novo homem cuja chegada inevitável sente Nietzsche na atmosfera, e nesse ponto de vista fixa a sua residência, o seu reino, que pertence ao futuro. A casa espiritual de Nietzsche é onde ele está, não onde nasceu (isso pertence à história); está só onde ele próprio se gera a si mesmo e volta a nascer: urbi pater sum, ibi patria, “ali onde sou pai, onde gero, ali é a minha pátria”, e não onde foi gerado. O benefício inestimável e inalterável que recolheu na sua viagem ao Sul é que, desde então, o mundo inteiro converte-se para Nietzsche num país estrangeiro e na sua própria pátria ao mesmo tempo, e que pode conservar o panorama do olhar, esse olhar límpido e penetrante de ave de rapina planando na altura, um olhar que se estende para todos os horizontes abertos (Goethe, pelo contrário, segundo as suas próprias palavras, põe em perigo a sua personalidade e, ao mesmo tempo, preserva-a, “rodeando-a de horizontes fechados”).»
Stefan Zweig («Nietzsche: O Combate com o Demónio»).
«Temos necessidade do Sul a qualquer preço; necessitamos de sons límpidos, inocentes, alegres, felizes e delicados.»
Frederico Nietzsche
«O desenvolvimento do pensamento alemão oferece, frequentes vezes, o aspecto do ódio à natureza: grandes máquinas mentais, bulldozers, perfuradoras, tractores, guindastes, que parecem insectos ampliados ao microscópio. Os grandes sistemas da filosofia germânica zumbem com um grande ruído sintáctico e sinfónico no espaço da mente e abatem-se de súbito sobre a terra, abrindo minas, escavando, rasgando, torturando a carne da natureza.»
António Telmo («História Secreta de Portugal»).
«Durante muitos séculos esteve a Alemanha subordinada à cultura greco-latina, embora por vezes contra ela reagisse em nome de um espírito nacional; mas desde que Manuel Kant, na sua Crítica da Razão Pura (1781), exarou a célebre sentença sobre a lógica de Aristóteles, ou sobre a lógica dos aristotélicos, tornou-se claro na filosofia alemã o propósito de resolver em novos termos, diferentes dos escolásticos, o problema ingente da relação do pensamento com a linguagem, quer dizer, o problema central da psicologia. O método histórico, aplicável às ciências do espírito, atribuiu maior valor à relação cinemática de antecedente a consequente do que à relação estática de sujeito e predicado, e a filosofia alemã, situando assim a causalidade na temporalidade, logo se apressou a opor a vontade certa à representação incerta, quer dizer, a opor o mundo numenal ao mundo fenomenal. Todos quantos admiramos as obras literárias de Goethe, Schiller e Novalis, todos quantos admiramos as obras científicas de Fichte, Schelling e Hegel, todos quantos admiramos as obras místicas de Eckehart, Boehme e Silésius, lamentamos que a cultura oficial alemã esteja prejudicada por demasiado apego à Terra.
A cultura europeia, em tudo quanto não significou repetição anacrónica de moldes clássicos e escolásticos, desenvolveu-se em réplica de simpatia ou antipatia ao romantismo e ao idealismo dos Alemães, porque os outros povos do Continente não conceberam nem realizaram uma filosofia superior. A ciência "moderna" havia contribuído para a separação entre os estudos filológicos e os estudos filosóficos, causando assim a decadência e o descrédito da Escolástica. Os pensadores europeus, perturbados pelo preconceito da oposição a Aristóteles, deixaram de ver as relações de homologia e de analogia que existem nas ciências do espírito, o que equivale a dizer que não viram, nem puderam ver, o significado profundo da revolução cultural levada a efeito pelo pensamento alemão.»
Álvaro Ribeiro («A Razão Animada»).
«Immanuel Kant vive com o conhecimento como quem vive com uma esposa; dorme com ela há quarenta anos, no mesmo leito espiritual e, com ela, origina toda uma família alemã de sistemas filosóficos, cujos descendentes ainda vivem entre nós no nosso mundo burguês. As suas relações com a verdade são de uma ordem puramente monogâmica, assim como o são para todos os seus filhos intelectuais: Schiller, Fichte, Hegel e Schopenhauer.
O que os arrasta para a filosofia é uma alta vontade de ordem que não tem nada de demoníaco, uma boa vontade muito alemã, objectiva, profissional, para disciplinar o espírito; uma vontade que tende para estabelecer uma arquitectónica ordenada do destino. Eles sentem o amor à verdade, um amor profundo, duradouro e totalmente fiel. Mas esse sentimento está inteiramente desprovido de egotismo e do desejo de consumir, de dominar, quer a si mesmo, quer aos outros. Sentem a verdade, a sua verdade, como uma esposa ou algo próprio, seguros de que nunca se separarão até à hora da morte e a quem são fiéis. Eis porque há sempre, nas suas relações com a verdade, alguma coisa que recorda o casal e as coisas domésticas; e, efectivamente, cada um deles edificou a sua própria casa e aí alojou cama e mulher, quer dizer, o seu sistema filosófico bem seguro. E trabalham com mão mestra o campo do seu espírito com grade e charrua, esse terreno que lhes pertence e que conquistaram para a Humanidade, arrancando-o da confusão do caos. Prudentemente, vão pondo, cada vez mais afastadas, as balizas que marcam os limites dos seus conhecimentos no seio da cultura da sua época, e sabem aumentar, com suor e trabalho, a colheita intelectual.
Pelo contrário, a paixão de Nietzsche pelo saber vem de um temperamento muito diferente e de um mundo do sentimento que está nos antípodas do anteriormente dito. A sua posição em relação à verdade é totalmente demoníaca, é uma paixão, vibrante, nervosa e ávida que nunca se satisfaz nem se esgota, que não se limita a um resultado e que, para além de todas as respostas, continua sempre a questionar, impaciente e insaciavelmente. Nunca atrai um conhecimento de uma maneira durável, para fazer dele, depois de lhe prestar juramento e jurado fidelidade, a sua mulher, o seu "sistema", a sua "doutrina".
Todos os conhecimentos o atraem e nenhum o domina. Logo que um problema perca a virgindade, o encanto e o segredo do pudor, abandona-o sem piedade e sem ciúme para os que vêm depois, como fazia Don Juan - o seu irmão pelo instinto - com as mille e tre que já não lhe interessavam. Porque, como procede todo o grande sedutor que busca nas mulheres a mulher, assim Nietzsche procura, através de todos os saberes, o "conhecimento cabal" nas informações isoladas, o eternamente irreal, impossível, eternamente inacessível até ao sofrimento. O que martiriza Nietzsche até ao desespero não é a luta pela erudição, não é a sua conquista, a sua posse, a sua fruição, mas a eterna interrogação, a busca, a caça. A sua paixão é incerteza e não certeza; portanto, é uma voluptuosidade "voltada para a metafísica" e que consiste no amour-plaisir do saber; um desejo demoníaco de seduzir, de pôr a nu, de violar cada tema espiritual - o entendimento no sentido bíblico, no qual o homem "conhece" a mulher e, por assim dizer, descobre o seu segredo.
Nimrod |
Nietzsche, eterno relativista dos valores, sabe que nenhum desses actos de conhecimento, nenhuma dessas tomadas de posse por um espírito ardente são uma verdadeira posse, um "conhecimento definitivo", e que a verdade, no seu verdadeiro sentido, nunca se deixa possuir por ninguém, pois "quem acredita estar na posse da verdade quantas coisas não deixa escapar!" Por isso, Nietzsche não trata de conservar a seu lado a Verdade, por isso não constrói nada como refúgio intelectual; quer (ou talvez seja melhor dizer "deve", pois vai forçado pela sua natureza nómada) permanecer sempre sem domínios, como um Nimrod solitário que passeia as suas armas por todos os bosques do espírito, que não tem tecto, nem mulher, nem filhos, nem criados, mas que, em compensação, possui a alegria e tem o pleno gozo do prazer da caça. Tal como Don Ruan, procura não a posse do prazer, nem o seu prolongamento, mas só "os grandes e encantadores instantes"; só o atraem as aventuras do espírito, aqueles "perigosos talvez", com cuja perseguição se incendeia e estimula, mas que, se os alcança, nunca saciam; não procura uma presa, mas (como ele próprio se descreve em Don Juan do Conhecimento) simplesmente "o espírito, o formigueiro e o prazer da caça e as intrigas do conhecimento" - até às suas mais altas e afastadas estrelas -, até que nada lhe resta para perseguir o que há no conhecimento de infinitamente pernicioso, como o bêbado que, no fim, acaba por beber absinto e álcool, que são ácidos corrosivos.
Porque, no conceito de Nietzsche, Don Juan não é um epicurista nem um grande fruidor: para isso falta a este aristocrata, a este gentil-homem de nervos sensíveis, o pesado prazer da digestão, o bem-estar da saciedade, a satisfação e a fanfarronada do triunfo. O caçador de mulheres é (como o Nimrod do espírito) o eterno perseguidor do seu próprio instinto; o sedutor sem escrúpulos é seduzido, por sua vez, pela sua insaciável curiosidade; é um tentador que é tentado continuamente pela tentação de tentar; assim, Nietzsche pergunta simplesmente pelo prazer de perguntar, pelo inextinguível prazer psicológico. Para Don Juan, o segredo está em todas e em nenhuma das mulheres: em cada uma delas, por uma noite; em nenhuma, para sempre. É exactamente assim que, para o psicólogo, a verdade só existe em todos os problemas por um momento e não há onde exista para sempre.
Eis porque a vida intelectual de Nietzsche não tem nunca, pois, um ponto de repouso nem uma superfície lisa como a de um espelho; é completamente parecida com uma torrente, sempre variável, cheia de rápidos ziguezagueantes, de meandros e de correntes violentas. Nos outros filósofos alemães, a existência decorre com uma tranquilidade épica; a sua filosofia consiste em fiar comodamente e, de certa maneira, até mecanicamente, o fio que antes estava enredado; eles filosofam sentados, nos seus cadeirões, com os membros comodamente descansados, e, durante o acto de pensar, apenas se nota uma maior afluência de sangue no corpo ou algo febril no seu destino. Kant nunca dá a sensação de um espírito agarrado pelos seus pensamentos como por um vampiro e esporeado, perpetuamente, pela necessidade de criar e de elaborar ideias; e, no meu modo de ver, a vida de Schopenhauer, a partir dos seus trinta anos, desde que ele terminou O Mundo como Vontade e Representação, oferece o carácter de um homem já aposentado com todas as pequenas amarguras de uma carreira que se deteve. Todos avançam com passo firme, seguro e medido, por um caminho que eles próprios escolheram, enquanto a vida de Nietzsche (como as aventuras de Don Juan) toma uma forma altamente dramática; é uma cadeia de episódios perigosos e surpreendentes, uma tragédia sem repouso, cheia de incessantes emoções e de peripécias, qual delas a mais vibrante; e tudo acaba numa inevitável queda num abismo infinito. E é precisamente esta ausência de repouso na pesquisa incessante de pensar, este impulso demoníaco de seguir em frente, o que dá a essa existência única uma força trágica, inaudita e a torna tão sedutora como obra de arte (porque nada há nela de carácter profissional e burguês)».
Stefan Zweig («Nietzsche: O Combate com o Demónio»).
«Despreocupados, mentirosos, violentos, assim nos quer a sabedoria. É mulher e não gosta senão de guerreiros.»
Assim Falava Zaratustra
Frederico Nietzsche: a marcha progressiva para si próprio
Os homens de ordem são habitualmente
cegos para descobrir o que é original, mas têm um instinto infalível para
descobrir o que lhes é hostil; muito antes de Nietzsche se apresentar como
amoralista e incendiário dos seus refúgios morais, sentiram nele um inimigo;
esses homens pressentiram muito mais do que ele próprio podia saber de si.
Era-lhes molesto (ninguém praticou com tanta perícia the gentle art of making enemies), como indivíduo duvidoso, um outsider de todas as categorias, uma
mescla de filósofo, filólogo, revolucionário, artista, literato e músico; desde
o primeiro momento, os especialistas odiaram-no porque ultrapassava os seus
limites. Logo que Nietzsche, como filólogo, publicou a sua primeira obra,
Wilamowitz, o mestre da filologia (permaneceu durante meio século como mestre,
enquanto o seu adversário se elevava até à imortalidade), fustiga perante todos
os colegas aquele que ousou ultrapassar os limites profissionais; os
wagnerianos desconfiam (e muito justamente!) do apaixonado panegirista, e os
filósofos, dos seus trabalhos sobre o conhecimento: mesmo antes de ter saído da crisálida da filologia, mesmo antes
de lhe terem nascido as asas, Nietzsche tem já contra ele os especialistas.
Somente o génio conhecedor de todas as mudanças, somente Richard Wagner, ama
este espírito que há-de tornar-se seu futuro inimigo. Mas todos os outros
farejam o perigo na sua maneira ousada de ser, de se aperceber das coisas de
longe: adivinham nele aquele que nunca está seguro e que não tem de permanecer
muito tempo fiel às suas convicções; adivinham nele essa liberdade sem freio
que o mais livre dos homens pratica para com tudo e, por conseguinte, consigo
próprio; e mesmo hoje, quando a sua autoridade os intimida e esmaga, os
especialistas queriam voltar a encerrar de novo o «príncipe fora-da-lei» num
sistema, numa doutrina, numa religião ou numa missão. Eles queriam vê-lo
amarrado às convenções, como eles próprios estão, encerrado entre as quatro
paredes de uma concepção do Universo (precisamente o que Nietzsche mais temia)
definitiva, sem qualquer contradição, o absoluto, queriam impor a esse homem
que agora já não pode defender-se e queriam também colocar esse grande nómada
num templo (agora que já conquistou o mundo infinito do espírito), numa casa,
coisa que ele nunca teve e nunca desejou ter.
Mas Nietzsche não pode estar preso a uma
doutrina, nem cravado numa certeza – nunca se pretendeu nestas páginas tirar a
conclusão, à maneira de um mestre-escola, de que desta tragédia do espírito
surgiu uma «teoria do conhecimento», porque nunca este apaixonado por todos os
valores quis sujeitar-se às palavras dos seus lábios, nem a uma convicção do
seu espírito, nem a uma paixão da sua alma e nunca se julgou ligado por elas.
«Um filósofo utiliza e consome opiniões firmes», responde altivamente aos
espíritos sedentários que se vangloriam, orgulhosamente, da sua firmeza de
vontade e das suas persuasões. Cada uma das suas asseverações é algo
provisório; e até o seu próprio «eu», a sua pele, o seu corpo, a sua estrutura
intelectual nunca foram, aos seus olhos, mais do «um asilo para numerosas
almas». Numa altura, chegou a pronunciar a frase mais ousada: «É pernicioso
para o pensador estar ligado a uma única pessoa. Quando alguém se encontrou a si
mesmo, é preciso tentar, de tempos a tempos, perder-se e, depois,
reencontrar-se.» O seu modo de ser constitui nele um modo de transformar-se, um
modo de perder-se para encontrar-se novamente, quer dizer, uma eterna mudança e
nunca um ser rígido e um repouso. Por isso, o único imperativo de vida que se
encontra nos seus escritos é: «Torna-te em quem és.» Goethe disse,
ironicamente, que estava sempre em Iena quando o procuravam em Weimar e a
imagem preferida de Nietzsche, relativa à pele da serpente, encontra-se já cem
anos antes numa carta de Goethe; mas quão contraditórios são o desenvolvimento
reflexivo de Goethe e a mudança eruptiva de Nietzsche! Porque Goethe vai
engradecendo a sua vida à volta de um ponto fixo, do mesmo modo que uma árvore
junta cada ano mais um anel à circunferência do seu tronco interno e
escondido, enquanto se desembaraça da sua couraça exterior, torna-se cada vez
mais firme, mais robusto, mais alto e, portanto, o seu olhar alcança cada vez
mais longe. O desenvolvimento de Goethe efectua-se pacientemente, graças a uma
força que cresce progressivamente, assim como aumenta a sua resistência, a
defesa do seu próprio «eu», que se robustece à medida do seu crescimento,
enquanto o de Nietzsche efectua-se sempre violentamente, graças à veemência
impetuosa da vontade. Goethe cresce sem sacrificar nem um ápice de si mesmo;
não necessita negar-se para se elevar; pelo contrário, Nietzsche, o homem das
metamorfoses, está sempre obrigado a destruir-se para se reconstruir depois.
Todas as suas conquistas e novas descobertas intelectuais provêm de feridas do
seu próprio «eu» e de crenças perdidas, quer dizer, de uma decomposição; para
subir mais alto, necessita sempre de deitar fora pedaços de si (enquanto Goethe
nada sacrifica e limita-se a fazer mudanças químicas e a destilar os seus
elementos). Nietzsche, para alcançar um olhar mais livre e amplo, tem sempre de
passar por caminhos de dor e de destruição: «A ruptura de qualquer laço
individual é dura, mas nasce-me uma asa em cada sítio onde antes tinha um
laço.» Como natureza essencialmente demoníaca, só conhece a mais brutal das
transformações, a que se opera por combustão: assim como a Fénix há-de passar
todo o seu corpo pelo fogo destruidor para renascer das suas próprias cinzas,
com um novo canto, uma nova plumagem, novas asas, assim, para Nietzsche, os
homens espirituais devem passar pelo fogo da contradição devoradora para que o
espírito se eleve sem cessar, renovado e livre de todas as antigas opiniões.
Nada fica de outrora na sua visão do Universo, nas suas alterações, daí que as suas novas fases não deslizem uma após outra, doce e fraternalmente, mas hostilmente. Ele está sempre no caminho de Damasco (como o exige um dia Hölderlin de si mesmo). Não se trata de uma fé que muda de crença ou de sentimentos, mas de uma infinidade de crenças, pois cada novo elemento espiritual penetra nele não só no seu espírito, mas até nas suas entranhas: os conhecimentos morais ou intelectuais transformam-se nele quimicamente, modificando o curso do seu sangue, do seu sentimento e dos seus pensamentos. À maneira de um jogador insensato, Nietzsche (assim como Hölderlin o exige, um dia, de si próprio) expõe «toda a sua alma à potência destrutiva da realidade» e, desde o princípio, as impressões que recebe parecem erupções vulcânicas. Na sua juventude de estudante em Leipzig, leu O Mundo como Vontade e Representação, de Schopenhauer, e isso impede-o de dormir durante dez dias; toda a sua alma, todo o seu ser é alvoraçado como por um ciclone; a fé sobre a qual se apoia derruba-se com estrépito e, quando o seu espírito deslumbrado sai, pouco a pouco, dessa vertigem e retoma o seu sangue-frio, encontra-se frente a uma filosofia totalmente nova, um novo conceito de vida completamente distinto. Do mesmo modo, a amizade com Richard Wagner torna-se a fonte de um amor apaixonado que amplia ao infinito a envergadura da sua sensibilidade.
Quando parte de Triebschen para
Basileia, a sua vida toma outro rumo; da noite para o dia, morreu nele o
filólogo e a perspectiva do passado, quer dizer, do histórico, deu lugar à do
futuro. E precisamente porque toda a sua alma está cheia deste amor abrasador e
espiritual é que a ruptura com Wagner abre nele uma ferida ardente e quase
mortal, que continuamente supura e que já não há-de fechar-se nem cicatrizar
nunca completamente. Sempre, como num terramoto, colapsa o edifício das suas
crenças arreigadas pelas sacudidelas espirituais e Nietzsche, em cada caso,
vê-se obrigado a reconstruir-se de cima a baixo. Nele, nada se desenrola
suavemente, silenciosamente, organicamente, como crescem as coisas na Natureza;
nunca a sua individualidade se desenvolve por um trabalho oculto, crescente,
numa superfície mais larga. Não: tudo, até os seus próprios pensamentos, brotam
«com a violência de um raio»; é necessário sempre que seja destruído o seu
mundo interior para que das suas ruínas surja um novo cosmos. Essa força
explosiva das ideias no cérebro de Nietzsche não tem comparação: «Quero ver-me
livre», disse, «dessa força explosiva dos meus sentimentos que se desenrola nas
minhas obras; muitas vezes me vem ao pensamento que um dia vou morrer,
repentinamente, por esse motivo.» E, a verdade é que há algo que morre nele, de
repente, nesses processos de espiritual renovação; sempre que algo se desfaz no
seu tecido interno, há qualquer coisa que sangra como se uma faca penetrasse
nas suas entranhas para cortar todos os vínculos, todas as relações anteriores.
O seu refúgio espiritual é queimado e carbonizado, até ficar desconhecido pelo
jacto da chama de uma nova inspiração. As transformações de Nietzsche são
acompanhadas de cãibras e de convulsões de morte e de parto. Nunca um ser humano
se desenvolveu no meio de tormentos tão terríveis. Eis porque nenhum homem se
feriu tão profundamente na busca de si mesmo. Eis porque todos os seus livros
não são – se falarmos com propriedade – senão informações clínicas destas
operações, na exposição de métodos das suas vivissecções: manuais de partos
espirituais. São a história destas transformações, das suas gravidezes, dos
seus partos, das suas mortes, das suas ressurreições; uma história de
descomunais guerras sustentadas sem piedade contra o seu próprio «eu»; uma
história de castigos e de execuções e, no seu conjunto, uma biografia de todos
esses homens diferentes e que Nietzsche foi sendo no decurso dos seus vinte anos
de vida intelectual.
O que há de característico e sem
analogia nestas transformações de Nietzsche é que a linha da sua vida
representa, de certo modo, um movimento retrógrado.
Tomemos Goethe (e é sempre Goethe com quem nos encontramos, ele que é o mais
simbólico dos fenómenos humanos) como o protótipo de uma natureza orgânica que,
de modo misterioso, marcha em uníssono com o ritmo do Universo; vemos que as
formas do seu desenvolvimento são um reflexo das diversas idades da sua vida.
Goethe é, na sua juventude, fogosamente exuberante; quando homem, é sensato na
sua actividade; na velhice, o seu olhar é todo luz; o ritmo do seu pensamento
corresponde organicamente à temperatura do seu sangue. O caos é o seu princípio
(como acontece sempre nos jovens), a ordem, o seu final (como sempre acontece
com os anciãos); a ordem está no final da sua carreira; ali torna-se
conservador, quando antes foi revolucionário; ali se encontra convertido num
homem de ciência, quando antes foi ocultista; ali é um administrador de si
próprio, quando antes era pródigo. Nietzsche segue o caminho oposto de Goethe:
enquanto este aspira a laços que dêem firmeza ao seu ser, Nietzsche busca uma
desagregação cada vez mais apaixonada; como em todos os caracteres demoníacos,
cada vez há mais fogo na sua paixão, mais impaciência, cada vez é mais
tempestuoso, mais revolucionário, mais caótico, à medida que avança na idade.
Daí o seu aspecto exterior estar em completa oposição à evolução normal.
Nietzsche começa por ser velho. Aos
vinte e quatro anos, enquanto os seus companheiros se entregam a brincadeiras
estudantis e celebram os seus ritos báquicos, quando esvaziam intermináveis
canecas de cerveja e desfilam a «passo de ganso» nas ruas, Nietzsche é já
professor titular da cátedra de Filosofia na célebre Universidade de Basileia.
Os seus verdadeiros amigos são, então, homens de cinquenta a sessenta anos,
grandes eruditos grisalhos, como Jacob Burckhardt e Ritschl, e o seu íntimo
amigo é o mais sério artista do seu tempo: Richard Wagner. Uma severidade
implacável, uma objectividade inflexível fazem-no passar sempre por um sábio,
nunca por um artista, e todos os seus livros têm um ar didáctico mais próprio
de um homem de experiência do que de um principiante. Com todas as forças,
procura abafar as suas inclinações poéticas, o élan da música profissional; como um grave professor universitário,
fossilizado pelos anos, está curvado sobre os seus manuscritos; elabora índices
e apraz-lhe rever poeirentos maços de velhos papéis.
O olhar de Nietzsche, naquele momento,
está inteiramente voltado para o passado; para a história, para o que está
morto, para o que foi; os prazeres da sua vida estão guardados entre os muros
de uma mania de velho; a sua alegria e o seu ardor ocultam-se por trás da
dignidade do professor; o seu olhar está sempre fixo nos livros ou em problemas
de erudição.
Aos vinte e sete anos, A Origem da Tragédia abre um primeiro fosso secreto no presente, mas o autor leva a sério a máscara do filólogo e só ocultamente há já nessa obra um brilho de coisas futuras, uma chispa de amor pelo presente e uma paixão pela arte. Aos trinta anos, na idade em que o homem normal começa a converter-se num tranquilo burguês, idade em que Goethe chega a ser conselheiro de Estado, idade em que Kant e Schiller são já professores, nessa idade, Nietzsche abandona as suas funções oficiais e afasta-se da sua cátedra com um suspiro de alívio: esse é o seu primeiro passo para si mesmo, o seu primeiro empurrão para o mundo, a sua primeira mudança íntima, e essa primeira ruptura constitui o princípio do artista. O verdadeiro Nietzsche começa com a sua entrada – a de Nietzsche trágico, desactualizado, com o seu olhar dirigido sempre para o futuro cheio de nostalgia pelo homem que há-de vir. Entretanto, brotam os seus impulsos de transformação, surgem mudanças radicais no mais íntimo do seu ser, passa bruscamente da filologia para a música, da gravidade ao êxtase, da paciência positiva para a dança. Aos trinta e seis anos, Nietzsche é en dehors, é já livre do peso do passado e da sua própria ciência, livre também do presente e companheiro só do homem futuro, do homem de mais além. Por isso, em vez de estabilizar a sua vida com os anos, como acontece com o artista normal, em vez de se enraizar, de se tornar mais positivo, livra-se apaixonadamente de todos os vínculos, de todas as relações. O ritmo desse rejuvenescimento é verdadeiramente assombroso e sem igual. Aos quarenta anos, a linguagem de Nietzsche, os seus pensamentos, o seu ser, têm mais glóbulos vermelhos, mais viço, mais colorido, mais temeridade, mais paixão e mais música do que aos dezassete anos e o solitário de Sils-Maria anda com um passo mais ligeiro, mais alado, mais subtil do que o antigo professor de vinte e quatro anos, prematuramente velho.
Por isso, em Nietzsche, intensifica-se o sentimento da vida em vez de se apaziguar, as suas metamorfoses tornam-se cada vez mais rápidas, ligeiras, múltiplas, convulsivas, malignas, patológicas; já não encontra em nenhuma parte um ponto de repouso para o seu espírito inquieto. Se pára, a sua pele «seca e rompe-se»; por último, a sua própria vida é incapaz de seguir essas transformações, essas renovações que se realizam com um ritmo cinematográfico, no qual as imagens estremecem continuamente. Precisamente aqueles que acreditam conhecê-lo melhor, os amigos da sua juventude, que já estão envolvidos na ciência, nas suas crenças ou num sistema, estão cada vez mais surpreendidos ao vê-lo tão diferente, sempre que têm um novo encontro com ele. Com sobressalto descobrem, na sua figura intelectual rejuvenescida, novos rasgos que em nada se parecem com os de outrora. E o próprio Nietzsche, sempre em via de metamorfose, crê encontrar-se perante um espectro quando ouve que o chamam pelo seu antigo título, quando ouve que o «confundem» com o «professor Friedrich Nietzsche», o filólogo, com aquele homem envelhecido pela erudição – apenas pode recordá-lo penosamente do que ele foi outrora, mais de vinte anos antes. Pode ser que ninguém tenha afastado para longe de si a sua vida passada como o fez Nietzsche, distanciando do seu ser até os vestígios dos seus sentimentos de outrora; agora, vem o terrível isolamento, a terrível solidão dos seus últimos anos, porque ele rompeu com todos os laços de «o que foi» e o seu ritmo actual não lhe permite criar novos vínculos que o unam a coisas novas. Limita-se a passar, impetuoso, ao lado dos homens e de todos os fenómenos e, quanto mais se aproxima de si, tanto mais rapidamente foge de si. As modificações do seu ser são cada vez mais radicais; cada vez mais bruscos os seus saltos desde o «sim» ao «não», cada vez mais fortes as suas sacudidelas eléctricas. Devora-se a si próprio num incêndio interior e o seu caminho é um caminho de chamas.
Mas, à medida que se aceleram essas
transformações, ganham também em violência e em dor. As primeiras vitórias de
Nietzsche sobre si mesmo consistem em despojar-se de algumas crenças de jovem,
quer dizer, das crenças impostas ou formadas na escola; estas crenças ficam
atrás de si, como uma serpente deixa a pele seca e inútil. Quanto mais profundo
se torna o seu sentido da psicologia, mais profundamente há-de escavar com a
sua faca nas camadas mais íntimas do seu ser; quanto mais subcutâneas, mais
nervosas, mais suculentas são as suas convicções, tanto mais vivas são, tanto
mais formadas no seu plasma, tanto mais violenta há-de ser a sua extirpação
tanto mais cruenta. É um «trabalho de verdugo de si mesmo», um trabalho de
Shylock, um golpe na sua carne palpitante. Finalmente, essa antivivissecção
alcança as zonas mais íntimas do sentimento e as operações tornam-se mais
dolorosas e mais perigosas. Sobretudo a amputação do complexo wagneriano, é uma
intervenção cirúrgica extremamente delicada e quase mortal, porque se realiza
no mais profundo do seu sentimento, quase no próprio coração; é quase um
suicídio e, na sua violência, no seu ritmo, tem algo de assassinato masoquista,
pois nos seus abraços amorosos, nos segundos de íntima união, o seu instinto
selvagem da verdade viola, estrangula o que lhe é mais querido; mas quanta mais
violência, melhor; quanto mais cruenta é a vitória sobre si mesmo, tanto mais
Nietzsche goza voluptuosamente a sua ambição na prova a que se submete a sua
força de vontade.
Como um implacável inquisidor de si próprio, sonda, impiedosamente, cada uma das suas mais íntimas convicções às perguntas da sua consciência e, com uma alegria dolorosa, contempla os autos de fé das suas ideias heréticas. Pouco a pouco, o espírito de destruição de si mesmo que habita em Nietzsche converte-se numa paixão intelectual. «Sinto o prazer de destruir num grau idêntico à minha força destruidora.» Da simples transformação de si mesmo nasce o desejo de se contradizer e de ser o seu próprio adversário. Há passagens dos seus livros que se contradizem violentamente; a cada «sim», esse prosélito das suas convicções sabe colocar um correspondente «não» e, a cada «não», não falta nunca um «sim»; estende-se até ao infinito para poder espicaçar os pólos das suas convicções a dois pontos opostos desse infinito e poder sentir, assim, a tensão eléctrica que há entre esses dois pólos opostos, tensão que é nele a verdadeira vida intelectual. Fugir sempre, conseguir sempre (a sua «alma foge de si própria e trata de encontrar-se de novo num círculo mais vasto»). Isso acaba por conduzi-lo a uma excitabilidade extrema e esse exagero chega a ser-lhe fatal. Porque, precisamente, a tensão do seu espírito rompe-se: o núcleo de fogo, as forças primitivas e demoníacas explodem, e essa força elementar destrói, com um só choque vulcânico, a série grandiosa das figuras que o seu espírito de criador plástico tinha extraído do seu próprio sangue e da sua própria vida, na sua perseguição do infinito.
(In Stefan Zweig, Nietzsche: O Combate com o Demónio, Guerra e Paz, 2022, pp. 67-77).
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