sábado, 21 de novembro de 2015

Pela República, contra o Socialismo

Escrito por Álvaro Ribeiro





Nascimento do deus Baco







Mistérios de Elêusis



Triptólemo, Deméter e Perséfone




Perséfone raptada por Hades




Fócida


«Realizavam-se na Grécia certas práticas religiosas de que nem todos participavam, e que consistiam em purificações, expiações, sacrifícios, cantos e em geral todas as cerimónias que se encontravam nos outros cultos. Do carácter secreto destes actos religiosos lhes veio o nome de mistérios. Celebravam-se mistérios especiais em honra de cada divindade. Os mais célebres foram os de Deméter e os de Dionisos».

Fortunato de Almeida («Curso de História Universal»).


«...As tragédias (e as comédias) eram representadas num santuário consagrado a Dioniso, por ocasião dos festivais atenienses, instituídos por Psístrato na segunda metade do século VI [a. C.], e dedicados a esta divindade. Importa observar que somente no decurso dos festivais de Dioniso se realizavam as competições trágicas que para sempre celebrizaram os nomes de Ésquilo, Sófocles e Eurípides».

Eudoro de Sousa (in Introdução à «Poética» de Aristóteles).


«Da planície da Fócida, o viajante subiria as prados que se estendem até às margens do Plístios, entrando depois num vale tortuoso entre altas montanhas. O vale ia estreitando-se, enquanto a paisagem se tornava mais grandiosa e mais desolada. Atingiria finalmente um círculo de montanhas abruptas, encimadas de penedos selvagens, verdadeiro funil carregado de electricidade, onde eram frequentes as tempestades. No fundo da garganta, aparecia a cidade de Delfos, como um ninho de águia num rochedo, rodeado de precipícios e dominado pelos dois cimos do Parnaso. Ao longe, viam-se cintilar ao sol os cavalos de bronze, as estátuas das Vitórias, inúmeras imagens feitas de ouro, um conjunto de heróis e deuses, até ao templo dórico de Proibos Apolo.

Em toda a Grécia, era aquele o local mais santo. Aí profetizava a Pítia, reuniam-se os Anfictiões... Para lá se dirigiam homens, mulheres e meninos para saudarem o Deus da luz. Desde tempos imemoriais, fora o templo de Delfos consagrado à veneração dos povos. Na caverna atrás do templo abria-se uma fenda de onde saíam vapores frios, os quais, inspirados, provocavam o êxtase, segundo se dizia. Narra Plutarco que, em tempos muito remotos, um pastor sentou-se perto daquela fenda e começou a profetizar. No princípio, supuseram-no louco. Mas as profecias realizavam-se e então deram atenção ao facto. Os sacerdotes intervieram e consagraram o local à divindade. Daí a instituição da Pítia, sentada sobre um tripé colocado acima da fenda. Os vapores provocavam-lhe convulsões com a chamada segunda vista, o que se nota nos sonâmbulos notáveis.

Ésquilo, filho de um sacerdote de Elêusis, ele próprio iniciado, informa em As Euménidas, pela boca da Pítia, que Delfos fora consagrado à Terra, depois a Témis (a Justiça), a seguir a Febe (a lua medianeira), por fim a Apolo, o Deus solar. Segundo os poetas, a fama de Delfos data de Apolo. Júpiter quis saber onde estava o centro da terra. Então soltou duas águias, que voaram, uma do oriente, outra do ocidente, encontrando-se em Delfos. Daí o prestígio do local, com Apolo elevado à categoria de deus grego por excelência. A explicação da origem da preeminência de Apolo não foi revelada, mas façamos algumas conjecturas a respeito. Segundo o pensamento órfico, Dionisos e Apolo eram duas revelações da mesma divindade. Dionisos simbolizava a verdade esotérica, acessível somente aos iniciados. Nela se continham os mistérios, as existências anteriores e futuras, as relações da alma e do corpo, do céu e da terra. Apolo representava a mesma verdade, aplicada à vida terrena, à ordem social. Era o inspirador da medicina, das leis, da adivinhação, da beleza artística, da paz entre os povos apoiada na justiça, da purificação para a harmonia da alma e do corpo.











Baco e Ariadne



Ariadne




Bacante







Sátiro e Bacante



Numa palavra, para o iniciado, Dionisos significava o espírito divino em evolução no universo e Apolo a sua manifestação no homem terrestre. Os sacerdotes tinham dado ao povo a seguinte explicação: nos tempos de Orfeu, Baco e Apolo disputaram o tripé de Delfos. Baco cedera-o de boa vontade ao irmão. Retirara-se para os cimos do Parnaso, onde as mulheres tebanas celebravam os seus mistérios. Mas, de facto, os dois tinham dividido o império do mundo: um reinava no misterioso além, o outro regia o mundo dos vivos.

(...) A clarividência difere do sono e da vigília. As faculdades intelectuais do clarividente aumentam de maneira surpreendente. A memória é mais exacta, a imaginação mais viva, a inteligência mais desperta.

(...) Numa palavra, se a clarividência é um estado anormal do ponto de vista do corpo, é um estado normal e superior do ponto de vista do espírito.

(...) Se a clarividência é uma faculdade da alma, não é permitido que se rejeitem, pura e simplesmente, os profetas, os oráculos, as sibilas, levando as suas actividades para o plano da superstição. Nos templos antigos, a adivinhação teria sido praticada com finalidade social e religiosa. (...) As suas belas manifestações somente são possíveis em seres de grandeza e de pureza excepcionais.

Nada diremos dessa ciência que os antigos designavam por genetlialogia, da qual a astrologia medieval é apenas um fragmento imperfeitamente compreendido, a não ser que se tratava de uma ciência enciclopédica aplicada ao futuro dos povos e dos indivíduos. Muito útil como orientação, foi problemática a sua aplicação. Somente os espíritos de primeira ordem puderam usá-la. Pitágoras aprofundou-a no Egipto. Na Grécia, era praticada com dados menos completos e menos precisos. Ao contrário, a clarividência e a profecia estavam mais adiantadas.

Sabe-se que esta se exercia em Delfos por mulheres jovens e velhas, chamadas Pítias ou Pitonisas, que funcionavam passivamente como sonâmbulos clarividentes. Os sacerdotes, com base nos seus conhecimentos, interpretavam, traduziam e ordenavam os oráculos. Os historiadores modernos viram na instituição de Delfos nada mais do que exploração e superstição manejados por um charlatanismo inteligente.

Mas toda a filosofia antiga valorizava a ciência adivinhatória de Delfos. Além disso, Heródoto refere-se a diversos oráculos válidos como o de Creso e o da batalha de Salamina. Essa arte teve o seu começo, o seu apogeu e a sua decadência. O rei Cleómenes corrompeu a superiora das sacerdotisas de Delfos para usurpar a realeza de Demarates. Plutarco escreveu um tratado, pesquisando os motivos da extinção dos oráculos. Toda a sociedade antiga interpretou essa decadência como uma desgraça».

Eduardo Schuré («Os Grandes Iniciados»).




Ruínas do tolo de Delfos




Sibila de Delfos















Lycurgus consultando a Pythia, por Eugène Delacroix.



«A cidade havia sido fundada sobre uma religião e constituída como uma igreja. Daí a sua força; daí também a sua omnipotência e império absoluto que exercia sobre os seus membros. Em sociedade organizada em tais bases, a liberdade individual não podia existir. O cidadão estava, em todas as suas coisas, submetido, e sem reserva alguma, à cidade; pertencia-lhe inteiramente. A religião que tinha gerado o Estado, e o Estado que conservava a religião, apoiavam-se mutuamente e formavam um só corpo; estes dois poderes associados e confundidos formavam um poder sobre-humano, ao qual a alma e o corpo se achavam igualmente submetidos.

Nada no homem havia de independente. O seu corpo pertencia ao Estado e estava votado à sua defesa; em Roma o serviço militar era obrigatório até aos quarenta e seis anos, e em Atenas e Esparta por toda a vida. Os seus haveres estavam sempre à disposição do Estado; se a cidade carecia de dinheiro, podia ordenar às mulheres lhe entregassem as suas jóias, aos credores lhe abandonassem os seus créditos, aos possuidores de oliveiras lhe cedessem gratuitamente o azeite que tinham fabricado.

A vida não se escapava a tanta omnipotência do Estado. Muitas cidades gregas proibiam ao homem o celibato. Esparta punia não somente quem não se casava mas mesmo quem só tardiamente se casava. O Estado podia prescrever, em Atenas, o trabalho e, em Esparta, a ociosidade. A tirania do Estado exercitava-se até sobre as mais pequeninas coisas, como em Locres, onde a lei proibia aos homens bebessem vinho puro ou em Roma, em Mileto e em Marselha, onde o tornava defeso às mulheres. Era vulgar que o vestuário fosse determinado pelas leis de cada cidade; a legislação de Esparta regulamentava o penteado das mulheres e a de Atenas interdizia estas de levarem em viagem mais que três vestidos. Em Rodes a lei impedia o homem de fazer a barba; em Bizâncio punia-se com multa quem possuísse, em sua casa, navalha de barba; e em Esparta, ao contrário, exigia-se fosse rapado o bigode.

O Estado tinha o direito de não permitir cidadãos disformes ou monstruosos. Por consequência, ordenava ao pai a quem nascesse semelhante filho que o matasse. Esta lei encontra-se também nos antigos códigos de Esparta e nos de Roma. Não sabemos se esta lei igualmente existiu ou não em Atenas, por dela somente encontrarmos conhecimento em Aristóteles e Platão, ao inscreverem-na nas suas legislações ideais.

Há na história de Esparta certo facto, por Plutarco e Rousseau muito admirado. Esparta acabava de sofrer a derrota de Leuctra, onde muitos dos seus cidadãos haviam perecido. A esta notícia, os pais dos mortos tiveram de aparecer, em público, de cara alegre. Assim, a mãe que sabia ter seu filho escapado ao desastre, ao tornar a vê-lo demonstrava seu pesar e chorava. E a que tinha a certeza de nunca mais voltar a ver seu filho, essa testemunhava alegria e percorria os templos agradecendo aos deuses. Tal era o poder do Estado que ordenava a transposição dos sentimentos naturais e era obedecido.



Licurgo de Esparta
















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O Estado não admitia que um homem fosse indiferente aos seus interesses; o filósofo, o homem de estudo, não tinha o direito de viver isolado. Era sua obrigação votar na assembleia e, por sua vez, ser magistrado. Em certa altura, quando as discórdias se tornaram frequentes, a lei ateniense não permitia ao cidadão a sua neutralidade, antes o obrigava a combater por um ou outro partido; e a quem quisesse continuar alheio das facções e se mostrasse calmo, a lei aplicava pena severa, como a da perda do direito de cidade.

A educação, entre os gregos, estava muito longe de ser livre. Pelo contrário, nada houve em que o Estado mostrasse mais vontade em aparecer todo-poderoso. Em Esparta o pai não exercia direito algum sobre a educação do seu filho. A lei parece ter sido menos rigorosa em Atenas, ainda que a cidade fizesse, por assim dizer, com que a educação fosse dada em comum por mestres por ela escolhidos. Aristófanes, em texto eloquente, mostra-nos as crianças de Atenas a caminho da escola; em ordem, distribuídas por bairros, as crianças caminham em filas cerradas, à chuva, à neve ou com sol forte; estas crianças, tudo indica compreenderem que estavam já a cumprir um dever cívico. O Estado queria ser só ele a dirigir a educação, e Platão diz qual o motivo da sua exigência: "Os pais não devem ter a liberdade de enviar ou deixar de enviar os seus filhos aos mestres pela cidade escolhidos, porque estas crianças pertencem menos a seus pais do que à cidade". O Estado considerava o corpo e a alma de cada cidadão como sua pertença e, para tanto, queria se acostumasse este corpo e esta alma de modo a deles tirar o melhor partido. Ensinava-se-lhe a ginástica, porque, sendo o corpo do homem uma arma da cidade, tornava-se preciso que fosse o mais forte e ágil possível. Ensinava-se-lhe, também, os cantos religiosos, os hinos e as danças sagradas, porque este conhecimento era indispensável à boa execução dos sacrifícios e festas da cidade.

Reconhecia-se ao Estado o direito de obstar a que, ao lado do seu, houvesse ensino livre. Atenas promulgou, certo dia, uma lei, proibindo instruir os jovens sem autorização dos magistrados, e outra lei interdizia especialmente o ensino da filosofia.

O homem não tinha escolha de crenças. Devia acreditar e submeter-se à religião própria da cidade. Podiam odiar-se ou desprezar-se os deuses da cidade vizinha e, quanto às divindades de carácter geral e universal, como Júpiter Celeste, Cíbele, ou Juno, havia a liberdade de neles ter ou não ter fé. Mas que o homem não se permitisse duvidar da Atena Políada, ou de Erecteu ou ainda de Cécrope. Aqui, cometeria grande impiedade, que, ofendendo, ao mesmo tempo, a religião e o Estado, era pelo Estado severamente punida. Sócrates foi, por este crime, condenado à morte. A liberdade de pensamento, em matéria de religião, era absolutamente desconhecida, entre os antigos. Deviam conformar-se com todas as regras do culto, figurar em todas as procissões e tomar parte nos repastos sagrados. A legislação ateniense estabelecia pena contra os que se abstivessem de celebrar religiosamente alguma festa nacional.




Os antigos não conheciam, portanto, nem a liberdade de vida privada, nem a de educação, nem a liberdade religiosa. A pessoa humana tinha muito pouco valor, perante esta autoridade santa e quase divina que se chamava pátria ou Estado. O Estado não tinha somente, como nas sociedade modernas, direito de justiça concernente aos cidadãos. Podia punir sem o homem estar culposo; e somente por o interesse do Estado estar em jogo. Aristides, certamente, não cometera crime algum e nem mesmo, sequer, se tornara suspeito, mas a cidade tinha o direito de expulsá-lo do seu território, pela única razão de Aristides ter adquirido, por suas virtudes, tão grande influência que, por esse motivo, poderia, quando quisesse, tornar-se homem perigoso. Chamava-se a isto ostracismo e não se ostentou por privativa de Atenas esta instituição, pois a encontramos também em Argos, em Mégara e em Siracusa e, conforme Aristóteles nos dá a entender, existiu igualmente em todas aquelas cidades gregas que tinham governo democrático. Ora, o ostracismo não era um castigo, mas uma precaução tomada pela cidade contra um cidadão suposto de algum dia vir a perturbá-la. Em Atenas, podia qualquer homem ser acusado e condenado por falta de civismo, isto é, por falta de afecto para com o Estado. Quando se tratava do interesse da cidade, nenhuma garantia se oferecia à vida do homem. Roma promulgou determinada lei onde se legitimava dar a morte a todo o homem que pensasse em tornar-se seu rei. A funesta máxima de que a salvação do Estado é lei suprema achou-se, assim, formulada na antiguidade. Pensava-se que o direito, a justiça e a moral deviam ceder perante o interesse da pátria.

Singular erro é, pois, entre todos os erros humanos, acreditar-se em que nas cidades antigas o homem gozava de liberdade. O homem não tinha sequer a mais ligeira ideia do que esta fosse. O homem não se julgava capaz de direitos, em face da cidade e dos seus deuses. (...) o governo muitas vezes mudou de forma; mas a natureza do Estado ficou pouco mais ou menos na mesma, sendo a sua omnipotência quase em nada diminuída. O sistema de governo tomou vários nomes, sendo uma vez monarquia, de outra aristocracia, ou ainda democracia, mas com nenhuma destas revoluções ganhou o homem a sua verdadeira liberdade, a liberdade individual. Ter direitos políticos, poder votar e nomear magistrados, ser arconte, a isto se chamou liberdade, mas o homem, no fundo, mais não foi sempre que escravo do Estado. Os antigos, sobretudo os gregos, exageravam muito sobre a importância e os direitos da sociedade, e isto, sem dúvida alguma, devido ao carácter sagrado e religioso que a sociedade originariamente revestiu.

(...) Quando através da série de revoluções os homens conseguiram a igualdade, já não existindo lugar para se combaterem por princípios e direitos, guerrearam-se por interesses. Este novo período da história das cidades não começou no mesmo dia em toda a parte. Em algumas cidades seguiu de muito perto o estabelecimento da democracia; nas outras, apareceu só depois de muitas gerações terem podido calmamente governar. Mas todas as cidades, cedo ou tarde, caíam em tão lastimáveis lutas.

(...) A democracia não suprimiu a miséria; pelo contrário, tornou-a mais acentuada. A igualdade nos direitos políticos frisou mais flagrantemente ainda a desigualdade das condições.



(...) Já dissemos como a cidade, principalmente entre os gregos, tinha poder sem limites, sendo-lhes a liberdade desconhecida, e como o direito individual nada era perante a vontade do Estado. Daqui resultava poder a maioria dos sufrágios decretar a confiscação dos bens dos ricos, e os gregos não viam nisso nem ilegalidade nem injustiça. Aquilo sobre que o Estado se tinha pronunciado era o direito. Esta ausência de liberdade individual foi causa de desgraças e de desordens para a Grécia. Roma, que respeitava um pouco mais os direitos do homem, sofreu por conseguinte menos.

Plutarco, conta que em Mégara, após certa insurreição, se decretou a abolição das dívidas, sendo os credores, além da perda do capital, obrigados a reembolsar os devedores de juros já pagos.

"Em Mégara, como em outras urbes, diz-nos Aristóteles, o partido popular, tendo-se apoderado do poder, começou por pronunciar a confiscação dos bens contra algumas famílias ricas. Mas, uma vez neste caminho, não lhe foi possível deter-se. Foi preciso arranjar-se para cada dia uma nova vítima, e por fim o número de ricos espoliados e exilados cresceu tanto que formaram um exército".

(...) A ruína do regime político que a Grécia e a Itália haviam criado pode relacionar-se com duas causas principais. A primeira pertence à categoria dos actos morais e intelectuais; a segunda, à ordem dos actos materiais; a primeira consiste na evolução das crenças; a segunda, na conquista romana. Estes dois factos são contemporâneos; desenvolveram-se e realizaram-se conjuntamente, durante os cinco séculos que precederam a era cristã.

A religião primitiva, cujos símbolos estavam na pedra inamovível do lar e no túmulo dos antepassados, religião que constituíra a família antiga e organizara em seguida a cidade, alterou-se com o tempo e envelheceu. O espírito humano aumentou as suas forças e concebeu novas crenças. Principiou-se a formar ideia da natureza material; a noção de alma precisou-se, e, quase ao mesmo tempo, surgiu nos espíritos a noção do ser divino.

(...) Quanto ao lar, que parece só ter tido sentido enquanto ligado ao culto dos mortos, perdeu também o seu prestígio. Continuou-se tendo em casa um lar doméstico, a saudá-lo, a adorá-lo, a oferecer-lhe a libação; mas ficando apenas como culto de mera observância, que já nenhuma fé vivificava.

O lar das urbes, ou pritanado, insensivelmente entrou no mesmo descrédito em que já decaíra o lar doméstico. Não se sabia o que significava; olvidava-se que o fogo sempre vivo do pritanado representava a vida invisível dos antepassados, dos fundadores, dos Heróis nacionais. Continuava a manter-se esse fogo, a fazerem-se os repastos públicos, a cantarem-se os velhos hinos: cerimónias vãs de que não ousavam desembaraçar-se, mas cujo sentido já ninguém compreendia.



Mesmo as divindades da natureza, que se haviam associado aos lares, mudaram de carácter. Depois de começarem por ser divindades domésticas, depois de se terem tornado em divindades da cidade, ainda mais evoluíram. Os homens acabaram por compreender como os diferentes seres a que davam o nome de Júpiter podiam muito bem não ser mais do que um só e mesmo ser, e o mesmo se dando em relação aos mais deuses. O espírito ficava embaraçado perante a grande quantidade de divindades, e sentia a necessidade de reduzir o seu número. Compreendeu que os deuses já não pertenciam um a cada família, ou a cada urbe, mas todos ao género humano e velando pelo universo. Os poetas iam de urbe em urbe e ensinavam aos homens, em lugar dos velhos hinos da cidade, cânticos novos onde se não falava dos deuses Lares nem das divindades políadas, antes se referiam lendas dos grandes deuses da terra e do céu, e, deste modo, o povo grego se ia esquecendo dos seus velhos hinos domésticos ou nacionais, substituindo-os pela poesia nova, já não filha da religião, mas da arte e da livre imaginação. Ao mesmo tempo, alguns grandes santuários, como os de Delfos e de Delos, atraíam a atenção dos homens fazendo-os esquecerem-se dos cultos locais. Os mistérios e a doutrina que encerravam habituaram-nos a desdenhar da religião vazia e insignificante da cidade.

Destarte, lenta e obscuramente, se foi operando uma revolução intelectual. Os próprios sacerdotes não lhe opunham resistência; desde que os sacrifícios continuassem a realizar-se nos dias marcados, parecia-lhes salva a velha religião; as ideias podiam modificar-se e a fé esmorecer desde que os ritos não fossem atingidos. Sucedeu porém que, sem se modificarem as práticas, as crenças se transformaram, e a religião doméstica e municipal logo perdeu todo o seu comando sobre as almas.

Depois, apareceu a filosofia a derribar todas as regras da velha política. Era impossível atingirem-se as opiniões dos homens sem se tocar ao mesmo tempo nos princípios fundamentais do seu governo. Pitágoras, possuidor de vaga concepção do Ser supremo, desdenhou dos cultos locais, e tanto bastou para, enjeitando as antigas formas de governo, tentar fundar nova sociedade.

Anaxágoras concebeu o Deus-Inteligência reinando por sobre todos os homens e todos os seres. Afastando-se das velhas crenças, distanciou-se também da velha política. Como não acreditasse nos deuses do pritanado, Anaxágoras não cumpria tão-pouco com os seus deveres de cidadão, e deste modo fugia das assembleias e não desejou ser magistrado. A sua doutrina ofendia a cidade; os atenienses sentenciaram-no à morte.












Vieram em seguida os sofistas e exerceram maior acção do que estes dois grandes espíritos. Eram homens ardentes no seu combate contra velhos erros. Na luta travada contra tudo quanto ainda estava ligado ao passado, estes homens não poupavam já as instituições da cidade nem os preconceitos da religião. Examinaram e discutiram ousadamente as leis que ainda tutelavam o Estado e a família. Os sofistas iam de urbe em urbe, pregando os novos princípios, ensinando não precisamente a indiferença ao justo e ao injusto, mas a nova justiça, menos estreita e exclusivista do que a antiga, mais humana, mais racional, e libertada das fórmulas das idades anteriores. Empresa atrevida, levantando sua tempestade de ódios e de rancores. Acusaram-nos de não terem nem religião, nem moral, nem patriotismo. A verdade manda dizer-se que não tinham doutrina bem definida sobre todas as coisas e, combatendo os preconceitos, julgavam ter feito muito. Os sofistas abalaram, como nos diz Platão, o que até então estivera firme. Colocavam, tanto a lei do sentimento religioso, como a da política, na consciência humana e não nos costumes dos antepassados, na tradição imutável. Ensinavam aos gregos que, para governar o Estado, não bastava invocar os velhos usos e as leis sagradas, mas era preciso persuadir os homens a actuar como vontades livres. Substituíam o conhecimento dos antigos costumes pela arte de raciocinar e de falar, a dialéctica e a retórica. Os seus adversários tinham por si a tradição; os sofistas tiveram por eles a eloquência e o saber.

Uma vez estimulada assim a sua reflexão, o homem nunca mais quis crer sem compreender, nem deixar-se governar sem discutir as suas instituições. Duvidou da justiça de suas velhas leis sociais, e outros princípios lhe surgiram. Platão põe na boca do sofista estas belas palavras: "Vós todos que estais aqui, eu vos considero parentes uns dos outros. A natureza, a despeito da lei, tornou-vos concidadãos. Mas a lei, essa tirana do homem, violenta a natureza em muitas ocasiões". Opor assim a natureza à lei e ao costume era atacar fortemente os próprios fundamentos da política antiga. Debalde os atenienses exilaram Protágoras e queimaram os seus escritos; o golpe dera-se e o resultado do ensinamento dos sofistas tinha sido imenso. A autoridade das instituições desaparecia com a autoridade dos deuses nacionais, e o uso do livre exame estabelecia-se nas casas e na praça pública.

Sócrates, embora reprovasse inteiramente o abuso que os sofistas faziam do direito de duvidar, pertencia, no entanto, à sua escola. Como os sofistas, não admitia a autoridade da tradição, e acreditava estarem as regras de conduta gravadas na consciência humana. Sócrates não discordava dos sofistas, senão em que estudava esta consciência religiosamente e no firme desejo de nesta encontrar o dever de ser justo e de fazer o bem. Colocava a verdade acima do costume, a justiça acima da lei. Distinguia a moral da religião; anteriormente a Sócrates, não se concebia o dever senão como mandato dos antigos deuses, mas o filósofo mostrou estar a origem do dever na própria alma do homem. Em tudo isto, quer Sócrates o quisesse, quer não, fazia guerra aos cultos da cidade. Baldadamente tinha Sócrates o cuidado de assistir as todas as festas e de tomar parte nos sacrifícios; as suas crenças e palavras desmentiam a sua conduta. Fundava religião nova, aparecendo esta como contrária à religião da cidade. Acusaram-no com razão "de não adorar os deuses pelo Estado adorados" Fizeram-no morrer por ter atacado os costumes e as crenças dos antepassados, ou, como então se dizia, por corromper a geração do tempo. A impopularidade de Sócrates e os grandes ódios dos seus concidadãos explicam-se, se pensarmos nos costumes religiosos desta sociedade ateniense, onde existiam tantos sacerdotes e onde estes eram tão poderosos. Mas a revolução iniciada pelos sofistas e com mais moderação continuada por Sócrates não se deteve com a morte de um velho. A sociedade grega liberta-se, dia a dia, cada vez mais, do domínio das velhas crenças e das velhas instituições.






Depois de Sócrates, os filósofos discutiram em toda a liberdade os princípios e as regras da associação humana. Platão, Críton, Antístenes, Espeusipo, Aristóteles, Teofrasto e muitos outros, escreveram tratados sobre a política. Buscou-se, examinou-se; os grandes problemas da organização do Estado, da autoridade e da obediência, das obrigações e dos direitos, levantaram-se a todos os espíritos

Sem dúvida, o pensamento não pôde desprender-se facilmente dos laços criados pelo hábito. Platão sofreu ainda, sob certos aspectos, o domínio das velhas concepções. O Estado que imaginou é ainda a cidade antiga; muito acanhado, não deve abranger mais de 5000 membros. O governo, neste Estado, continua ainda regulado pelos mais antigos princípios, a liberdade continua ali desconhecida, e o fim proposto pelo legislador revela-se menos o aperfeiçoamento do homem que a segurança e grandeza da associação. A própria família é ali quase esmagada, para não fazer concorrência à cidade. Só o Estado é proprietário, só o Estado é livre, só ele tem uma vontade, uma religião e crenças, e quem quer que não pense como o Estado deve morrer. Não obstante, no meio de tudo isto, as novas ideias aparecem. Platão, tal como Sócrates, e os sofistas, proclama também que a regra de moral e de política está em nós próprios, nada valendo a tradição, que só a razão devemos escutar, e que as leis somente são justas enquanto conformes à natureza humana.

Em Aristóteles, estas ideias precisam-se ainda mais. "A lei, diz o filósofo, é a razão". Aristóteles ensina que é preciso procurar, não o que é conforme ao costume dos pais, mas o que, em si, é bom. Acrescenta que, à medida que o tempo caminha, se torna necessário modificarem-se instituições. Põe de lado a veneração pelos antepassados: "Os nossos primeiros pais, diz ele, quer sejam nascidos do seio da terra, ou tenham sobrevivido a algum dilúvio, seriam, segundo todas as aparências, o que hoje existe de mais vulgar e de mais ignorante entre os homens. Seria evidente absurdo atermo-nos à opinião dessa gente". Aristóteles, como todos os filósofos, desconhecia em absoluto a origem religiosa da sociedade humana; não fala dos pritanados; ignora os cultos locais como fundamento do Estado. "O Estado, acrescenta, nada mais é do que uma associação de seres iguais procurando em comum uma existência feliz e fácil". Destarte, a filosofia rejeita os velhos princípios das sociedades, e procura um novo fundamento sobre o qual basear as suas leis sociais e a noção de pátria.

A escola cínica vai mais longe. Nega a própria pátria. Diógenes gloriava-se de não ter direito de cidade em parte alguma, e Crates dizia que, para ele, a sua pátria era o desprezo pela opinião dos outros. Os cínicos repetiam a verdade, então bastante recente, de que o homem é cidadão do universo, e que a pátria não é o acanhado recinto da urbe. Consideravam o patriotismo municipal como mero preconceito, e suprimiam do número dos sentimentos o amor pela cidade.

Por desgosto ou desdém, os filósofos afastavam-se cada vez mais dos negócios públicos. Sócrates ainda cumprira os seus deveres de cidadão. Platão tentara trabalhar pelo Estado, reformando-o. Aristóteles, já mais indiferente, limitou-se ao papel de observador fazendo do Estado objecto de estudos científicos. Os epicuristas puseram de lado os negócios públicos. "Não lhes ponhais a mão, criticava Epicuro, a não ser que algum poder superior a isso vos obrigue". Os cínicos não queriam sequer ser cidadãos.






Sócrates



Os estóicos regressaram à política. Zenão, Cleanto e Crísipo escreveram numerosos tratados sobre o governo dos Estados. Mas os seus princípios estavam muito distanciados da velha política municipal. Vejamos em que termos nos explica um antigo as doutrinas contidas nos seus escritos. "Zenão, no seu tratado sobre o governo, propõe-se mostrar-nos que somos não os habitantes de tal demo ou de tal urbe, separados uns dos outros por direito particular e leis exclusivas, antes devendo olharmos a todos os homens como concidadãos, como se todos pertencêssemos a um mesmo demo, ou à mesma cidade". Por estes dizeres se vê o caminho percorrido pelas ideias desde Sócrates a Zenão. Sócrates ainda se julgava obrigado a adorar, tanto quanto pudesse, aos deuses do Estado. Platão não concebia ainda outro governo, senão o da cidade. Zenão passa por cima de tão acanhados limites da associação humana. Desdenha das divisões estabelecidas pela religião das velhas idades. Como concebe o Deus do universo, concebe a ideia de um Estado onde entrasse todo o género humano».

Fustel de Coulanges («A Cidade Antiga»).


«Não pode o direito recusar alguma identificação com a filosofia. Antes a requer, como está consagrado na expressão "filosofia do direito". Antes se faz, ele mesmo, sujeito da filosofia, no sentido de que o direito se pensa filosoficamente a si mesmo. Em rigor, "filosofia do direito" é a filosofia expressando-se como direito. Todo o segredo da mais admirável sistematização, que é o Direito Romano, está aí.

No entanto, a expressão "filosofia do direito" é incorrecta pois a filosofia não é filosofia de um outro dela, filosofia de alguma coisa, do que quer que seja, como se diz ao dizer-se "filosofia do direito" ou "filosofia da arte", "filosofia do Estado", com essas expressões abrindo caminho ao plebeísmo, muito cultivado entre os ingleses, de se admitir poder haver "uma filosofia" para tudo e de tudo.

(...) Entificado o Estado, e manifestando-se a sua existência, que não é abstracta mas muito real e concreta, pelo poder de que dispõe, a questão que imediatamente se põe é a de determinar exercer esse poder e por que modo e razão. Ao exercício do poder do Estado chamaram os gregos cracia, e designaram-no os latinos por regime, havendo quem lhe chame constituição.







Nicolau Maquiavel




Parece ter sido Heródoto quem primeiro concluiu, da observação contínua dos numerosos povos que estudou, só existirem três regimes: a democracia, a aristocracia e a monocracia ou monarquia. Da observação de mais de uma centena de constituições de Estados extraiu Aristóteles a mesma conclusão mas conceptualmente estabelecendo que esses são, não apenas os únicos regimes existentes, mas os únicos possíveis. Concluiu, ao mesmo tempo, que nenhum deles é realizável na sua forma perfeita ou pura. Em cada Estado, o regime efectivo é sempre uma combinação das três formas, que designou por poliarquia. Políbio, depois, descreve e exalta a constituição da República Romana como sendo uma poliarquia, tema retomado por Tito Lívio no tomo XI das Décadas a que Maquiavel dedicou um demorado comentário no qual exprimiu, em termos entusiásticos, o seu pensamento político. Nos nossos dias, quando a maior parte dos Estados dizem adoptar a democracia, que estabelecem por meio de partidos políticos, o que de facto estabelecem é uma poliarquia na qual a monarquia está representada na chefia do Estado ou do Governo, a aristocracia nas direcções dos partidos e a democracia na eleição popular dos parlamentos.

Os três regimes são os três modos de determinar quem exerce o poder do Estado e a razão de ser esse quem o exerce. Na monocracia o poder é entregue a um só indivíduo em razão de ser esse o mais apto para o exercer porque é o mais valioso dos homens, o mais sábio como pretendia Platão, ou porque algum carisma de origem transcendente o marcou, assim se explicando que, entendendo essa origem como um princípio, se substitui a designação de monocracia pela de monarquia. Na aristocracia o poder é exercido pelos melhores dos homens. Na democracia é entregue a todos.

(...) Acontece, porém, que cada regime contém em si tanto a sua forma perfeita, mas ideal, quanto a sua forma degradada, que acaba por ser realizada. Assim, a monarquia contém a tirania ou o despotismo; a aristocracia contém a oligarquia em alguma das suas formas: plutocracia, nepotismo, etc; e a democracia a demagogia. Aristóteles apreendeu e, de uma vez por todas, descreveu o processo da inevitável degradação e como, completada a degradação de cada regime, lhe sucede outro. A degradação é inevitável porque, impossibilitada a democracia, isto é, o exercício do poder por todos - o que levou Platão a limitar a 5040 o número de cidadãos de cada Estado - tem de ser ele exercido por representantes desses todos escolhidos em eleição popular, o que imediatamente instala a demagogia. Inevitáveis o despotismo e a oligarquia porque o monarca não pode ter o saber de si como o melhor dos homens e os aristocratas se ignoram como tal».

Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).









«Não será impertinente nem supérfluo acentuar que, para os republicanos do Porto, a comemoração do 31 de Janeiro assumia muito maior importância ética, política e religiosa do que a comemoração do 5 de Outubro. Entre os velhos naturais do burgo do Porto, cujo bairrismo, provincianismo e tradicionalismo se exprimiam por vezes na invejosa oposição a Lisboa, rés-vés de uma reivindicação hostil que se tornava ridícula aos olhos dos preopinantes da Capital, havia alguns intelectuais que diziam e escreviam, profundamente convictos, ter sido o escol republicano vencido em 1891 incomparavelmente superior àquele que em 1910 surgira como Governo Provisório da República Portuguesa. As vicissitudes políticas, administrativas e ideológicas de um decénio discutível, a mediocridade intelectual dos bacharéis provincianos que assumiram as funções de deputado, senador ou ministro, a discussão das questiúnculas partidárias em vez da solução dos problemas nacionais, a conservação do caciquismo antigo e da política de campanário, da troca de votos por favores e de favores por votos, eram factores da depressão de quantos afirmavam amargamente: "Esta não é a República que nós sonhámos!..."

"Esta não é a República que nós sonhámos", diziam e escreviam, frequentemente, os velhos republicanos, chamados históricos, sobreviventes do 31 de Janeiro. Entre as sucessivas gerações verificava-se que a República estava cindida, quebrada, partida, dando lugar a desavenças, querelas e questiúnculas, em vez de se apresentar unida com o fim de realizar a educação cívica do povo português. Efectivamente, as gerações mais novas não receberam da escola a mínima instrução política, a separação significativa das palavras julgar, votar e eleger, que muitos confundem numa sinonímia ilegítima, a distinção graduada entre civilidade, civismo e patriotismo, com seus exemplos de figuração artística, enfim os tópicos do ideário do bem público, não estavam destinadas a transformar a vitoriosa ideologia republicana na perfeita ortodoxia nacional.

Leonardo Coimbra via que a difusão de tal lugar comum representava um perigo para a mocidade, a qual, sempre pronta a acolher o que lhe parece ser a verdade nova, mas que no fundo é um velho erro, aderira levianamente a ideologias mais atraentes ou mais avançadas. Não só por coerência moral com a sua função de deputado, mas também por sua missão de educador, e por adesão à sua fé religiosa, rebatia lucidamente aquela proposição derrotista e desanimadora. A sua argumentação, firmemente alicerçada sobre uma base filosófica, e eloquentemente expressa em tom de perfeita fraternidade, convencia e conglomerava a esperança dos mais renitentes.

"Sim, a República do nosso sonho nunca será a República da nossa realidade, como nenhum movimento concreto de um corpo traçará a curva geométrica pela qual aproximadamente o definimos. Também a liberdade política não é mais do que um esforço de consciência vencendo em pontos, perdendo uma grande extensão do corpo social. Mas porque nem todos os poetas trazem beleza nas suas obras, é isso um motivo para desamarmos a Poesia?"






Cinco anos depois, era ainda fiel ao mesmo pensamento, que afirmara de forma breve e concisa em outro discurso notável. "É que não basta sonhar uma vez, e deixar morrer o sonho de encontro à realidade; é preciso bater as asas para a linha ascencional do voo. É por isso que esta, (esta, ou outra), não é a República que os senhores sonharam".

A fundamentação filosófica desta argumentação necessária está na disjunção platónica entre o real e o ideal. A figura geométrica que nós poderemos desenhar numa folha de papel jamais será tão perfeita como a exigida pela sua definição. A máquina que o engenheiro construir estará sujeita ao desgaste dos materiais, e o tempo permite o atrito, a fricção, a fragilidade que a pouco e pouco hão-de obstar à perfeição do seu funcionamento.

Entre o ideal e o real é, pois, possível intercalar o mal. Leonardo Coimbra não nega a existência do mal; reconhece-o, mas procura explicá-lo, dar-lhe razão, sem contudo o substancializar. Assim nos ensina dialecticamente: "O problema do mal está para o homem na distância do real e do ideal, do conhecimento e do amor".

Fiel ao platonismo, com o qual se mantém coerente, invoca o esforço humano da inteligência, no cultivo incessante da verdade. Acresce, porém, o amor, que na sua interpretação platónica, consiste em depurar o real de todos os aspectos maléficos e ilusórios para que a alma adira ao ideal etéreo e eterno. A junção de amar e compreender circunscreve-se neste aforismo admirável: "Conhecer e amar são dois modos de compreensão humana que se confundiriam no pensamento divino".

Leonardo Coimbra ensina que, tanto no mundo material como no mundo espiritual, é indispensável a existência de um esforço de superação para que da diferença de potenciais não resulte a queda para o zero, para o nada, para o não-ser. "O ideal, - explica então o filósofo - realiza-se, parcelarmente, mas para se inserir na vida material precisa de todo o desnivelamento que vai do finito para o infinito, o que é lógico, pois a matéria é uma potência, uma virtualidade de ser, é um vir a ser, e só o acto puro poderá fazer dessa potência uma realidade". Tal é a base lógica e metafísica que Leonardo Coimbra confere ao esforço de superação, implícito no seu ideo-realismo.






De certo que nem todos os deputados, senadores e ministros, apodados ironicamente de pais da Pátria, eram intelectualmente dignos das funções que haviam assumido na República, e justificavam o sério descontentamento do povo, mas também nem todos quantos falavam de Pátria mereciam o sério nome de patriotas. Cumpria ao homem justo aceitar com piedosa tolerância a condição inevitável da decadência do ideal no real. A extrema preocupação de justiça, pelo contrário, tendia a desfigurar a crítica em polémica, e a polémica em violência, com desprezo pela ordem das condições civilizadas no convívio humano.

A decadência do ideal republicano, resultante da falta de doutrinadores, publicistas e professores, desenhar-se-ia nitidamente num perigo para a Pátria. A esperança desviar-se-ia para políticos mais temerários que se propunham transformar a sociedade, ou até transformar o mundo, fascinados por mitos ou por utopias, mas destituídos de um estudo científico como aquele a que havia dedicado a sua vida o ilustre Augusto Comte. Os reformadores sociais, que a si próprios se designavam de socialistas, preconizavam a acção directa, necessariamente violenta, com a subversão de todos os valores, o primeiro dos quais é a verdade.

Aos defensores da República afligia ainda mais o anúncio da ditadura militar, sem prazo fixo ou de instituição perpétua, aviso certo das variantes administrativas que a História de Portugal iria registar. Depois da tentativa de 18 de Abril de 1925, dissera-se que a Pátria estava doente, concluindo-se que a melhor terapêutica seria prescrita pela competente medicina dos generais. A presidência da República nunca mais seria confiada a um cidadão, - ou, seja, a um civil, - qualificado por direito a exercer tão alto magistério como tão difícil magistratura.

Dessa sessão memorável, em que discursaram homens honrados, sinceros e sérios, mas principalmente da lição admirável que o génio de Leonardo Coimbra tão felizmente inspirou, recebi a graça de admitir que a política se discute acima da moral e da ética, assunto diferente daquele que à mesa do café e à porta da livraria falavam os bacharéis ignorantes e os militares incompetentes. A habitual perspicácia acerca das virtudes e dos vícios que assinalam os homens públicos, elogiados ou vituperados; a descrição mesquinha dos bons e dos maus costumes que ao observador se oferecem no jogo dos partidos políticos; a polémica acerca das ideologias que não formulam com rigor as soluções dos problemas nacionais; toda essa matéria jornalística me aborrecia, como se fossem sinais diversos da mediocridade intelectual de quem não sabe, não pode ou não quer aplicar o seu pensamento a assuntos mais difíceis, porque mais elevados. Só por ter ocasião de aprender, com Leonardo Coimbra, que a análise política depende da síntese filosófica, ou de que existe algures uma verdadeira filosofia política, fiquei para sempre grato à pessoa da minha família que, para temperar o meu extremismo, me levou à sessão comemorativa do 31 de Janeiro.



No dia seguinte, 1 de Fevereiro, comprei os três jornais do Porto para me munir de um relato aproximado se não fiel do discurso de Leonardo Coimbra. Infelizmente, nem A Tribuna, tão dedicada ao Partido Republicano Português, nem o Primeiro de Janeiro, politicamente moderado, (pois nele colaboravam escritores monárquicos, franquistas e sidonistas), brindavam a curiosidade dos seus leitores com a exposição circunstanciada de tão importante sessão cultural, pois limitavam-se a identificar os oradores e a oferecer poucos tópicos dos discursos. Eu, que esperava uma reconstituição integral da lição magnífica do ilustre deputado, ou pelo menos um resumo proporcional, não logrei ver, na reportagem descuidada e apressada, quaisquer dos conceitos raros que o inspirado orador havia semeado na terra fecunda dos seus correligionários e compatriotas.

Impressionado pela recordação excelsa da maravilha que é a oratória viva, recebida directamente da fonte misteriosa do génio, habituei-me a ir ouvir, quando possível, as sapientes conferências que Leonardo Coimbra realizava em associações e instituições várias, mas decidi-me também a convidar e a convencer os meus colegas a participarem de uma alegria que nos seria comum. Alunos do Liceu de Rodrigues de Freitas, o grupo faltava às aulas no dia Primeiro de Maio para ir ouvir os oradores anarquistas que discursavam ao ar livre, no Largo das Fontaínhas. Aí eram ensinadas ao povo curioso as doutrinas de Proudhon, Bakunine e Kropotkine, a história das internacionais operárias, o advento da República social, enfim, a abolição do Estado e a extinção da Igreja.

A doutrinação republicana de Leonardo Coimbra, fiel à ideia de Pátria, fizera-nos ver que o ideário anarquista, aliás simpático e generoso, não era mais do que um desvio para a utopia, e, talvez por isso retardatário ou improgressivo. Cumpria-nos intervir na política imediata, confiados e dedicados».

Álvaro Ribeiro («Memórias de Um Letrado», I).


«Se, para ser republicano, é necessário não acreditar em Deus, então não serei republicano».

Leonardo Coimbra


«O estudante Leonardo Coimbra, que apareceu nos comícios a fazer discursos incompreensíveis, impressionava pela contradição mas tornou-se em breve uma das figuras mais populares entre os habitantes da cidade do Porto. Um corpo varonil de atleta suportando um rosto de adolescente, vestindo capa-e-batina de origem jesuítica com gravata «à Lavallière» de simbolismo boémio, um revolucionário do grupo mais temível proferindo tolstoianas palavras de esperança e amor: tal era a tríplice contradição, impressionante e ofensiva para a burguesia portuense.



Leonardo Coimbra, em 1914, data em que, na Póvoa, se despediu do seu "Lyceu". 



O velho burgo do Porto, sempre na defensiva de um radicalismo sério, ordeiro e pacato, e de um moralismo ferozmente apegado ao conceito de honestidade, - de honestidade masculina e feminina - via no anarquismo um aspecto demasiado apressado, aguerrido e declamatório, de uma transformação social que deveria ser feita no decurso lento dos séculos. Os anarquistas eram, na terminologia de então, os avançados.

O anarquismo corresponde ao pessimismo da adolescência, e nessa correspondência encontra fundamento a sua parcela de verdade. A doutrina anarquista consiste na obstinada afirmação de que nenhum governo, nenhum regime político, satisfará as generosas aspirações humanas. A posição anarquista é instável, e o desenvolvimento da doutrina, promovido por desesperada oposição ao existente, ou mergulha na negridão do crime, alcunhado de acção directa, ou ascende à candura do misticismo, numa evasão da vida social. Quem conhecer algumas das venerandas figuras de sobreviventes da propaganda anarquista no nosso país, reconhecerá nesses simpáticos anciãos a perenidade da adolescência: o olhar ainda brilhante e o sorriso sempre bondoso como sinais de acolhimento a renovadas expressões de idealismo utópico que condene, em toda a extensão, a condição política em que o homem, segundo Aristóteles, é obrigado a viver.

A proclamação da República, como que despertasse o povo para o chamar à realização do sonho, reconciliou muitos dos acratas com o aspecto irracional da actividade política, e Leonardo Coimbra, julgando possível inserir valores espirituais nas instituições que iriam ser remodeladas, transitou de anarquista a republicano. A colaboração prestada à acção cultural da Renascença Portuguesa - sociedade de que Leonardo Coimbra foi um dos mais activos colaboradores, embora não compartilhasse da doutrina que a caracterizava e fundamentava, sociedade que a custo se manteve independente dos partidos políticos, - demonstra que o antigo anarquista não ambicionava o poder e que, se alguma autoridade reconhecia, era a de essência espiritual.

A acusação de ter sido anarquista foi inúmeras vezes proferida contra Leonardo Coimbra pelo vulgo que não admitira, não esquecera, nem perdoara a transformação que se tinha dado na alma do pensador. Ouvimos a injúria durante a última campanha eleitoral em que Leonardo Coimbra interveio com o fogo da sua eloquência. Estava o orador criticando as doutrinas extremistas quando um dos ouvintes, num ímpeto de exaltação, interrompeu o discurso com a imprecação conhecida:

- Mas V. Ex.ª também já foi anarquista!...





Leonardo Coimbra, habituado a dominar a agitação das turbas pelos raros dotes de orador, não se intimidou com os sussurros, replicou serena e prontamente:

- Sim, senhor. Também mamei, também gatinhei, mas, palavra de honra, não fiquei toda a vida a andar a quatro patas. E agora tenho os braços livres para os erguer em prece, dou graças a Deus por me ter feito à sua imagem e semelhança.

Uma salva de palmas abafou os murmúrios, e, depois dos aplausos, o pensador respeitado continuou a sua oração magnífica.

Outra injúria que, de certo modo, completava a primeira, era disseminada em forma de boato e consistia em anunciar, para breve, a nomeação de Leonardo Coimbra para um dos melhores lugares de confiança do Governo da República, e entre esses, avultavam o de Embaixador no Rio de Janeiro, em Madrid ou no Vaticano. Sabia-se quanto o filósofo se desgostaria ao ver-se afastado da missão de educador, sabia-se que Leonardo Coimbra não poderia aceitar cargos em que dificilmente exprimiria a vontade do povo; mas o boato vingativo daqueles que condenaram o homem superior ao ostracismo, ia fermentando num ambiente de insultos e de injúrias.

A República que o povo sonhara durante a propaganda não se realizou, e o desmentido veio confirmar mais uma vez o pessimismo dos anarquistas. Os próprios republicanos ficaram desiludidos no decurso dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, e, de certo modo, inconcordes com as instituições que não correspondiam às doutrinas propagadas. O novo regime ficaria juridicamente estruturado nos moldes do constitucionalismo anglo-francês e desse modo iria entravar o andamento da revolução democrática.

Os republicanos enfrentam uma crise ideológica que exteriormente se manifesta pela multiplicidade dispersiva dos jornais políticos e pela falta de livros onde a doutrina continuasse a ser renovada em expressão vernácula e deduzida de princípios filosóficos; as consequências necessárias de uma crise desta ordem reflectiram-se nas gerações mais novas, e os estudantes universitários foram pouco a pouco aceitando as doutrinas propagadas nos livros das correntes opositoras.

É durante esta crise que Leonardo Coimbra expõe e desenvolve uma doutrina democratista, um pensamento político original e autónomo, que inteiramente se distingue do republicanismo dos seus contemporâneos e compartidários. Raras vezes se prestou devida justiça à iniciativa isolada deste doutrinador.





O pensamento criacionista afirma a liberdade humana e garante-a por um personalismo monadológico; a mesma filosofia preconiza o acordo social das vontades na decisão política e na aceitação da escala de valores que culmina em Deus; mas indefine, reduz ou anula qualquer relação hierárquica na ordem dos espíritos humanos. Leonardo Coimbra defendia um republicanismo democratista. República significava não só o bem de toda a nação, o que não pode ser confiado a uma sociedade particular de qualquer ordem ou grau, e muito menos a uma família nobre, mediante eleição em cortes gerais, mas ainda o que deve estar aberto à crítica do que sem distinção se chama "público". Democracia é um regime, que dos outros se delimita e define, pela significação atribuída à palavra povo. O povo era mais bem representado pelo aldeão e pelo vilão do que pelo cidadão, e assim o democratismo situa-se, de princípio, em oposição ao sindicalismo urbano. Aos governantes competiria auscultar a vontade do povo, dar-lhe expressão racional e execução técnica, para o que deveriam ser altas consciências em humilde atitude de ligação com Deus.

Não era, porém, esse aspecto o que na administração pública se observava. Assim, o filósofo é levado a escrever:

"Quanta mulherzinha do povo eu tenho visto pôr o universal nas suas acções, enquanto os grandes magistrados da minha República nelas colocam os seus retóricos interesses de vaidade!"».

Álvaro Ribeiro («Leonardo Coimbra e a Política do seu Tempo»).





 Pela República, contra o Socialismo

TESES E ANTÍTESES


A constituição é a lei fundamental que define, regula e coordena a actividade das instituições políticas existentes num país. A constituição é, pois, o nome dado a um conjunto de instituições. A pluralidade há-de adunar-se de um modo orgânico, vivo e pacífico, para assegurar o funcionamento normal da República.

Do nosso conceito de constituição excluímos, portanto, qualquer texto de proclamação ou declaração dos direitos individuais, sejam do homem, da mulher ou da criança, como também o programa ou promessa de os defender, proteger ou realizar. O texto jurídico, definido ou a definir para tal fim, situar-se-á fora da constituição política, e já Oliveira Martins ensinava que para tal lugar existe o Código Civil. Muito menos consideramos constitucional qualquer programa ideológico ou executivo, de carácter material e contingente, e portanto abusivo na forma de lesar a unanimidade do consentimento nacional.





Integrar o programa de um partido político nas expressões descuidadas e incorrectas de uma constituição mal pensada e mal redigida é violentar o direito da República pela intromissão de interesses próprios de associações particulares, ou, até, dos corpos gerentes que materializam as chamadas forças sociais. É alterar, de precioso modo, a velha doutrina da divisão ou da distribuição dos poderes por entidades cujo estatuto jurídico não é já o das instituições. Tais erros que passam pela imprecisão da nomenclatura técnica são provenientes de sociologias falsificadas.

As instituições republicanas oferecem características especiais que nem sempre são respeitadas ou compreendidas pelos doutrinadores. Acontece, por isso, que os legisladores adulteram consciente ou inconscientemente os acidentes que envolvem mas definem a noção de República. Não haverá República onde a constituição designe, como orgão de soberania, um Presidente Militar, uma Junta Militar, um Conselho Militar.

A República emerge da vontade dos cidadãos, ou dos civis, que desejam conhecer, através dos orçamentos discutíveis, a aplicação dos impostos, das contribuições ou dos descontos que incidem sobre o rendimento do trabalho. Ela é, etimologicamente, o Bem Público, e por isso a sua administração, ou o seu negócio, foi legitimamente da confiança dos reis, ou dos seus secretários, como aconteceu durante séculos na história de Portugal. A mentalidade dos militares, que sempre gozaram de privilégios em relação aos civis, privilégios aliás justificados para útil, eficiente e glorioso exercício das armas, ou Exército, não se compadece facilmente com as honras e as dignidades atribuídas aos governantes civis, nem com o sentimento igualitário e anónimo do povo.

O socialismo pode, e deve, ser interpretado como a aplicação das categorias do pensamento militar à organização económica da sociedade. Tal se prova nos raciocínios comparativos de destruição com a construção, a qual obedecerá muito mais aos artifícios da indústria e do tráfego do que ao naturalismo da agricultura e do comércio. Os impostos e as imposições, as expropriações e as nacionalizações, o planeamento e a estratégia de uma economia sem lucro nem liberdade, incluem imagens próprias da violência totalitária e da utopia indiscutível.

Durante quase dois séculos, Portugal constitucional, monárquico e republicano, foi assaz vezes perturbado na sua normalidade política pela intervenção ilegal dos militares que, através de intrigas palacianas, conspirações secretas e pronunciamentos súbitos, aspiravam à posição de primeiros ministros e até de chefes do Estado. Em consequência, o soberano legal via-se obrigado a consentir novo ministério, a dissolver o parlamento, a decretar novas eleições. Factos e figuras que documentam a instabilidade, a inquietação e a irritação do povo trabalhador e da burguesia capitalista encontram-se nas páginas evidentes e ostensivas dos livros escritos por jornalistas, memorialistas e historiadores.






A Realeza foi uma instituição ilustrada ou prestigiada pelo valor sagrado da continuidade governativa. Ensinaram, ou deixaram ensinar, os monarquistas a doutrina errónea de que a sucessão dinástica assentava no princípio da hereditariedade, e com tal argumento falso e absurdo deram motivo a críticas que, afinal, concluíam pela licitude da tirania, da boa ou má tirania, na acepção usada pelos Gregos. A verdade é que a sucessão legítima, agracia e aclama o principal, não porque ele haja sido o filho do rei morto, inválido ou destronado, mas pela razão suprema de que havia sido educado para o ofício de reinar, e a prova está patente nos raros casos em que a coroa passou de irmão para irmão.

A República tornou-se incompatível com a Monarquia nos tempos e lugares em que já um homem não pode ser o único a governar, pelo que o rei absoluto terá de dividir os poderes pelos seus pares nobilitados. O Senado é, pois, a instituição característica e própria da República. Designado assim porque os seus gerontes ou maiores de quarenta e cinco anos de vida, se encontram no esplendor de uma idade significativa de suficiente experiência, o Senado é um orgão de soberania política, mas constituído por um escol de filósofos que representam a tradição milenária, a recordação de um recente mas ignorado passado, enfim, a conservação saudável das leis do País.

O Senado recruta, ou deve recrutar, os seus nobres membros como se fosse uma Academia, e terá tão poucos e escolhidos sócios como ela. Lar sagrado de velhos e sábios, as suas funções serão severamente consultivas, porque a decisão política pertence a pessoas mais novas, que assumem livremente o seu longo futuro, e que, portanto, hão-de merecer o benefício ou o malefício das leis que elaborarem e dos actos que aprovarem. Se os mortos mandam mais do que os vivos, como ensinou Augusto Comte, o conhecimento das leis históricas dará o melhor aviso, a melhor prevenção e o melhor ensinamento que possa opor-se às utopias raciocinadas pelos deputados impacientes, às promessas devidas mas nunca cumpridas.

Esta simples nota de direito constitucional, com suas teses e antíteses, tem por fim, termo ou meta a síntese de que, apesar das ficções jurídicas e burocráticas, que surgiram depois, só de 1910 a 1926 existiu a República em Portugal. Decerto que teve ela muitos erros de estrutura, previstos e condenados por Téofilo Braga, mas abonados nas lições universitárias de Marnoco e Sousa; decerto que ela não cumpriu a promessa de reformar a educação pública pelo modelo francês do Sistema de Política Positiva; decerto que o seu partidismo ou partidarismo lhe causou desagregação tão grave, a ponto de um experimentado estadista, conhecedor profundo do significado técnico das palavras portuguesas, ter dito em pleno parlamento que o País estava a saque. Sempre cobiçada pelos militares, e conquistada sem luta nem dificuldade a 28 de Maio de 1926, a República Portuguesa permaneceu de nome nas moedas e nos selos, mas as suas instituições deixaram de se constituir nos termos definidos pelos pensadores, escritores e artistas (in Escola Formal, n.º 6, Junho de 1978, pp. 19-20).







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