domingo, 30 de outubro de 2022

A obra de Nietzsche radicada em alguma coisa mais que a tradição raciocinante e formalista, eclesiástica ou universitária

Escrito por José Marinho










«1. Na previsão de que terei em breve de apresentar-me à humanidade, dela requerendo as coisas mais difíceis que jamais se lhe exigiram, parece-me inadiável dizer quem sou. No fundo, todos deviam sabê-lo; pois não me apresentei sem dar testemunho. Do contraste entre a grandeza da minha missão e a pequenez dos meus contemporâneos resultou, porém, que não me ouviram nem me viram verdadeiramente. Vivo do crédito que me abri a mim próprio, ou não será um preconceito admitir que vivo?... Basta-me falar a qualquer pessoa “culta” que venha em Férias de Verão ao alto Engadine para me convencer que não vivo... Nestas condições, é um dever, contra o qual se revoltam os meus hábitos, e, mais do que isso, o orgulho dos meus instintos, declarar: Escutem-me porque sou... desta e daquela maneira! Cuidado, não me confundam com outro!

2. Não sou, por exemplo, um lobisomem, um monstro moral; sou, bem pelo contrário, uma natureza oposta àquela espécie de homens que até agora se louvaram como virtuosos. Falando aqui só para nós, creio bem que isto é para mim motivo de orgulho. Fiel discípulo do filósofo Diónisos, prefiro ser um sátiro a ser um santo. De sabê-lo depende que se leia bem este livro. Foi-me talvez dado (nem este escrito possuirá outro sentido) exprimir o contraste de maneira serena e com mais nítido amor dos homens. “Tornar melhor a Humanidade”, eis a última coisa que me ocorreria prometer. Não serei eu quem erguerá novos ídolos; os ídolos de outrora já podem advertir-nos sobre o que é e o que significa ter pés de barro! Abater ídolos (eis como eu chamo aos “ideais”) é meu principal ofício. Retirou-se à realidade valor, retirou-se-lhe sentido, veracidade, na medida em que se inventou um falso mundo ideal... “Mundo verdadeiro” e “mundo aparente”, tal contraposição significa: mundo fictício e realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade; por ela, a própria humanidade foi falsificada e viciada até aos mais profundos instintos, até adorar valores opostos àqueles com que lhe estaria garantido próspero porvir, o excelso direito do porvir.

3. Quem for capaz de respirar na atmosfera dos meus escritos, terá aprendido o que é ar puro, ar salubre. É forçoso estar preparado para as alturas, de outro modo surge o perigo de enregelar. Pois o gelo nos cerca nas cumeadas, lá onde a solidão é indizível. Mas como repousam tranquilas todas as coisas na luz! Como se respira livremente! Quantas coisas aparecem abaixo de nós! A filosofia, como eu até agora a compreendi e a vivi, é o viver voluntariamente no meio do gelo e sobre as altas montanhas, procurar tudo quanto é estranho e problemático na existência, tudo quanto foi até agora condenado pela moral. Através de larga experiência, que pela peregrinação nos domínios interditos alcancei, aprendi a olhar as causas por virtude das quais até agora se moralizou e idealizou de modo muito diverso do que convinha: a história oculta dos filósofos, a psicologia dos grandes nomes da filosofia iluminou-se para mim. Quanta verdade pode um espírito suportar, quanta pode arriscar? Tal foi sempre o meu critério dos valores. O erro (a crença no ideal) não é cegueira, o erro é cobardia... Cada conquista, cada passo em frente no conhecimento é consequência da coragem, da dureza contra si próprio, da “pureza” para consigo... Não refuto os ideais, calço simplesmente luvas perante eles... “Nitimur in vetitum”, neste signo a minha filosofia há-de vencer um dia, porque até agora a verdade foi sistematicamente interdita.

4. Entre os meus escritos, Zaratustra vive por si. Outorguei com ele à humanidade o maior dom que esta recebeu, fosse de quem fosse. Este livro, cuja voz se eleva por cima dos séculos, não é apenas o maior livro que existe, o verdadeiro livro da atmosfera das alturas – todo o humano se encontra muitíssimo abaixo dele –; é também o mais profundo, nascido de uma interior riqueza de verdade, poço inesgotável em que nenhum alcatruz desce sem voltar à superfície repleto de ouro e de bondade. Quem aqui fala não é um “profeta”, um daqueles horríveis híbridos da carência e da vontade de poder que têm o nome de fundadores de religiões. Antes de mais nada, cabe ouvir exactamente a voz que sai desta boca, voz alciónica, para não ofender impiedosamente o sentido da sua sabedoria.

“São as palavras mais suaves que levantam tempestades; os pensamentos que fazem caminho a passo de pomba dirigem o mundo”.

“Os figos caem das árvores, são bons e doces: ao caírem rasga-se-lhes a pele rosada. Sou para os figos maduros o vento Norte”.

“Assim, semelhantes aos figos, caem entre vós, amigos, as minhas palavras sábias; bebei sua doçura, nutri-vos da sua doce polpa! Reinam em volta de mim o Outono e o céu puro e meridiano!”

Aqui não fala um fanático, não se “predica”, nem se pede fé: de uma infinita plenitude de luz, uma profunda felicidade cai, gota a gota, palavra a palavra: o ritmo deste discorrer é o da suave lentidão. Tais coisas só acontecem aos eleitos: é privilégio sem igual ser ouvinte aqui. E a quantos é dado ter ouvidos para Zaratustra? Apesar de tudo, não é acaso Zaratustra um sedutor? Que diz ele quando regressa à sua solidão? Exactamente o contrário do que em situação análoga diriam um “sábio”, um “santo”, um “salvador do mundo” e mais decadentes... Não só fala de outro modo, é outro...

Agora vou sozinho. Oh! Meus discípulos! Também vós ides sozinhos! Assim o quero.

Afastai-vos de mim e acautelai-vos de Zaratustra! Mais ainda; envergonhai-vos dele! Talvez vos haja enganado.

O homem que busca o conhecimento não só deve amar os seus inimigos, mas deve também poder odiar os seus amigos. Recompensa mal um mestre quem se contenta de ser discípulo. E por que não ousais destroçar a minha grinalda?

Venerais-me. Pois bem, que aconteceria se um dia a vossa veneração sucumbisse? Tende cuidado, não vos esmague uma coluna do templo!

Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Sois meus crentes? Mas que importam todos os crentes?

Porque não vos tínheis procurado a vós próprios, me encontrastes. Assim fazem todos os crentes: por isso qualquer fé vale tão pouco.

Agora, vos digo, se me perderdes a mim, encontrar-vos-ei a vós, e só quando todos me tiverdes renegado, voltarei, surgindo entre vós...”».

Frederico Nietzsche (in «ECCE HOMO»).



«Apreciadores das afirmações agressivas e paradoxais que sopram de Oriente para Ocidente, de Além-Reno para Aquém-Reno, de Além-Pirenéus para Aquém-Pirenéus, os intelectuais portugueses deliciam-se com os discursos eloquentes de Zaratustra que contradizem as meias-verdades dos lugares-comuns. A crítica de Nietzsche mantém quase sempre o valor da primeira hora, ainda é eficiente e operante, pelo que não perde tempo quem se dedicar a aferir por ela o sistema cultural que dominou na Europa durante o século [XIX]. Entende-se perfeitamente que as obras de Nietzsche tivessem sido para francês traduzidas pelos colaboradores do Mercure de France, como se compreende que esta revista fosse muito apreciada pelos colaboradores de A Águia e fundadores da Renascença Portuguesa. As novas gerações simbolistas da Latinidade aborreciam o racionalismo dos séculos modernos, com sua degradação iluminista, positivista e socialista, Certo é, porém, que a cultura alemã, idealista e pessimista nos seus geniais representantes, não favorece o desenvolvimento da filosofia portuguesa, realista e optimista, de mais nobre e valiosa tradição. Lido, estudado e admirado, Nietzsche foi repelido, criticado e refutado por pensadores como Sampaio Bruno, Raul Proença e Leonardo Coimbra.

Esta reacção da filosofia portuguesa perante a cultura alemã é tão explicável como a oposição conceitual entre natureza e violência, mas para a compreender é indispensável ter lido as obras de Aristóteles. A tradição portuguesa, desde a época do Infante D. Henrique até à época de Vasco da Gama, fala-nos do Oriente em palavras completamente diversas das que nos são dadas pela erudição alemã. Assim, o orientalismo alemão que começa na filologia pelos trabalhos de Augusto Schlegel e que atinge o cúmulo na filosofia de Artur Schopenhauer, havia de parecer-nos uma violenta inversão de sabedoria tradicional.

Já em Descartes a doutrina do primado da violência sobre a natureza levara à conclusão terrível de que mundus est fabula. O idealismo de Schopenhauer foi mais longe, porque negou a criação divina e, com ela, a autenticidade da vida humana. A interpretação dada por Schopenhauer ao véu de Maia é uma interpretação diabólica, no sentido rigoroso do termo, e, portanto, interpretação incompatível com as doutrinas orientais. Maia deixa de ser a Natureza para ser a Violência, e o homem volúvel é enganado por prestígios. Lembremo-nos de que a palavra prestígio pertence à nomenclatura da goécia e significa o artifício pelo qual o espírito de violência pretende imitar o milagre de Deus, num ilusionismo que apenas dura o tempo bastante para a tentação; lembrando-nos do significado dessa palavra, ficaremos habilitados a discernir a impiedade que se esconde no orientalismo de Artur Schopenhauer. Ao dizer-se que no século [XIX] a filosofia de Schopenhauer teve muito prestígio, com razão se afirma o atributo diabólico de antiteísmo. Vítima dessa falsa orientação foi certamente a alma poética de Frederico Nietzsche

(...) O pessimismo alemão, especialmente nas expressões de Kant, Schopenhauer e Nietzsche, teve o mérito de enunciar com extraordinária lucidez a maior dificuldade que às verdadeiras tradições pode apresentar o homem moderno: a existência do corpo, o sofrimento da carne, o princípio de individuação. A antropologia do século XIX tentou, em vão, resolver o problema fazendo descer a genealogia do homem aos planos da zoologia e da geologia. A partir do darwinismo – outra doutrina prestigiosa e prestigiada -, foram inventadas várias soluções fictícias que logo pareceram destituídas de valor histórico ou profético. A filosofia alemã, agnóstica e ignorante da promessa de salvação humana, pretendeu opor ao pessimismo científico um optimismo artístico, como se o mundo não fosse mais do que fábula cartesiana, ilusão e representação.»

Álvaro Ribeiro («Frederico Nietzsche»).


«Schopenhauer aplicou a todo o universo as concepções que o microcosmo humano lhe tinha sugerido. Como Kant, admitia que por detrás do mundo dos fenómenos se esconde o verdadeiro mundo da realidade, das essências, das coisas em si, de que aquele é mera aparência. Mas, ao passo de que Kant conclui pela inacessibilidade desse mundo, Schopenhauer procura torná-lo inteligível identificando-o com a vontade. O mundo fenomenal seria assim pura representação de um mundo volitivo. Toda a explicação física conduz sempre, em última análise, a uma força misteriosa. Desconhecemos essas forças, tais como o peso, a impulsão, a elasticidade, a afinidade, etc., mas ao menos sabemos alguma coisa do que é a vontade. Digamos então que todas as forças são vontades que se manifestam, mais ou menos obscuras, mas sempre activas e fecundas. O mundo só pode, pois, ser explicado em termos de vontade. Será ela a mágica realidade que reveste todas as formas, que se transfigura a cada momento e é em si mesma imperecível. O espaço e o tempo é que nos criam a ilusão da pluralidade e transitoriedade dos seres e das coisas. O universo apresenta-se-nos como um conjunto de vontades que se limitam umas às outras, se agitam e tumultuam, na ânsia de se afirmarem. E por isso a vida é uma luta incessante.

Desde que o mundo é essencialmente vontade, não pode deixar de ser um mundo de sofrimento. A vontade é um índice de necessidade, e, como ela é imperecível, continua sempre insatisfeita. Cada desejo que parece realizado renasce das próprias cinzas, sob a forma de outros desejos. A aparente satisfação da vontade conduz ao tédio. A satisfação dum desejo é como a esmola que se dá a um mendigo: só consegue manter-lhe a vida para lhe prolongar a miséria. Por isso mesmo a vontade é um mal e a origem de todos os males. A felicidade não se sente, é negativa; o que se sente é a ausência dela. Só apreciamos os bens que possuímos depois de os perder. “Onde foi buscar Dante os elementos do seu Inferno, senão ao próprio mundo real? Por isso fez um Inferno muito apresentável. Mas quando teve que fazer um Céu, de lhe pintar as delícias, então a dificuldade foi intransponível: o nosso mundo não lhe fornecia materiais.”

Dante e Virgílio no Inferno, por Eugène Delacroix (Museu do Louvre).

Casa de Dante, em Florença

O conhecimento não nos permite triunfar do mal. Pelo contrário: desenvolve a capacidade de o sentir, aumentando a sensibilidade. O suicídio também não seria solução, porque a vontade subsistiria sob outra forma, na espécie. Seria apenas um triunfo individual, como a loucura. "O suicídio, a destruição duma só existência fenomenal, é um acto inútil e estúpido porque a coisa em si – a espécie, a vida e a vontade em geral – não seria afectada, assim como o arco-íris persiste, por mais rápida que seja a queda das gotas de água que o produzem." A solução do problema do mal está, pois, no aniquilamento da vontade, na renúncia total, na castidade, que seca as próprias fontes da vida.

Assim se aproxima Schopenhauer do ideal budista.»

Prefácio de Lobo Vilela (in Artur Schopenhauer, «Da Necessidade Metafísica»).


«O que me parece ser uma superioridade notável da minha filosofia é que todas as verdades foram encontradas independentemente, pela consideração do mundo real, e, todavia, a unidade e o encadeamento das doutrinas particulares apresentaram-se espontaneamente sem que eu me tivesse que ocupar com isso. Eis também porque a minha filosofia é rica e estende longe as suas raízes no solo da realidade intuitiva, única que fornece os alimentos de toda a verdade. Por isso mesmo não é enfadonha; todavia, a avaliar pelos escritos filosóficos, o enfado poderia ser considerado como uma qualidade essencial à filosofia.

Quando, pelo contrário, todas as doutrinas duma filosofia são simplesmente tiradas umas das outras e, em último recurso, de uma única proposição fundamental, essa filosofia deve parecer pobre, magra e aborrecida, porque de uma proposição não pode tirar-se mais do que ela contém e, além disso, neste caso tudo depende da exactidão de uma única proposição e uma só falta na dedução comprometeria a verdade do todo.

Os sistemas que tomam para ponto de partida uma intuição intelectual, um êxtase ou lucidez, oferecem menos garantias ainda: todo o conhecimento adquirido desse modo deve ser afastado como subjectivo, individual e consequentemente problemático. Dado o caso de existir tal intuição, seria impossível comunicá-la aos outros; só o conhecimento normal do cérebro é comunicável, por conceitos e palavras quando não é abstracto, por obras de arte quando é puramente intuitivo.»

Artur Schopenhauer («Da Necessidade Metafísica»).


«A superioridade da filosofia portuguesa sobre a cultura da Europa Central mais uma vez se afirma ao interpretar o Cristianismo e ao situar o mistério da Encarnação no quadro mais adequado à especulação teológica, evitando assim dificuldades como as que necessariamente irritavam o pensamento crítico de Frederico Nietzsche. Teólogos e apologetas que se preocupam demais com os problemas da Reforma e da Contra-Reforma não prestam a devida atenção ao significado evangélico e universal dos Descobrimentos, porque do meridiano de Roma não é fácil ver a superioridade do simbolismo do barco sobre o simbolismo do túmulo. A tais defensores da ortodoxia parecerá talvez que o Anti-Cristo de Nietzsche seja um livro sacrílego, execrável e merecedor de fogueira, mas para os cristãos que actualizam a fé, a esperança e a caridade não há escritos profanos que perturbem ou alterem a verdade garantida pelo Espírito Santo. O cristão não estranha que até entre os cristãos haja quem ofenda a Cristo, e bem sabe que não há livro tão mau que contenha mais blasfémias do que as que foram ouvidas por Jesus. O desespero de Nietzsche tem outro significado que foi já surpreendido por alguns teólogos da Alemanha, entre os quais é lícito mencionar Carlos Barth e Alberto Schweitzer. Para os pensadores de tradição portuguesa, este aspecto da obra de Nietzsche representa um momento já ultrapassado pela consciência religiosa que ascendendo evolui para Deus. Não sem razão foi dito que no S. Paulo de Teixeira de Pascoaes se encontra a melhor refutação do anti-cristianismo de Nietzsche. Para bem compreender a profunda religiosidade portuguesa é indispensável a demorada leitura de todos os livros do Novo Testamento, e não só dos Evangelhos.

Meditando nas doutrinas dos apóstolos, e, consequentemente, nas dos missionários, não estranharemos que a filosofia portuguesa seja mais especulativa do que teorética, menos contemplativa do que actuante. Erros de disciplina no ensino dos seminários impediram que não chegasse ainda à fase de evidência a tese da superioridade da filosofia portuguesa como instrumento de interpretação da teologia católica; seria, aliás, estultícia desejar que tão nobre verdade estivesse ao alcance daqueles que só acreditam em cartilhas estrangeiras.

Se a filosofia portuguesa, mais por suas verdades cifradas do que pelos seus livros publicados, é superior à filosofia alemã, como explicaremos a inegável predilecção dos católicos portugueses pelas obras de Frederico Nietzsche? Cremos que tal interesse significa a natural reacção contra o racionalismo crítico e utópico que a cultura francesa propagou em certos meios eclesiásticos, e corresponde ao desejo de procurar, para além dos paradoxos germânicos, as verdades que não puderam ser bem formuladas nos sistemas clássicos da mentalidade moderna. Efectivamente, quem estudar a antropologia de Nietzsche ver-se-á liberto de todos os preconceitos daquela "psicologia" geral e experimental que infelizmente ainda é de ensino público, e poderá enunciar os problemas humanos nos termos tão sinceros como verdadeiros de mais alta escatologia. Não os resolverá, porém, no quadro da filosofia alemã nem do de qualquer outra filosofia da Europa Central. A leitura de Nietzsche é uma prova e uma provação. Reagindo, como representante de uma tradição superior, o pensador português vai a pouco e pouco desprendendo-se de preconceitos continentais, para ir reconhecendo que o seu horizonte cultural está no Ocidente, no Além-Mar. Que o simbolismo do barco, ou da arca, tem ainda de ser superado por outro mais apocalíptico, quer dizer, mais revelador, integrando toda a fenomenologia numa ontologia do inefável, eis o que, depois de haverem lido a obra de Nietzsche, sabem todos quantos levantam a âncora da filosofia portuguesa.»

Álvaro Ribeiro («Frederico Nietzsche»).





«Nos povos meridionais, entre os quais nunca se anulou completamente um certo atavismo clássico com a permanente disposição para uma harmonia natural e cósmica onde o mal não possui realidade ôntica, onde a cisão e o pecado dificilmente se reconhecem como inatos ao mundo e ao homem e antes facilmente se aceitam como imagens e mitos, nos povos meridionais o catolicismo conseguiu resistir à obsessão do pecado própria das interpretações agostinianas e protestantes do cristianismo e pode dizer-se que nunca entre eles o primado da vontade foi tomado a sério ou recebido sem suspeita. Embora absorvidos e esmagados nos modos de civilização e cultura nórdicos, dominados pela técnica e pela indústria resultantes da ciência moderna, regidos pela política e pelo direito inerentes ao “dogma da vontade”, sempre lhes resistiram ou menos passiva ou mais tacitamente. Tal resistência se reflecte, muitas vezes se tornando manifesta e hostil, no pensamento filosófico onde se liga ao reaparecimento medieval de Aristóteles, à sistematização tomista de modelo aristotélico, à renascença da cultura antiga que os povos nórdicos imediatamente traduziram num estreito humanismo, e à permanente suspeição perante os sistemas que a filosofia nórdica, através das instituições colegiais ou universitárias, teima em lhes impor.

Consideremos apenas o significativo exemplo de um desses povos, aquele precisamente a que mais se tem recusado o reconhecimento de um pensamento original, o menor entre os poderosos do mundo, e que no entanto viu adotado por toda a cultura europeia, ininterruptamente desde o século XIII até ao século XVIII, desde Duns Escoto até Kant, o seu ensino aristotélico da lógica, primeiro através da Suma de Pedro Hispano, depois através das Instituições Dialécticas de Pedro da Fonseca: o ensino da lógica, repare-se, que é, segundo Hegel, “o reino do pensamento puro, o reino da verdade tal como existe em si e para si, cujo conteúdo é a representação de Deus antes da criação da natureza e de qualquer espírito finito” e que, sempre segundo Hegel, “desde Aristóteles não sofreu qualquer alteração”. Pois nesse povo, Aristóteles é “o filósofo sempre presente ao longo da sua história”; seu primeiro pensador em língua nacional, D. Duarte, insiste, quanto ao essencial da filosofia, no primado do intelecto sobre a vontade, e um dos seus últimos pensadores tem do cristianismo uma visão em que o saber e a verdade prevalecem tão absolutamente sobre a vontade e a acção que apela para “um novo Cristo cujos milagres sejam argumentos” [Sampaio Bruno, A Ideia de Deus].

O primado absoluto da vontade estabelecido por Duns Escoto conduziu a uma interpretação do cristianismo que dispensa o espírito que há no homem daquele saber e daquela verdade que eram, para os gregos, saber que infindavelmente se adquire e verdade que, sempre talvez se velando, sempre no entanto se procura. Imperfeito o saber, a imperfeição é sua mesma condição de autêntica sofia cujo amor não cansa e se não esgota. Inatingível a verdade, lá no termo daquela “distância sempre impossível de percorrer”, o saber que ela suscita é uma sede que se não sacia. Mas com o primado da vontade sobre o intelecto, o saber apresenta-se como feito e dado. São, aliás, correlatos, saber feito e primado da vontade, o saber dado ao mundo e a remissão para a vontade de tudo o que ao homem mais importa.




Sem a dispensa da busca incessante da verdade, seria absurdo proclamar o primado da vontade; e sem este, seria vão e inconsequente afirmar o saber como dado ao homem e no mundo. Assim se abandonou a finalidade principial da filosofia, se sacrificou a expressão mais alta do saber sófico numa estranha abdicação de procurar a verdade, e se deu o homem como sábio quer na relatividade do saber que lhe é acessível quer na absoluteidade de uma verdade que lhe foi revelada. A filosofia limitou-se a investigar as condições, como em Kant, ou os processos, como em Hegel, que permitem ao homem conhecer o saber que está feito e perdurar na passiva e contente ignorância do que sempre lhe será vedado conhecer.

Desenvolvendo-se a partir do seu primado sobre o intelecto, a vontade vai apresentar-se como garantia da liberdade no homem e imagem da liberdade divina. Nesta imagem, resultante da projecção no absoluto, entificado ou não, divinizado ou não, de formas conceptuais abstractas, a liberdade e a vontade imediatamente aparecem identificadas. No homem, porém, a vontade não aparece logo como idêntica à liberdade, mas apenas como garantia real da liberdade possível, como o que torna real a liberdade, e a identificação só se estabelece entre a liberdade real e a vontade manifesta.

É-nos difícil discernir nestas relações, e em qualquer dos graus em que elas se apresentam, seja uma dedução racional ou lógica, seja uma ligação intuitiva ou poética. E mais justificadas se tornam nossas dificuldades quando, em filósofos modernos mais recentes do que os medievais mas não menos significativos, elas se nos deparam expostas em termos de evidente e suspeito compromisso. Quando, por exemplo, Kant nos diz que “o conhecimento é tema e interesse de poucos ao passo que os benefícios da vontade são negócio de todos” e ligamos esta afirmação com o famoso apoftegma de Hegel de que no remotíssimo mundo oriental só um era livre, no remoto mundo antigo só alguns eram livres e no mundo cristão todos são livres.

Foi Hegel para a filosofia nórdica o sistematizador enciclopédico que Aristóteles terá sido para a filosofia grega. Foi também o seu derradeiro pensador optimista, o último em quem não aflorou a suspeita sequer de que o mundo espiritual a que pertencia ia entrar em crise. Não só o via aberto a todo o futuro como nele encerrava todo o passado, para lá da modernidade, de romanos e gregos, do remotíssimo oriente até antes da criação do mundo. Concebeu de tal modo, e com tal génio, a ideia, que a ideia pensada constituía todo o pensamento, futuro e antigo, humano e divino. Dizia que o seu pensamento era o pensamento de Deus antes da criação do mundo e dizia que o pensamento de qualquer singular filósofo continha, já pensado, o pensamento de todos os homens que o precederam.




Todavia, Martinho Heidegger diz-nos que Hegel, “com a sua determinação especulativa e dialéctica da história”, se viu inibido de considerar “a verdade e o seu reino” como sendo a finalidade da filosofia e, muito embora, “tenha fixado o reino da pura verdade como o fim da filosofia”, atribui-lhe por objecto ou por essência “a actividade da vontade absoluta”. Todavia, repetimos, Heidegger diz-nos que o pensamento de Hegel, com justa razão considerado a sistematização da filosofia nórdica, é um sistema da vontade, inibido de ter a verdade por sua finalidade ou seu princípio.

Dizia também Hegel que “a filosofia é filha do tempo”, mas com a condição de ultrapassar os limites do seu tempo e de neles encerrar todos os tempos passados e futuros. O que Heidegger nos afirma é, porém, que, sistema da vontade, o hegelianismo é bem a filosofia de um tempo que não ultrapassou e nele encontra seus bem demarcados limites. E propõe que o filósofo, em vez de hegelianamente assumir todo o pensamento até ele pelos homens pensado, antes se despoje de tudo o que foi pensado ao longo dos tempos e reverta àquela origem – de que parece ver mais próximos os pré-socráticos – onde o saber da verdade, ou a mesma verdade, terá tido porventura uma expressão imediata.

Há nesta proposta de Heidegger uma espécie de má consciência ou de dramática visão da crise, se não da nulidade, de toda a filosofia nórdica. Significativamente, é hoje Heidegger o mais qualificado representante dessa filosofia e embora, na proposta reversão do pensamento ao saber original, todos os seus sentidos se abram aos filósofos gregos, os pensadores que mais demorada e atentamente parece ter estudado foram Duns Escoto e Frederico Nietzsche, a ambos dedicando volumosos escritos: Escoto, como temos visto, representa o decisivo impulso da filosofia nórdica; e Nietzsche é quem vislumbra e primeiro o proclama num sentido o fim dessa filosofia, noutro sentido a inferioridade dela perante o pensamento dos povos meridionais, não só o dos antigos gregos mas também o dos católicos da renascença e das lutas luteranas e o dos seus contemporâneos itálicos e franceses. Na sua visão perturbada, não consegue porém desprender-se da filosofia que, em sua exaltação genial, repudia e condena, e paradoxalmente atribui à vontade aquele primado que constitui a substância dessa filosofia.






Com Nietzsche e até Heidegger, define-se o século da crise e porventura encerramento da filosofia moderna, cuja perduração já parece apenas institucional. Um discípulo de Heidegger, Herbert Marcuse, vai já ao ponto de dar tal encerramento por concluído, afirmando que Hegel é o derradeiro dos filósofos e, com ele, a filosofia transita à sociologia ou teoria social.»

Orlando Vitorino («Refutação da Filosofia Triunfante»).



A obra de Nietzsche radicada em alguma coisa mais que a tradição raciocinante e formalista, eclesiástica ou universitária


I. Para prosseguir na publicação em língua portuguesa da obra de Nietzsche, foi considerado Ecce Homo o livro mais próprio. Este escrito estranho, mas de leitura apaixonante, projecta, na verdade, viva luz sobre os outros livros editados e já conhecidos do nosso público em geral e dá elementos admiráveis de compreensão sobre o pensador, a sua maneira de ser e pensar, a sua situação histórica, a missão extraordinária que realizou.

As linhas seguintes visam tornar mais acessível o livro aos leitores de menor informação. Pretendem evitar equívocos na maneira de compreender e julgar um homem e uma forma de pensamento que suscitam naturalmente as mais vivas reacções.

Nietzsche é dos pensadores que se não lêem sem emoção funda, sem a alegria da autêntica descoberta. Mas é Nietzsche um filósofo? Não haverá nele, como em Pascal, em Rousseau, em Kierkegaard, alguma coisa de muito perigoso para a filosofia? Ou deveremos admitir que todo o valor de Nietzsche, como dos seus émulos, está nesse mesmo perigo que nele corre incessantemente o pensamento estimado como lógica, justo, socialmente útil e humanamente aceitável? Ou deveremos admitir como válida só aquela filosofia que implique desde a génese profunda tudo quanto tais pensadores de modo mais franco, imperioso ou implacável mostraram?

A mais breve inspecção da obra de Nietzsche nos convence desde o próprio título dos seus livros de que ele não foi um filósofo de profissão. Deve, pelo contrário, dizer-se que foi, na Europa, o grande libertador das formas de pensamento arbitrário ou como tal considerado. Se Pascal, Rousseau e Kierkegaard constituíram modos estranhos ou suspeitos de filosofar contrapostos ao pensamento das respectivas épocas ou a qualquer majestosa tradição, a obra desses não aparece, com a intenção transmutadora e o sopro revolucionário da de Nietzsche, não tem o mesmo virginal impudor sobranceiro e heróico, o mesmo desrespeito das formas de pensamento sagradas e dos valores religiosos ou profanos pela teologia ou pela filosofia consagrados.

Com que ironia ele fustiga o «conhecimento imaculado», com que violência desvenda as obscuras origens daquelas maneiras de filosofar que abstraem de uma vez por todas da situação vital e concreta do ser humano, resolvendo «na abstracção e genericamente», como meros problemas, os imperiosos e perturbantes enigmas do ser e do destino! Sob este aspecto, a obra de Nietzsche é sem par, e traz, íamos dizendo, consentimento e genial impulso ao pensar radicado em alguma coisa mais que a tradição raciocinante e formalista, eclesiástica ou universitária.

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Não se limita Nietzsche a denunciar uma crise da filosofia desde a lógica à ética, desde a teoria do conhecimento à antropologia, não se limita a demonstrar, antes mostra e exibe dramática, e até sarcasticamente, essa crise nos próprios fundamentos, na intrínseca relação do ser e do saber. Para Nietzsche – e por que caminhos surpreendentes e por vezes perturbantes no-lo denuncia! – a causa da filosofia não é a da inteligência ou do espírito que se separam do ser do homem, da sua existência concreta, o pensamento só vale quando nele se joga todo o homem que filosofa e, mais que isso, quando todo o humano é tido em conta. Para Nietzsche, a filosofia não é só, e apenas, coisa mental, intelectual. Decerto, todos os filósofos grandes ou pequenos, fossem teólogos, ou extremos ateus, o souberam. Quantas vezes, porém, isso não tem sido esquecido? E como é próprio da forma de inteligência característica do homem e do europeu desatendê-lo?

A filosofia tradicional e universitária continuou e continuará a ser edificantemente construída como até então. Mas por obra de Nietzsche e dos seus pares, surgem cada vez em maior número na Europa aqueles que se interrogam sobre as relações das contrapostas formas de filosofia e o problema de saber o que é radicalmente filosofar e conhecer é posto com toda a amplitude e o sentido de responsabilidade insofismada.

Pois se filosofar não é uma brincadeira, importa ver o sentido da seriedade que à filosofia mais convém. Filosofar não é uma brincadeira, foi dito, está dito. Mas não é também aquela coisa séria na cara fechada e na forma monótona, que recebeu garantia de uma vez por todas de gregos, medievais ou modernos que nos abriram caminhos. Se ninguém pode viver e morrer por nós, iremos então aceitar a possibilidade de alguém pensar e decidir por nós? Filosofar não é cumprir vazio rito de lógicas e dialécticas, cujas regras ou cujo processo se fixaram de uma vez por todas. Filosofar não é afã cultural em que se herdam e se retomam as ideias e as concepções já dadas, separando e ligando, comparando e recombinando os termos, modernizando e adaptando.

Num primeiro momento, a filosofia procede de uma situação humana e está radicada na condição humana. Esta é a do filósofo, é a do próprio homem, com tudo quanto de profundo e imenso lhe conferem as relações «instintivas» do seu ser com a totalidade da vida. Pedimos atenção: empregando o termo «instintivo», tão característico de Nietzsche, tão frequente no Ecce Homo, empregamos uma grande palavra, rica no pensador de abissais e remotas, ou aurorais e promissoras ressonâncias. Seria lástima atribuir-lhe aqui positivo significado científico ou negativo sentido moralístico.

Nietzsche exige ao filósofo que assuma toda a responsabilidade de filosofar, como exige ao homem que assume toda a responsabilidade de ser. Só nessa condição vale a pena pensar e viver. Ninguém vive por nós a nossa vida, ninguém pode pensar por nós e para nós. «Sê tu próprio», eis o mandamento de Nietzsche.

Esta maneira de considerar o filósofo e a filosofia, o homem e a humanidade, é logo caracterizada como individualista e anarquista, tal como a atitude do negador e transmutador de valores é capitulada de ateísmo. Nietzsche aparece, sob este outro aspecto, como o pensador que encarna os valores nobres, e portanto libertadores, em oposição aos pensadores sacerdotais, aqueles que vigilantemente guardam e ensinam o sagrado. E, no entanto, pode dizer-se que poucos pensadores na Europa moderna (e talvez não só moderna...) tiveram sentido religioso mais autêntico, poucos pensadores foram mais puros, poucos contribuíram mais do que ele para reaprofundar as obliteradas relações do Homem com Deus e a Natureza.

O autor do Ecce Homo surge assim entre os mais paradoxais pensadores do mundo na forma e no conteúdo do pensamento. Mas além dos passos de estranha e rara beleza, e dessa outra face da verdade que a beleza traz consigo, o leitor, e o de mais radical e indisputável fé, sentirá por vezes, nos interstícios das apóstrofes violentas do ateu, sorrir serena e omnimodamente o Deus sublime de cujos secretos caminhos e suaves poderes Nietzsche é talvez involuntário arauto...




Pois que significa, neste caso, ser paradoxal? Significa ir, por amor da verdade, contra o saber que já se tornou opinião e dispensa de pôr os problemas na origem verdadeira. Significa ir, por sentido autêntico do bem, contra o bem frustrado e falseado.

Se, no entanto, persistirmos em atribuir a Nietzsche o ateísmo, em Ecce Homo reiterado, aliás, nos mais vivos termos, cabe então dizer que o seu é um ateísmo tão diferente do ateísmo comum da Europa quanto o sério e responsável sentido religioso o é das formas generalizadas e comuns. Nietzsche não quer que o confundam com outro, ou com outros. Adverte-o desde as primeiras linhas deste livro.

Pensador trágico, Nietzsche mostra que a tragédia não é negação, não é pessimismo. É o sentido da mais alta afirmação, capaz de aceitar e compreender o homem tal qual é. Quaisquer que sejam as infidelidades do pensador à própria doutrina neste ponto crucial, como noutros, espelha-se aqui um alto sentido da filosofia, revela-se uma alma atormentada mas nobre e pura.

II. Assim, se pretendermos situar a obra de Nietzsche e mostrar o seu significado, logo Ecce Homo se nos impõe ao lado de Zaratustra, este como o livro das cumeadas, aquele como o livro das profundidades, o livro do psicólogo da difícil psicologia. Pois também neste ponto Nietzsche se nos apresenta como o único, como o primeiro.

Com Ecce Homo, o homem que filosofa revela-se de modo directo e singular. Que há de novo aqui? Que propósito? Que intento?

Eis um filósofo que, coerente com tudo quanto nos dissera na sua obra anterior, nos deixa o livro de memórias mais inesperado. Não se contentando à maneira clássica e comum de nos expor o seu pensamento, pretende ele mesmo apresentar-se-nos em toda a sinceridade e revelar-nos tudo quanto no seu ser importa comunicar. Um homem fala, o homem de que o pensamento procede e no qual o pensador se situa.

Qual o princípio desta maneira de filosofar? Qual o seu intento? Diríamos que, em Nietzsche, o princípio e o fim da filosofia buscam estreitamente unir-se. O ser completamente desnudado – tal o alvo secreto deste mais que filósofo, deste herói do espírito, no qual muitas vezes, contraditória e paradoxalmente, o saber secreto e informulado alvorece.

Sim, Nietzsche é pensador contraditório, paradoxal. Esta é a primeira evidência do menos atento dos leitores. Nele, porém, a contradição revela-se até às raízes secretas, e não aceita a fácil solução. Sob este aspecto caracteriza a crise da filosofia que soluciona «intelectualmente» os problemas. É o arauto de uma forma de filosofia em que o ser está jogado com o saber e nele próprio. Assim, significa o pensamento de Nietzsche, como repetidamente se notou, a crise de uma certa maneira de filosofar, maneira de filosofar da qual foi o adversário implacável. Do mesmo passo, porém, ajuda a obra de Nietzsche a compreender o que havia de autêntico, de vital e autêntico, na própria filosofia clássica, mas tantas vezes esquecido.

O ser precede o conhecer, adverte Nietzsche e, com ele, toda a filosofia de que dá antecipadora expressão. Pois Nietzsche, como ele mesmo declara, é crepúsculo e sinal de crepúsculo, mas também é aurora. O filósofo será tal-qual for o homem e tal como forem nele o ser e a vida.


Miguel de Unamuno

Nesta situação espiritual ecoa o mais remoto, o mais originário da tradição espiritual, anuncia-se o que virá depois. «Antes um homem que um escritor» dissera Pascal. «O filósofo que não é um homem, é tudo menos um filósofo» escreveu Unamuno. Estas duas advertências estão sempre sujeitas a minorativa interpretação. Se se fala do homem, requer-se ir nele muito fundo para o não ignorar.

Nos termos usados pela escola, trata-se então de uma forma de filosofar em que o problema de ser antecede o problema do conhecimento, ou ainda, usando termos modernos, em que a ontologia toma primado sobre a gnoseologia. Hoje, porém, estando em pleno desenvolvimento os germes trazidos pela obra de Nietzsche, podemos perguntar-nos: houve alguma vez época na filosofia em que o conhecer existisse independentemente do ser do homem e do universo – para não falar de Deus, forçando os próprios termos, ou términos, do pensamento nietzschiano? Decerto que não. Conhecer significa relação entre ser e saber e o significa sempre. Simplesmente, as relações entre o ser e o saber podem alcançar-se mais profunda ou mais superficialmente.  E assim o conhecimento que não só objectivamente as encara, mas subjectivamente as supõe, será o que elas forem. Nuns casos, deter-se-á na superfície, ou perto dela; noutros casos, visará a origem e a mais íntima ou ampla realidade. Assim, todos o compreendem, pode pensar-se em relação directa ao ser, ao ser nosso, ao ser da terra, ao ser do universo e ao ser de Deus. E pode pensar-se em relação ao que já se pensou, aos livros, à cultura, à ciência e à filosofia.

O pensamento de Nietzsche, surgindo das mais profundas nascentes, auscultando as relações primordiais, assinala reacção poderosa e consistente contra a filosofia cultural, contra a filosofia científica e contra todo o saber que viva, conscientemente ou não, da tradição precária. A estesia, e religiosidade, o ímpeto vital que o caracterizam, são sinais do seu desvio do saber feito. Torna-se-lhe suspeito tudo quanto é técnico, mesmo que seja a técnica de bem saber, tudo quanto é regra, e principalmente a regra para ser justo e para ser santo. Romper com toda a espécie de facto, com todo o ídolo ou todo o ideal imóvel, com todo o fim já anquilosado e rígido – eis outro aspecto essencial da obra transmutadora de Nietzsche que Ecce Homo ajuda a desvendar.

Assim, quando ironiza o «conhecimento imaculado», como já aludimos, pretende sugerir que nem o conhecimento é imaculado, nem pode imacular-se, isentando-se de toda a responsabilidade no erro e no mal, pelo recurso a qualquer lógica feita e suposta perfeita, ou pelo recurso a uma experiência exterior ou minorada: o que é porventura portador de maior responsabilidade no erro e no mal não pode lavar as mãos enquanto o homem sofre e vai subir ao Calvário. Ecce Homo, eis o homem. Nietzsche sugere que o seu pensamento é sincero e não esconde suas bem humanas raízes. Que os outros filósofos façam outro tanto, e do terreno da filosofia sairá muito vão artifício. Pois há filosofia que, ligada à poesia e à inquietação religiosa, expressa em imagem ou alegoria, tem autêntica substância filosófica e certa parte de autêntica expressão lógica; enquanto, por outro lado, muito filosofar rigoroso de aparência, sem imagem, sem toque de emoção, sem frémito de espanto ou pavor, é radicado naquele engenhoso artifício que a própria arte séria sempre desdenhou. Que o filósofo seja, pois, sincero e ponha a nu as raízes autênticas do seu pensar. Se nisso houver demasia e se por tal modo sofrer o rigor do pensamento, tempo virá de filosofar mais certo. O artifício lógico, que é o pior dos artifícios, tem de ser, em todo o caso, posto fora da porta. A verdade apenas pode surgir no pensamento que seja realidade autêntica, que seja vital e vivente, não pode surgir do pensamento que se separa da natureza e da autêntica vida.

Os bons leitores de Nietzsche perguntam-se qual das ideias do pensador visionário e profetico assume mais funda significação filosófica ou corresponde a mais alta cota na montanha da simbólica religiosa. É difícil optar entre as quatro que de modo mais visível e intencional o pensador transmitiu e em Ecce Homo revê nas suas raízes vitais: deus morreu, o homem existe para superar-se, tudo quanto foi tornará a ser, os valores vão transmutar-se. Ideias são essas que entre si têm o mais descontínuo e o mais contínuo liame, a abissal distância da treva e a afinidade subtil da luz difícil. Nada mais árduo, diz Nietzsche de vários modos, do que alcançar o próximo, julgado trivial.




Ver, que coisa simples! Haver sol, que fácil! Na verdade, são mistérios.

Aqui é Nietzsche autenticamente filósofo, pois seu juízo, tão difícil!, desmente a facilidade. É filósofo contra os filósofos, como é profundamente cristão contra os cristãos. Sua contrariedade e sua contradição situa-as no extremo ponto da viragem, na extrema altura do voo. A síntese dos contrários é excelente coisa, ou sê-lo-ia, se fosse possível. A teoria não resolve se é apenas teoria: nada adianta que eu pense na harmonia enquanto realmente continuam a afrontar-se os irmãos inimigos.

De que vale, no entanto, a conciliação? Decididamente é possível, na doutrina, conciliar o mal com o bem. Na realidade, como pôr, e de uma vez para sempre, face a face, sem ressentimento, principalmente do primeiro, o carrasco a par da vítima? Eis a questão.

Podemos, e devemos em todo o caso, perguntar-nos se Nietzsche não vai excessivamente longe no seu requisitório. Pede-se à teoria que seja eticamente ou religiosamente eficaz? É bem isso? Então a filosofia deixa de ser filosofia.

Através de diferentes interpretações, vitalista, pragmatista, existencial, diversos aspectos do pensamento de Nietzsche sucessivamente se esclareceram. O problema de se saber qual a harmonia funda das teses e ideias que na sua obra se enfeixam sucessiva e contrastantemente, permanece aberto. Devemos louvá-lo e louvar-nos por isso.

O autor do Ecce Homo não é, evidentemente, um Mestre do chamado pensamento lógico, não é um justo de qualquer espécie; também não pretende ser um santo, como adverte desde as primeiras linhas deste livro.

Por amor da verdade, o seu pensamento, tão ávido de harmonia, recusa o sistema fechado e permanece indefinidamente aberto. Se é um Mestre, é-o no sentido de Zaratustra, aquele que não quer servis discípulos, aquele que não entende fidelidade sem autonomia, aquele que, por amor da verdade autêntica, da verdade nua e pura, recusa todo o ídolo e toda a fórmula.

(Prefácio de José Marinho in Frederico Nietzsche, ECCE HOMO, Lisboa, Guimarães Editores, 6.ª Edição, Junho de 1990, pp. 7-18).

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