domingo, 23 de outubro de 2022

Da necessidade metafísica

Escrito por Artur Schopenhauer


«A FILOSOFIA é aquilo que seus fundadores quiseram, não aquilo que seus sucessores fizeram dela. Só em Sócrates, Platão e Aristóteles você pode obter uma imagem veraz do que é filosofia.

(...) Não é isso o que lhe dirão os professores, mas eles mentem ou não sabem do que falam...».

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).


«(...) não têm faltado pessoas que se esforcem por tirar a sua subsistência desta necessidade metafísica e a explorem quanto podem: em todos os povos se encontram personagens que fazem dela um monopólio e a consolidam: são os sacerdotes. Mas, para assegurarem completamente o seu tráfico, precisam de alcançar o direito de insinuar cedo aos homens os seus dogmas metafísicos, antes que a reflexão saia das suas trevas, isto é, na primeira infância, porque então todo o dogma, uma vez enraizado, perdura, qualquer que seja a sua insânia. Se os padres tivessem que esperar que o juízo amadurecesse para realizarem a sua tarefa, veriam desmoronar-se todos os seus privilégios.

Uma segunda categoria de indivíduos, embora não menos numerosa, que tira a sua subsistência desta necessidade metafísica da humanidade, é a dos que vivem da filosofia. Entre os gregos chamavam-lhes sofistas; e, entre os modernos, professores de Filosofia. Aristóteles inclui, resolutamente, Aristipo entre os sofistas e Diógenes Laércio dá-nos a explicação disso: é que ele foi o primeiro, da escola socrática, que fez pagar as suas lições. Ele próprio quis pagar a Sócrates, que lhe devolveu o presente.

Entre os modernos – ao menos em geral e salvo raras excepções – os que vivem da filosofia são não só muito diferentes dos que vivem para ela, mas também, muitas vezes, seus adversários, seus inimigos irreconciliáveis, porque todo o estudo, pura e profundamente filosófico, projectaria demasiada sombra sobre os seus trabalhos e não se subordinaria às vistas e regulamentações da confraria. Por isso em todos os tempos ela se tem esforçado por abafar esses estudos, e, conforme a época e as circunstâncias, tem empregado habitualmente contra eles, quer o silêncio, quer a negação, a difamação, as invectivas, as calúnias, as denúncias e as perseguições. É assim que se têm visto grandes génios arrastarem-se penosamente pela vida, desconhecidos, e sem glória, até que por fim, depois da morte, o mundo os fica conhecendo e aos seus inimigos. Todavia, estes atingiram o seu objectivo, impedindo-os de se revelarem, e viveram da filosofia com suas mulheres e seus filhos, ao passo que o grande homem desconhecido vivia para ela. Mas, logo que morre, produz-se uma reviravolta completa: a nova geração de professores de Filosofia faz-se herdeira dos seus trabalhos, talha neles uma doutrina à sua medida e põe-se a viver dela. Se Kant pôde viver ao mesmo tempo para e da filosofia, foi devido a uma rara circunstância que só se produziu uma vez depois dos Antoninos e de Juliano. Apenas sob tais auspícios poderia ter aparecido a Crítica da Razão Pura.

Mas, mal o rei morreu, vemos logo Kant tranzido de pavor, porque pertencia à confraria. Modifica a sua obra-prima, na 2.ª edição, mutila-a, estraga-a, e, afinal de contas, está em riscos de perder o lugar, a ponto de Campe o convidar a vir para sua casa, em Brunsvique, para ali viver como em família.

Em geral, a filosofia das universidades é esgrima em frente de um espelho; no fundo, o seu verdadeiro fim é dar aos estudantes opiniões ao sabor do ministro que distribui as cadeiras. Nada melhor, no ponto de vista do homem de Estado; mas a consequência é que tal filosofia é, por assim dizer, nervis alienis, mobile lignum; não poderia considerar-se como séria: é uma filosofia para rir.

É certo que esta vigilância ou esta direcção se limitam à filosofia de escola e não se estendem à verdadeira, à filosofia séria. Porque, se há alguma coisa de desejável no mundo - e de tão desejável que até a multidão grosseira e estúpida, nos seus momentos lúcidos, a aprecia mais do que o ouro e a prata, – é ver tombar um raio de luz na obscuridade da nossa existência; é encontrar alguma solução para o misterioso enigma da nossa vida, em que só vemos miséria e vaidade. E, contudo, este benefício seria impossível se alguém, admitindo que isso fosse viável, impusesse determinadas soluções ao problema».

Artur Schopenhauer («Da Necessidade Metafísica»).


«(...) a obra, “O mundo como Vontade e como Representação”, publicada em Lípsia, em 1818, (...) contra a expectativa do autor, que nela tinha posto o melhor do seu talento, não obteve o menor êxito. A maior parte da edição foi vendida, dezasseis anos mais tarde, como papel velho. Schopenhauer sentiu amargamente este inêxito e, para se reconfortar, empreendeu uma viagem a Itália. Mais tarde, aludindo certamente a este facto, escreve ele: “Quanto mais um homem pertence à posteridade – ou, por outras palavras, à humanidade em geral – tanto mais incompreendido ele é dos seus contemporâneos, porque, desde o momento em que o seu trabalho lhes não é destinado como contemporâneos, mas apenas porque fazem parte da humanidade, nada há nas suas produções com a cor local, familiar, que poderia seduzi-los.”».

Prefácio de Lobo Vilela (in Artur Schopenhauer, «Da Necessidade Metafísica»).





«De Sócrates até hoje, a filosofia desenvolveu uma infinidade de técnicas para furar o balão da conversa estereotipada e trazer os dialogantes de volta à realidade. Zu den Sachen selbst – “ir às coisas mesmas” –, a divisa do grande Edmund Husserl, permanece a mensagem mais urgente da filosofia depois de vinte e quatro séculos. Ninguém mais que o próprio Husserl esteve consciente dos obstáculos lingüísticos e psicológicos que se opunham à realização do seu apelo. Todo o vocabulário técnico da filosofia – e o de Husserl é dos mais pesados – não se destina senão a abrir um caminho de volta desde as ilusões da classe letrada até à experiência efetiva. A conquista desse vocabulário pode ser ela própria uma dificuldade temível, mas decerto não tão temível quanto os riscos de ficar discutindo palavras vazias enquanto o mundo desaba à nossa volta. Ao incorporar-se à cultura ambiente como atividade academicamente respeitável, a própria filosofia tende a perder sua força originária de atividade esclarecedora e a tornar-se mais uma pedra no muro de artificialismos que se ergue entre pensamento e realidade.»

Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).


«As principais críticas de Aristóteles a todas as doutrinas da imobilidade encontram-se agrupadas nos livros da Metafísica, e com razão vemos incluída nessa miscelânea literária uma das mais belas obras de pura teologia. Só Deus é verdadeiramente imóvel, segundo a doutrina de Aristóteles. A Física é um desenvolvido tratado do movimento e do repouso, da quietação e da inquietação. Erro lamentável foi sempre o de confundir com a física a ciência da natureza, limitada esta aos entes que vivem sob as leis do nascer e do morrer, quer dizer, ao tempo. Erram os tradutores quando escrevem naturalmente por fisicamente, como na primeira frase do primeiro livro da Metafísica. Tudo está em movimento; imóvel, só Deus; impiedosas, efémeras ou falsas serão quaisquer representações da imobilidade.»

Álvaro Ribeiro («Estudos Gerais»).


«A partir do escrito Introdução à metafísica de 1935, o termo metafísica assume assim em Heidegger uma conotação decididamente negativa: metafísica é todo o pensamento ocidental que não soube manter-se ao nível da transcendência constitutiva do Dasein, ao colocar o ser no mesmo plano do ente. Por outras palavras, o conhecimento do ente pressupõe no estar-aí uma constitutiva compreensão prévia do ser (o projecto), e isto é o que se entende por transcendência do estar-aí a respeito do ente; essa transcendência reflecte-se no facto de, desde os começos da história do pensamento ocidental, a filosofia formular o problema do Ser do ente, isto é, daquilo que constitui o ente como tal (a sua “essentidade”; basta pensar na problemática aristotélica da ousía e, antes, em Parménides e em Platão; precisamente Ser e Tempo tem como epígrafe uma passagem de O Sofista de Platão [Platão, O Sofista, 244a: “Com efeito, é claro que há pouco tempo estais familiarizados com aquilo que entendeis quando empregais a expressão ‘ente’; também nós pensávamos antes que a compreendíamos, mas agora caímos na perplexidade”]; mas, ao levantar-se este problema, o pensamento tende imediatamente a resolvê-lo de uma maneira errada, a conceber o ser como uma característica comum de todos os entes, como uma espécie de conceito exageradamente geral e abstracto (daqui o desvanecimento do próprio conceito de ser e, por exemplo, a caída do ser no nada da Lógica de Hegel) que se obtém devido à observação daquilo que todos os entes têm de comum. Mas os entes são concebidos – e já se verá porque – como simples presenças; de maneira que também o ser se concebe em toda a história da filosofia ocidental como simples presença; isto é, de acordo com o modelo do ente, que, por sua vez, é entendido de uma maneira, conforme se viu em Ser e tempo, simplesmente “derivada”. Vista assim, a metafísica coincide com a compreensão (ou não compreensão) do ser que tem a existência inautêntica; esta conexão de metafísica com existência inautêntica está explicitamente indicada na Introdução à metafísica, ainda que esta obra expresse uma tese já implícita em Ser e tempo e nos escritos imediatamente posteriores; o termo metafísica chega a converter-se em sinónimo de esquecimento do ser, Seinsvergessenheit, um termo que no posterior desenvolvimento do pensamento heideggeriano adquire uma posição central.»

Gianni Vattimo («Introdução a Heidegger»).




«A observação é de Nietzsche: “(...) até aqui ainda em nenhuma filosofia se tratou da verdade”. Qualquer que seja o sentido que se atribua à observação, e embora se lhe possa contrapor que nenhuma filosofia tratou nem pôde tratar de outra coisa, ela fica aí.

Fugazmente nos fala Platão da “verdade em si”. Fugazmente nos diz Hegel que “a verdade é o todo”. Terá suposto, um, que o pensamento é sempre pensamento da verdade, tal como ninguém existe que não reconheça que sem a verdade não há pensamento possível? Terá suposto, o outro, que a todo o real, ao múltiplo real, até o mais imediato e dado naturalmente, não é possível entendê-lo se alheio à verdade? E nesse pressuposto ambos descansaram apesar de um deles ter recusado valor filosófico a toda a suposição?

Logo, aliás, ambos tornaram suspeito o que fugazmente disseram. Da verdade que seria o todo, depressa Hegel recua numa daquelas impressivas expressões de que possuía o segredo, a de que “a verdade não tem pressa”. Se é o todo não pode ser vagarosa nem apressada e a sua presença está dispersa sem limites, tornando-se indeterminável.

Por sua vez, ao falar da “verdade em si”, Platão utiliza a expressão com que fala das ideias. Em si significa realidade plena e independente que distingue as ideias do que, no mundo sensível, delas apenas participa e depende. Que distingue, por exemplo, o belo do que é belo, o movimento do que se move. Ora a verdade não é uma ideia porque, a haver dela participação, também as ideias participam, o que contradiz a realidade.

Um filósofo mais recente, e o mais divulgado na filosofia contemporânea que se ensina nas escolas, o alemão M. Heidegger, concebe romanticamente a verdade segundo a imagem da “flor azul” dada pelo poeta Novalis no romance Heinrich von Ofterdingen. Seria a verdade descobrimento ou desvelamento, bruma que se rompe, véu que se afasta, não o encoberto, não o velado. Estamos, pois, longe da verdade em si, de Platão, e da verdade que é o todo, de Hegel, um e outro filósofo muito suspeitos ao pensador contemporâneo. Firma ele a sua concepção, atribuindo-a aos mitólogos pré-socráticos, na etimologia da palavra grega aleteia, que traduzimos por verdade. Aleteia significaria desvelar ou descobrir. O que desvela e descobre, diz Heidegger, é o ser, o oculto ser.

Na linha do pensamento alemão, que se desvia do idealismo que culminou em Hegel, linha que encontra os seus mais notáveis representantes em Schopenhauer e Nietzsche, esta concepção integra-se numa tão absorvente filosofia do ser que os mesmos orientais viram nela “um traço de união” entre o Oriente e o Ocidente, entre o orientalismo e a filosofia. [Entrevista dada por Heidegger ao L’Express, n.º 954, de 22-26 de Outubro de 1969]. Compreende-se portanto que, ao mesmo tempo que atribui à verdade uma essência própria, Heidegger a veja como uma ilusão que, como o mundo real para os orientais, vela e encobre o ser.




Teremos de concluir que a filosofia cessa onde o pensamento se depara com a verdade? Teremos de concluir que ao pensamento está vedado o saber da verdade?

Esta interrogação está implícita em toda a filosofia, até a mais confiante nos poderes ilimitados do pensamento e do espírito. Isso explica que a filosofia não deixe de se dizer filosofia, isto é, amor do saber e não o saber, quando não há um sem o outro. Que ela seja o que José Marinho disse da razão, “o pequeno pensamento com que pensamos” e, não transpondo o limite dos múltiplos que compõem o todo, não ouse apresentar-se como metafísica.

Pouca coisa será, então, a filosofia, justificando que, na sequência de uma teologia que a tinha por instrumento e de uma mais remota mitologia do mundo sensível anterior ao seu aparecimento, modernas arrogâncias das ciências de certas regiões do real ou do múltiplo a tenham dado por acabada e interpretem a sua anterior, pertinaz existência como abusiva do menor saber de Deus, que dizem morto, e da menor ciência do mundo, que dizem exclusiva.

É certo que os autênticos pensadores nunca, com firmes razões, deixaram de confiar que o pensamento filosófico, alcance ou não o saber dela, é sempre pensamento da verdade. E que sempre dele resulte algum saber, sob pena de não haver saber algum, nenhuma ciência, pois não há saber que não seja obtido pelo pensamento. Todavia, Hegel, talvez prevendo a negação da filosofia que o kantismo, para defender a ciência, preparara e em breve se iria declarar, não hesitou em sistematizar o seu pensamento filosófico como saber, já não como amor do saber, e em apresentá-lo e defendê-lo como uma metafísica. E talvez prevendo também que a negação viesse da teologia segura da sua linhagem, lembrou aos teólogos que quando Deus está morto – e sempre Deus vive para morrer e morre para reviver – a filosofia é “a sexta-feira santa da paixão especulativa”. Da morte de Deus guarda a religião, muito especialmente o cristianismo, a imagem e o símbolo, mas da “paixão especulativa” que preenche a morte de Deus é a teoria da verdade que, como veremos, tem o seguro pensamento.

Quanto ao saber da verdade, não o pode a filosofia alcançar enquanto a verdade não tem o saber de si. O ponto de partida da teoria da verdade é isso mesmo: não ter ela o saber de si. E aí reside também, já não a originalidade mas a mesma origem não apenas do pensamento mas de todo o real. Aí a verdade se impõe, já não como a veracidade ou o verdadeiro, mas como o que Platão imperfeitamente designou por “verdade em si”. Imperfeitamente, dizemos, porque a verdade não tem o saber de si e nada é em si sem o saber de si.»

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).





«Desviados da linha medieval, erraram os escolásticos modernos quando aplicaram à Física de Aristóteles o canon de escrituras sagradas, lendo como texto perene os livros que haviam resultado de sérios processos de observação e experimentação naturais. A obra lógica, ética e metafísica de Aristóteles permaneceu válida nas suas linhas essenciais e resistiu a todas as críticas impertinentes; assim o entenderam os componentes do escol nos povos peninsulares; mas seja-nos permitido afirmar que a interpretação portuguesa da filosofia de Aristóteles é superior à interpretação alemã. Lida directamente, e não através de comentadores que adaptaram às circunstâncias contingentes e às oportunidades pretéritas, a obra de Aristóteles refulge no brilho do seu pensamento essencial, e continua a ser saudada por quantos actualizam a sua cultura.»

Álvaro Ribeiro («A Literatura de José Régio»).



Da necessidade metafísica


A física (no sentido mais lato do termo) também se ocupa em explicar os fenómenos do mundo. Mas a própria natureza das suas explicações é a causa da sua insuficiência. A física não poderia viver duma vida independente. Por mais desdenhosa que seja a sua atitude em face da metafísica, tem necessidade do seu apoio. Ela própria explica os fenómenos por qualquer coisa de mais desconhecido ainda do que eles, – por leis naturais, de que a força vital é um espécime.

Sem dúvida, o estado actual de todas as coisas do mundo ou na natureza deve poder explicar-se por causas puramente físicas. Mas uma tal explicação, ainda que se conseguisse, seria necessariamente contaminada por duas imperfeições essenciais e, por assim dizer, por duas taras que fazem que todos os fenómenos fisicamente explicados continuem, na realidade, inexplicados. Também Aquiles era vulnerável no calcanhar; e o Diabo ainda se representa com patas de cavalo.

Em primeiro lugar, nunca poderia atingir-se o começo desta série de causas e de efeitos, isto é, de modificações ligadas entre si: este começo recuaria sem cessar até o infinito, como os limites do mundo no espaço e no tempo.

Em segundo lugar, o conjunto das causas efectivas pelas quais se pretende explicar tudo assenta sobre qualquer coisa de absolutamente inexplicável. Quero referir-me às qualidades primordiais dos objectos e às forças naturais que neles se manifestam, forças que permitem às qualidades agir de um modo determinado. Tais são: a gravidade, a solidez, a força de impulsão, a elasticidade, o calor, a electricidade, as energias químicas, etc. Toda a explicação física dá estas forças como resíduo, tal como uma equação algébrica em que todos os outros termos fossem resolvidos, mas em que subsistisse uma quantidade desconhecida e indeterminável. Segue-se daqui que nem o mais ínfimo fragmento de argila deixa de ser composto por qualidades tão inexplicáveis como as outras.

Estas duas irremovíveis imperfeições de toda a explicação física, quer dizer, causal, mostram que tal explicação não pode deixar de ser relativa e o método das ciências positivas não é o único, o último, o método suficiente, o que conduz a uma solução satisfatória do difícil problema das coisas, à verdadeira inteligibilidade do mundo e da existência, mas que a explicação física, como tal, carece de uma explicação metafísica que lhe dê a chave de todas as suas suposições. Somente resulta daí que o método metafísico deve diferir profundamente do método físico.






O primeiro passo a dar nesta nova via é compenetrarmo-nos nitidamente, e de uma vez para sempre, da diferença, entre física e metafísica. Esta diferença assenta, no essencial, na distinção kantiana do fenómeno e da coisa em si. Kant declarava esta absolutamente inexplicável e por isso não poderia haver, segundo ele, nenhuma metafísica: só é possível, o conhecimento imanente, por consequência a física, e, a par dela, a crítica da razão, nas suas aspirações metafísicas.

Permita-se-me que note, desde já, o ponto de contacto da minha filosofia com a doutrina kantiana e que Kant, na sua bela explicação da coexistência da liberdade e da necessidade (1), demonstra que a mesma acção que, por um lado, é perfeitamente explicável como consequência necessária do carácter do homem, das influências que ele sofreu durante a vida e dos motivos actuais que o solicitam, deve, por outro lado, ser considerada como obra da sua livre vontade. No mesmo sentido, diz no § 53 dos Prolegómenos:

«Sem dúvida, a necessidade natural será inerente a toda a combinação de causas e de efeitos no mundo sensível, mas a liberdade será conferida às causas que não sejam fenómenos (embora sirvam de fundamento a fenómenos). Por consequência a necessidade (literalmente a natureza) e a liberdade podem ser atribuídas, sem contradição, ao mesmo objecto, conforme se considere sob aspectos diferentes, ou como fenómenos ou como coisa em si.»

O que Kant diz do fenómeno do homem e da sua actividade torna-o a minha doutrina extensivo a todos os fenómenos da natureza, dando-lhes por fundamento comum a Vontade como coisa em si. O que justifica, em primeiro lugar, esta maneira de proceder é a impossibilidade de admitir que o homem seja especificamente distinto (toto genere e radicalmente) de todos os seres e objectos da natureza: não pode haver entre eles senão uma diferença de grau.

Deixo agora esta digressão para voltar às minhas considerações sobre a importância da física para fornecer a explicação última das coisas. Digo pois: sem dúvida, tudo é físico, mas então nada é explicável. Do mesmo modo que o movimento da bola de bilhar que se impele, a função pensante do cérebro deve comportar, em última análise, uma explicação física que a torne tão inteligível como o movimento da bola. Ora, mesmo este movimento, que julgamos compreender tão plenamente, é, no fundo, tão obscuro como o pensamento, porque a última essência da expansão do espaço, da impenetrabilidade, da faculdade de ser movido, da resistência, da elasticidade e do peso, continua a ser, depois de todas as explicações físicas, um mistério como é o pensamento. Somente, como a impossibilidade de explicar este último nos choca à primeira vista, se apressaram a dar um salto da física para a metafísica e a hipostasiar uma substância de natureza inteiramente diferente da das coisas corporais. Transportou-se para o cérebro uma alma.

Se o nosso intelecto não fosse tão embotado que é preciso um fenómeno extraordinariamente surpreendente para o chocar, teríamos explicado a digestão por uma alma estomacal, a vegetação por uma alma vegetativa, as finalidades electivas pela presença de uma alma nas reacções, a queda de uma pedra pela presença de uma alma nessa pedra, porque as propriedades de qualquer corpo inorgânico são tão misteriosas como a vida no ser vivo. Deste modo, a explicação física vem cair sempre numa explicação metafísica que a suprime, quer dizer, que lhe rouba o seu carácter de explicação. Em rigor, poder-se-ia dizer que todas as ciências da natureza se limitam, como a botânica, a reunir e classificar os objectos da mesma espécie.

Uma física que sustentasse que as suas explicações das coisas (em pormenor, por meio de causas e, de um modo geral, por meio de forças) são verdadeiramente suficientes e, por consequência, esgotam a essência do mundo, seria naturalismo propriamente dito. De Léucipo, Demócrito e Epicuro, até o «sistema da natureza», e depois a Lamarck, a Cabanis e ao materialismo requentado dos últimos anos, podemos seguir a tentativa, sempre continuada, de estabelecer uma física sem metafísica, quer dizer, uma doutrina que faça do fenómeno a coisa em si. Mas todas as explicações destes físicos não são mais do que tentativas para dissimular, tanto aos explicadores como ao público, que elas supõem simplesmente a coisa essencial.

Os naturalistas esforçam-se por mostrar que todos os fenómenos, mesmo os fenómenos espirituais, são físicos e nisso têm razão; o seu erro está em não verem que toda a coisa física é igualmente, por outro lado, uma coisa metafísica. Sem dúvida, é difícil reconhecer esta verdade, visto que ela supõe a distinção do fenómeno e da coisa em si. No entanto, Aristóteles, apesar da sua tendência para o empirismo e afastado como estava da hiperfísica platónica, soube, mesmo sem o socorro dessa distinção, manter-se fora desta estreita concepção: «portanto, se não existe alguma outra substância, além daquelas que constituem a natureza, a física será, seguramente, a primeira ciência; porém, se existe alguma substância imóvel, a filosofia será a primeira e, assim, universal, precisamente porque é a primeira; e, como o ser provém do ser, a especulação é própria deste» (2).

Uma física absoluta, tal como a que acabámos de descrever, que não deixaria lugar para nenhuma metafísica, faria da Natura naturata a Natura naturans: seria uma física implantada no trono da metafísica; mas é provável que, neste lugar elevado, ela se comportasse como o estanhador de Holberg depois de ser nomeado burgomestre. É esta ideia obscura duma física absoluta sem metafísica que inspira, no fundo, a censura insípida, e as mais das vezes malévola, de ateísmo; é ela que lhe dá sentido íntimo de verdade e, portanto, de força. Tal física seria, certamente, destruidora de toda a ética, e, se é falso considerar o teísmo inseparável da moralidade, esta não pode, aliás, conceber-se sem uma metafísica qualquer, isto é, sem uma doutrina que reconheça que a ordem da natureza não é a única nem a ordem absoluta das coisas. Por isso, o Credo obrigatório de todos os justos e de todos os bons pode formular-se assim: «Eu creio numa metafísica.»

Neste sentido, é importante e necessário que o homem esteja persuadido da impossibilidade de se agarrar a uma física absoluta, tanto mais que esta, o naturalismo por excelência, é um modo de ver que por si mesmo se impõe continuamente ao homem e só pode ser destruído por uma especulação profunda, especulação que os diversos e as diversas religiões desenvolvem, de acordo com a sua força e enquanto supostos verdadeiros.

O que nos explica como uma concepção radicalmente falsa pode impor-se por si mesma ao homem e deve ser afastada, por meios artificiosos, é que o intelecto não se destina, primitivamente, a instruir-nos sobre a essência das coisas, mas apenas mostrar-nos as relações com a nossa vontade; o intelecto não é mais do que o centro dos motivos. É acidentalmente que nele o mundo se esquematiza de maneira completamente diferente da ordem absolutamente verdadeira e não poderia censurar-se por isso o intelecto, visto que nos mostra apenas o invólucro exterior, não o nódulo das coisas; a censura seria tanto mais injusta quanto é certo que o intelecto encontra em si mesmo o meio de rectificar este erro, estabelecendo a distinção do fenómeno e da coisa em si. Esta distinção, a bem dizer, foi percebida sempre; mas, as mais das vezes, só se teve dela uma noção imperfeita e, por consequência, exprimiu-se insuficientemente, apresentando-se algumas vezes até sob estranhos disfarces. Já os místicos cristãos, por exemplo, recusam ao intelecto (designando-o pelo nome de luz da razão) a faculdade de apreender a verdadeira essência das coisas. Ele é, de certo modo, uma simples força superficial, como a electricidade, e não penetra no âmago das realidades.

Mesmo no ponto de vista empírico, a insuficiência do naturalismo puro manifesta-se logo no facto de que a explicação física vê, já o dissemos, a razão do facto particular na sua causa, e a série destas causas, como sabemos, com inteira certeza, a priori, desenvolve-se numa regressão ao infinito, de modo que nenhuma coisa pôde ser a primeira, dum modo absoluto. Depois, a acção desta causa é reduzida a uma lei natural e esta a uma força natural, que fica absolutamente sem explicação. Mas este elemento inexplicável, a que são reduzidos todos os fenómenos, desde o mais elevado até o mais ínfimo, deste mundo tão claramente dado e tão naturalmente explicável, não estará aí para nos revelar que todas as explicações deste género são condicionadas, de certo modo ex concessis, e que não são a explicação verdadeira e suficiente? Por isso eu disse que fisicamente tudo é explicável e nada o é.



Este elemento absolutamente inexplicável que atravessa todos os fenómenos, que aparece com tanto brilho nos fenómenos superiores, os da geração, por exemplo, mas que se encontra também nos mais rudimentares, nos fenómenos mecânicos, entre outros, é o índice de uma ordem de coisas inteiramente diferente da ordem física e que lhe serve de fundamento. Esta ordem, a que Kant chamava a ordem das coisas em si, é o termo da metafísica.

Em segundo lugar, a insuficiência do naturalismo puro resulta desta verdade filosófica fundamental que estudámos em pormenor na primeira parte de «O Mundo como Vontade e como Representação» e constitui também o tema da «Crítica da Razão Pura», isto é, que todo o objecto é condicionado pelo sujeito pensante, tanto na sua existência objectiva como na forma particular dessa existência, e, por consequência, que o objecto é um simples fenómeno, não uma coisa em si. Isto foi largamente exposto no § 7 do 1.º volume, onde se mostrou a inépcia dos que, à maneira dos materialistas, tomam dum modo inconsiderado o objectivo como dado absolutamente, sem atenderem ao elemento subjectivo por meio do qual apenas, direi mesmo, no qual somente o objectivo existe.

O materialismo hoje em moda fornece numerosos exemplos deste processo; por isso mesmo é uma filosofia de aprendizes de cabeleireiro e de praticantes de farmácia. Na sua ingenuidade, ele vê a coisa em si, na matéria que toma inconsideradamente por qualquer coisa de absolutamente real; segundo ele, a força de impulsão é a única faculdade de uma coisa em si, visto que todas as outras qualidades não podem ser senão fenómenos desta força.

O naturalismo ou a física pura nunca será, portanto, uma explicação suficiente; poder-se-ia compará-lo a um cálculo cujo último termo nunca se encontrasse. Séries causais sem fim nem princípio, forças insondáveis, um espaço infinito, um tempo sem começo, a divisibilidade da matéria ao infinito, todas estas coisas determinadas por um cérebro pensante, só no qual elas existem, do mesmo modo que o sonho, e sem o qual desaparecem: tal é o labirinto em que nos passeia, sem cessar, a concepção naturalista.

As ciências da natureza chegaram, na nossa época, a um grau de perfeição que os séculos precedentes estavam longe de prever, espécie de cume a que a humanidade ascende pela primeira vez. Mas, por maiores que sejam os progressos da física (compreendida no sentido lato que os antigos lhe atribuíam), não contribuirão nada para nos fazer avançar um passo para a metafísica, do mesmo modo que uma superfície, por mais que se prolongue, não se converterá em volume.

Os progressos da física só completarão o conhecimento do fenómeno, ao passo que a metafísica aspira a ultrapassar o fenómeno para estudar a coisa que se apresenta como tal. Ainda que a nossa experiência fosse absolutamente acabada, a situação não se modificaria. Quanto maiores forem os progressos da física, tanto mais vivamente se sentirá a necessidade de uma metafísica. Com efeito, se, por um lado, um conhecimento mais exacto, mais extenso e mais profundo da natureza mina e acaba por derrubar as ideias metafísicas em curso até então, serve por outro lado para pôr mais nítida e mais completamente em relevo o problema da metafísica, para desembaraçá-lo melhor de todo o elemento físico.

Quanto mais completo e exacto for o nosso conhecimento da essência dos objectos particulares, tanto mais imperiosamente se nos imporá a necessidade de explicar o conjunto e o geral; e quanto mais justo, preciso e completo for o conhecimento empírico deste elemento geral, mais misterioso e mais enigmático ele nos aparecerá. É verdade que o sábio ordinário, o que se confina num ramo especial da física, não tem a menor ideia do que acabámos de dizer; dorme feliz ao lado da serva que escolheu na casa de Ulisses, sem um pensamento para Penélope.




Assim, nos nossos dias, a casca da natureza é estudada minuciosamente: conhecem-se por miúdos os intestinos dos vermes intestinais e a vérmina da vérmina. É-se tentado a chamar esmiuçadores da natureza a estes físicos microscópicos e micrológicos. E certamente os que pensam que o cadinho e a retorta são a verdadeira e única fonte de toda a sabedoria não têm o espírito menos pervertido do que o tinham outrora os seus antípodas – os escolásticos.

Do mesmo modo que estes estavam prisioneiros na rede dos seus conceitos abstractos, fora da qual não conheciam nem examinavam nada, os nossos físicos conservam-se inteiramente confinados no seu empirismo, não admitem como verdade senão o que vêem com os seus olhos e julgam ter penetrado, assim, na essência última das coisas. Não suspeitam que entre o fenómeno e aquilo que se manifesta, a coisa em si, há um abismo profundo, uma diferença radical; que para se elucidar a este respeito é preciso conhecer e delimitar, com precisão, o elemento subjectivo do fenómeno e chegar a compreender que as últimas informações, as mais importantes sobre a essência das coisas, só podem procurar-se na consciência de nós mesmos; sem estas operações preliminares é impossível dar um passo para além do que é imediatamente dado aos sentidos, ou, por outras palavras, ultrapassar o problema.

Notemos todavia que, por outro lado, para pôr com precisão o problema da metafísica, é necessário um conhecimento da natureza tão completo quanto possível. Por isso, ninguém deveria tentar abordar a metafísica antes de ter adquirido um conhecimento, pelo menos geral, mas exacto, claro e coordenado dos diversos ramos do estudo da natureza, pois o problema precede, necessariamente, a solução. Porém, uma vez posto o problema, é preciso que o olhar do investigador se volte para dentro, porque os fenómenos morais e intelectuais são mais importantes que os fenómenos físicos, do mesmo modo que o magnetismo animal, por exemplo, é um fenómeno incomparavelmente mais importante que o magnetismo mineral.

O homem traz no seu íntimo os mistérios últimos e fundamentais e é o seu íntimo que lhe é mais imediatamente acessível. Só ali ele pode encontrar a chave do enigma do mundo e o único fio que lhe permite apreender a essência das coisas. O domínio próprio da metafísica é, pois, o que se chama filosofia do espírito.

(1) «Crítica da Razão Pura» e «Crítica da Razão Prática».

(2) Metafísica, V-I.

(In Artur Schopenhauer, Da Necessidade Metafísica, Editorial Inquérito, pp. 43-57).



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