Organizador da lógica dedutiva, baseada no instrumento racional do silogismo, que funciona qual operação aritmética de matemática pura, ainda hoje a humanidade não dispõe de outra lógica dedutiva que não seja a de Aristóteles. Bacon, no Novum Organon, ensaiou uma lógica indutiva, mas não conseguiu, nem alterar as regras universais da lógica dedutiva, nem demonstrar erro nas teses de Aristóteles quanto à indução, que este minorava, por achar que, nos acidentes, não há forma de progredir senão pela análise de acidente a acidente, sem hipótese de universalização de uma série, classe ou conjunto de acidentes. As tentativas francesas devidas, no século XVIII, a autores quais Destutt de Tracy, ficaram na mesma, e nada alteraram à regra do silogismo preconizada e construída por Aristóteles».
Pinharanda Gomes (in Prefácio a Aristóteles, «Organon , I Categorias, II Periérmeneias», I Volume).
«O empirista é, antes de mais, um zeloso coleccionador. Coleccionar, classificar e catalogar todos os objectos de estudo são efectivamente actos progressivos pelos quais se adquire o conhecimento mais duradouro e mais fecundo. Ao encontro repetido com as coisas chama o vulgo experiência. Tal experiência vale quando acompanhada da distinção racional dos diferentes entre os semelhantes, quando progride até ao princípio de individuação, quando não receia nomear o inefável. A tolerância metodológica do empirista tem um admirável complemento na classificação ética e jurídica, porque, em vez de excluir e eliminar, atribui um lugar social a tudo quanto é de existência natural.
É claro que o coleccionador parte do que o nosso povo chama uma ideia preconcebida, concebida por outros e depositada na linguagem, ideia a que alguns subjectivistas chamariam um a priori. O mérito da colecção não consiste apenas na conservação. Coleccionar é verificar se a multiplicidade de exemplos confirma ou não a regra, provando ou reprovando. O coleccionar tem de estar apto a alterar a classificação e a catalogação sempre que as diferenças avultem sobre as semelhanças, sabido que um novo critério sugere um novo conceito. Analisando a expressão «uma ideia preconcebida», poderemos agora entender o que significa aristotelicamente o conceito, o resultado do acto de conceber, em frente da multiplicidade do real.
Vemos assim a utilidade dos museus, das bibliotecas e dos arquivos, utilidade tanto maior quanto mais articulada com os estudos escolares. Aristóteles distinguiu-se na Antiguidade pelo seu empirismo de coleccionador; distinguiu-se principalmente dos dialectas ou argumentadores que pretendiam fazer calar os adversários à custa de paralogismos ou de sofismas. Caracterizam-se os escritos aristotélicos pela acumulação de exemplos classificados e catalogados para o escopo final, documentos de escola em que o texto magistral parece retocado e alterado por mãos de discípulos em detrimento da unidade de estilo e de doutrina.
A atenção à multiplicidade exige por método lógico a indução. A metodologia científica de Aristóteles é fundamentalmente indutivista. Posto que a indução perfeita só seria possível depois da colecção perfeita, enuncia-se o problema lógico não já com palavras da experiência mas com palavras de razão. O processo indutivo parece não legitimar a certeza e a verdade, pelo que terá apenas valor provisório enquanto um processo superior não o converter por necessidade. Nesta crítica, muitas vezes feita, ao raciocínio indutivo se abre atalho para contradizer o pensamento de Aristóteles.
A indução tem por fim o conceito. Induzir para conceber. Considerados no intelecto humano os aspectos passivo e activo, nada nos custa a entender a fecunda passividade do intelecto perante o que é móvel, múltiplo, contingente. De repetirmos a mesma operação intelectual, tantas vezes quantas as requeridas, nos surge gratuitamente o conceito que merecíamos em prémio da nossa fadiga.
Se, pelo contrário, julgarmos que a indução tem por fim o juízo, a relação ou lei, desvirtuaremos o significado da palavra inferência, cairemos fora da lógica aristotélica. A lógica do conceito é uma lógica realista. Os nominalistas e os terministas, imitando a abstracção matemática, deram ao problema dos universais uma solução que prepara a falácia do idealismo, e serviram assim o engenho de análise mortífera e de uniformidade industrial que lacera, em vez de redimir, a Natureza.
A lógica de Aristóteles não é apenas uma arte de raciocinar coerente e consequente mas uma arte de raciocinar de acordo com a realidade. Se nos é fácil refutar os sofismas grosseiros sempre que sem mediação (imediatamente) vejamos inadequação entre o pensamento e a realidade, como no caso das afirmações tão absurdas que se cobrem de ridículo, já é mais difícil discernir o elemento que sustenta a falsidade dos paralogismos, da dialéctica e da metafísica. Um estudo analítico da sofismação nos adverte lucidamente contra o hábito pernicioso de aceitar como raciocínios completos e perfeitos, de incidência ontológica, fragmentos ou elementos de uma argumentação que convém interpretar. Cada época é dotada de um tipo especial de sofismação, e bem sabemos quanto nos custa estar alerta para não sermos surpreendidos e vencidos pelos sofismas dos nossos contemporâneos. Correm mundo os sofismas parlamentares, jornalísticos, estatísticos, etc. A analítica de Aristóteles continua, todavia, a dar-nos os melhores ensinamentos de defesa contra os raciocínios incompletos, isto é, contra todos os processos de sofismação».
Álvaro Ribeiro («Aristóteles e a Tradição Portuguesa»).
«Nova acuidade adquire agora a dificuldade de situar a lógica. É que o não haver filosofia sem lógica significa que há uma lógica para a singularidade de cada pensador e de cada pensamento. Por singularidade não se deve aqui entender o único, originário, irredutível, pois não existe, nesse sentido, pensador algum, pensamento algum. Deve entender-se, sim, a individualidade de cada pensador e a actualidade de cada pensamento, que são aliás solidárias.
Só na individualidade de cada pensador a actividade de pensar é real. Mas nessa individualidade, no tempo e para o tempo em que ela existe, o pensamento não faz mais do que actualizar o que não depende do tempo ou está para além dele. Não há autêntico pensador que não percorra, desde a origem da filosofia, todo o percurso da filosofia. Não há tese, a que o pensamento dá expressão, na qual não esteja suposto todo o sistema ou síntese em que ela se articula. Hegel dá-nos bem a sua razão para que tal aconteça: "Sendo a mesma a essência da filosofia, cada filósofo que se sucede necessariamente incorporará na sua as filosofias que a precederam e de tal modo só poderá considerar como sua obra própria e peculiar o modo como as desenvolve e exprime" [Hegel, Lecciones sobre la Historia de la Filosofia, México, ed. Fondo de Cultura Económica, 1955, p. 145].
Compreende-se portanto que a lógica se apresente em tantas e tão variadas modalidades quantas e quais as que se sucedem desde o organicismo aristotélico. Trata-se de uma sucessão cuja gradual degenerescência Álvaro Ribeiro descreve com clareza e rigor. Terá ela começado com a substituição do logismo, que é o enunciado de uma tese, pelo juízo, que é "apenas a relação entre um termo menor e um termo maior, relação espacial de inclusão de objectos em classes" [Álvaro Ribeiro, A Razão Animada, Lisboa, Livraria Bertrand, 1957, p. 132] ou "em géneros, estes entendidos de um modo totalmente exterior como resultantes, pura e simplesmente, de a reflexão coleccionar, para maior comodidade nossa, determinações iguais de várias coisas concretas" [Hegel, idem, p. 160]. A consequente "combinação espacial mecânica dos juízos" está já "no caminho traçado desde o quadro de Miguel Psellus às previsões de Ramon Lull e às profecias de Leibniz" [A. R., idem, p. 133], seguindo depois pelo criticismo de Kant que "tornou inviável a filosofia" [Hegel, Science de la Logique, Éd. Aubier, 1969, "introduction"], levando à "absorção pela matemática de uma lógica que já nada tinha a ver com a filosofia" e "concluindo-se nos Principia Mathematica, de Alfred Whitehead e de Bertrand Russell [A. R., idem, p. 133]».
Orlando Vitorino («As Teses da Filosofia Portuguesa»).
As colunas do Theseion em Atenas |
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59. Eu chamo qualidade a aquilo por onde se designa quais sejam certos e determinados objectos.
60. Mas a qualidade é do número daquelas palavras, que admitem muitos sentidos. Porquanto há primeiramente uma espécie de qualidades, que é a dos hábitos e afeições. E difere o hábito da afecção, em ser mais diuturno, e mais permanente. Porque a ciência parece ser o número das coisas mais estáveis e menos mudáveis, por pouca que seja a ciência adquirida, uma vez que por doença, ou por outra alguma semelhante causa, não tenha acontecido grande transtorno na pessoa. Do mesmo modo a virtude, como a Justiça, a Temperança, ou qualquer outra semelhante, não parecem ser coisas que mudem facilmente, ou que facilmente variem.
Ora chamam-se afecções aquelas que mudam facilmente, e que variam com prontidão, tais como, o calor, o frio, a saúde, a doença, e outras semelhantes coisas. Porque o homem de algum modo está sujeito a elas, e com facilidade muda, passando de quente a frio, e do estado de saúde ao de doente. E o mesmo é dos outros casos. Contudo poderia alguém dizer que uma afecção, que tendo durado muito tempo, se tem convertido em natureza, nem se pode destruir, merece o nome de hábito. Mas nisto mesmo se mostra, que o que se quer entender por hábito, é o que é de maior duração e de mais difícil mudança. Porquanto, falando nós daquelas pessoas que não possuem bastantemente alguma ciência, nunca dizemos que esta seja nelas um hábito, porque umas vezes estão em melhor, outras em pior estado, relativamente à mesma ciência. Por onde difere a afecção do hábito em que a primeira é fácil de mudar e a segunda é de mais duração e de mais dificultosa mudança. Mas todos os hábitos são afecções, posto que nem todas as afecções sejam necessariamente hábitos. Porquanto, aqueles que têm algum hábito, são em certo modo afectados por ele. Ora, de quem está afectado não se pode dizer que tem um hábito.
61. E há uma segunda espécie, que é aquela pela qual dizemos de alguém, que ele é fraco ou que é forte no pugilato, ou na carreira, ou na saúde, ou pela qual em geral afirmamos alguma coisa sobre a força ou a fraqueza própria da natureza de qualquer objecto. Porque de nenhuma destas coisas se diz que alguém está afectado, mas sim que têm a força física ou a impotência de fazer alguma acção ou de não sofrerem alguma paixão. Por exemplo, os que se dizem hábeis no pugilato, ou na carreira, não se dizem tais, porque se achem afectados de um certo modo, mas porque têm a força física de fazerem certas coisas facilmente. Os que se dizem sadios, dizem-se tais, porque têm a força física de não sofrerem facilmente dos acasos que atacam a saúde. E enfermiços os que são dotados da impotência para resistirem a esses mesmos acasos. Semelhantemente a estas expressões se verifica com as de duro e de brando; que se chama duro, porque tem a força de se não partir facilmente, e brando, porque é dotado de impotência para lhe acontecer outro tanto.
Pankrácio. Ver aqui |
62. Há outra terceira espécie de qualidades, que são as qualidades passivas, ou as paixões. Tais são, por exemplo, a doçura, o amargo, o travo, e outras coisas do mesmo género. E assim também o calor e o frio; a brancura e a negridão. Serem todas estas coisas qualidades, é evidente, porque por elas é que se determina, de que qualidade são os objectos, que delas são susceptíveis. Por exemplo, o mel, por isso que entra na natureza a doçura, é que se chama doce; e um determinado corpo por isso se diz branco, porque nele se verifica a brancura. O mesmo acontece com todas as outras expressões.
As qualidades dizem-se passivas, não porque os objectos, em que elas se verificam, padeçam alguma coisa; porque ao mel não se lhe chama doce, porque padece de alguma coisa e assim nos outros semelhantes; como também o calor e a frialdade se dizem qualidades passivas, não porque as substâncias, em que aquelas qualidades se encontram, padeçam de alguma coisa, mas porque, segundo as sensações que cada qual daquelas qualidades produz, é causa de uma paixão. Pois que a doçura produz uma paixão no gosto, e a frialdade no tacto, e assim das demais. Quanto à brancura, à negridão, e às outras cores, sim, se chamam também qualidades passivas, mas não pela mesma razão das que acabamos de falar, mas porque derivam de uma paixão. Que há muitas mudanças de cor, que derivam de alguma paixão, é coisa evidente; pois que o homem que se envergonha se torna vermelho, e amarelo, o que se toma de medo; e assim nos demais casos semelhantes. De maneira que todas as vezes que alguém houver experimentado alguma destas paixões, por ser isso próprio da sua natureza, também se pode concluir com toda a probabilidade, que tomou aquela mesma cor. Porque é de notar, que a afecção há pouco observada no corpo por ocasião do pejo, também pode verificar-se por efeito da constituição física, e por isso pode também resultar a mesma cor, em consequência da natureza do sujeito.
Todos os sintomas pois que assim como os mencionados, tiram a sua origem de alguma paixão durável ou menos sujeita a variar, chamam-se qualidades passivas, quer seja pela própria natureza das coisas (tal como a negridão) por isso que as coisas se dizem tais relativamente a elas; quer seja porque em consequência de uma longa enfermidade, ou por uma queimadura, sobreveio ao sujeito a palidez, ou negridão, de modo que, ou não mudam facilmente, ou talvez duram por toda a vida, pois também nestes casos se chamam qualidades, por isso que, também relativamente a elas, se denominam tais os objectos. Mas os que derivam de paixões que facilmente se desvanecem, e com prontidão se mudam, não se chamam qualidades, mas paixões, pois que nunca os objectos se dizem ser tais relativamente a elas. Assim, do homem que por efeito do pejo se fez vermelho, não dizemos que é vermelho, nem daquele que se tornou pálido por medo, dizemos que é pálido, mas somente dizemos que experimentaram certa paixão. E portanto são aquelas paixões, e não qualidade. Semelhantemente no que respeita à alma, umas se chamam paixões e outras qualidades passivas. Porquanto aquelas que logo na sua origem se acham, terem derivado de paixões, que dificilmente variam, chamam-se qualidades, tais como a alienação mental, a cólera, e outras semelhantes, pois que relativamente a elas se dizem os homens coléricos, maníacos. E do mesmo modo nas demais desordens que se afastam da humana natureza, mas que de tal modo derivam de outros sintomas, que ou são mui difíceis de mudarem, ou são absolutamente inamovíveis, pois todas elas se chamam qualidades, por isso que conformemente a elas se dizem os homens tais. Aquelas porém, que derivam de sintomas que fácil e brevemente mudam, chamam-se paixões, como quando alguém, experimentando um dissabor, se encoleriza, porque em tal caso não se diz que ele é colérico por se ter encolerizado durante aquela paixão, mas antes se diz que ele padeceu alguma coisa. Assim, todas estas coisas se chamam paixões e não qualidades.
Aristóteles de Francesco Hayez (1811). |
Porventura parecerá que o denso e o raro, o liso e o áspero, entram no número das qualidades. Mas a mim parece-me que estas expressões designam coisas alheias da rubrica da qualidade, pois é manifesto que qualquer delas denota mais depressa uma certa disposição de parte. Porquanto, denso denota que as partes estão aconchegadas; raro, que estão distantes umas das outras; liso, que estão todas em um mesmo plano; e áspero, que umas são mais altas, e outras mais baixas. Também parecerá talvez haver mais alguma outra espécie de qualidade. Mas as que ordinariamente assim se denominam são estas.
64. Eis aqui as que se chamam qualidades: chamam-se tais os objectos que por cognominação se dizem a respeito delas, ou por algum outro modo trazem delas o nome, pelo qual os designamos.
65. Da maior parte e de quase todas elas se derivam por cognominação aqueles nomes. Por exemplo: de brancura, branco, de literatura, letra, de justiça, justo, e assim nos demais.
66. Mas em algumas não pode ter lugar a cognominação, porque não existe nome para a respectiva qualidade. Por exemplo: tratando-se de alguém, que possui a habilidade do pugilato, ou da carreira, não existe qualidade nenhuma, donde ele derive competente nome, porque aquelas habilidades não têm nomes, conforme aos quais, o que as possui, se diga tal, do mesmo modo que se chama atlética a ciência do atleta e cursória a do corsador; e conforme aquelas denominações, se chamam tais os que possuem semelhantes ciências.
Algumas vezes, porém, tendo o nome a qualidade, nem por isso se denota cognominadamente o sujeito que a possui.
67. Em outros, porém, posto que a qualidade tenha nome, o do objecto a que ela se refere, não se deriva por cognominação. Por exemplo: garbo diz-se daqueles que têm maneiras nobres e engraçadas, mas não há expressão cognominada para denotar o sujeito em que se verifica semelhante qualidade. Mas isto acontece em mui poucos casos. Assim, chamam-se tais todas as coisas que, por cognominação, derivam seus nomes dos de alguma qualidade (ob. cit., pp. 45-46 e 86-94).
[No que respeita a este último trecho, Pinharanda Gomes, na sua tradução das Categorias de Aristóteles, apresenta-nos a seguinte versão:
«Por vezes, mesmo quando há um nome particular para a qualidade, a coisa qualificada por ela tem um nome que não deriva dessa qualidade, por exemplo, homem honesto é assim qualificado por causa da virtude, pois é em vista da virtude que ele é dito honesto, embora o seu nome não derive do substantivo virtude. Contudo, casos como este são raros.
Assim, pois, dizemos que possuem esta ou aquela qualidade as coisas de nome derivado das qualidades indicadas, ou que, de qualquer outro modo, delas dependem» (in Organon, I Categorias, II Periérmeneias, I Volume, Guimarães Editores, 2006, p. 77)].
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