Escrito por Frederico Nietzsche
«Por que sei eu mais do que os outros? Por que sou em geral tão sagaz? Nunca meditei sobre problemas que o não sejam verdadeiramente – nunca me dispersei. Perplexidades religiosas, por exemplo, não as conheço de própria experiência. Está para mim fora de questão saber em que medida podia ser “pecador”. Falta-me também critério seguro do que é um remorso; pelo que se ouve dizer, o remorso não me parece de nenhum modo digno de atenção... Nunca poderia suspender um acto depois de o ter iniciado, prefiro eliminar sistematicamente a consideração do êxito negativo e das consequências em problemas de valores. Perde-se facilmente a visão rigorosa do que se fez quando se atende ao êxito no que empreendemos: o remorso aparece-me como uma espécie de “má retrospectiva”. Ter em alta conta o que se malogrou, enquanto se malogrou, eis o mais conforme com a minha moral.
“Deus”, “imortalidade da alma”, “salvação”,
“além”, são simples conceitos aos quais não dediquei atenção, ou tempo, nem
sequer em criança – talvez eu não fosse já bastante infantil para tal? Não
considero o ateísmo como resultado, e ainda menos como um facto; para mim, o
ateísmo é forma estrutural de ser. Sou demasiado curioso, demasiado problemático,
demasiado orgulhoso, para contentar-me com respostas grosseiras. Deus é uma resposta
grosseira, uma indelicadeza para nós outros, pensadores: no fundo, é
simplesmente grosseira proibição. É o mesmo que dizer-nos: Não deveis pensar!...
Interessa-me de modo bem diferente um
problema do qual, muito mais do que qualquer curiosidade de teólogos, depende a saúde
da humanidade: o problema da nutrição. Em forma corrente, pode cada homem
pôr-se tal problema nestes termos: “Como hás-de alimentar-te para chegar a
possuir o mais alto grau de ‘virtude’, segundo o estilo do Renascimento, de
virtude que liberta de todo o elemento moral?” Neste ponto, são as minhas
experiências o pior que é possível; estou espantado de tão tarde ter prestado
ouvidos a tal pergunta, de ter tão tarde aprendido a “razão” de tais experiências.
Só a futilidade completa da nossa cultura alemã – o seu “idealismo” – me
explica por que motivo, e justamente aqui, tive algumas relações com a
santidade... a cultura alemã, que ensina, de início, a perder de vista a
realidade, e ir à caça, por exemplo, da “cultura clássica”: como se não fosse
coisa condenada desde todo o princípio ligar “clássico” e “alemão” numa só
forma de conceber! Dizendo tudo, e só mencioná-lo faz despontar o riso: pense-se
num habitante de Leipzig com uma “cultura clássica”!
De facto, sempre até aos anos de maturidade comi mal, ou falando moralisticamente, diria que comi de maneira “impessoal”, “desinteressada”, “altruísta”, para glória dos cozinheiros e de outros irmãos em Cristo. Adoptando a cozinha de Leipzig, por exemplo, na mesma época em que empreendia o meu estudo de Schopenhauer (anos de 1865), negava muito a sério a minha vontade de viver. Arruinar o estômago e alimentar-se ao mesmo tempo de modo deficiente, eis um problema que a aludida cozinha se me afigura resolver de modo muito satisfatório. (Diz-se que o ano de 1866 trouxe neste ponto melhoria). Quantas coisas, por tal estilo, não tem, entretanto, na consciência a cozinha alemã em geral! A sopa antes da refeição (ainda em livros venezianos de arte culinária do século XVI se designa isso como “à maneira alemã”); a carne muito cozida; a hortaliça grossa e suculenta; a degenerescência dos bolos, até fazer deles pesa-papéis. Se, além disso, tivermos em conta a necessidade que sentem os velhos alemães, e não só os velhos, compreender-se-á melhor ainda a origem do espírito alemão – que provém de desarranjos intestinais... O espírito alemão é uma indigestão, nada digno dá de si.»
Frederico Nietzsche («ECCE HOMO: Como se chega a ser o que se é»).
«Uma vez que Nietzsche se estabeleceu
no Sul, já está para além de todo o seu passado; está já completamente desgermanizado,
do mesmo modo que abandonou a filologia, cristianismo e moral; e nada
carateriza tanto essa natureza excessiva e que sempre avança sem freio como
este simples facto: que nunca deu um passo atrás nem dirigiu um olhar de
melancolia para o seu passado. O navegante que marcha até ao reino futuro está
demasiado feliz por ter embarcado “no mais rápido navio que há para ir a
Cosmópolis” para que possa sentir a nostalgia da sua pátria, que só tem um idioma
para se expressar e, portanto, é unilateral e uniforme; qualquer tentativa de
querer germanizar Nietzsche deve ser condenada como um erro crasso (hoje muito
corrente). Não é possível, para este homem arquilivre, regenerar a liberdade;
desde o momento em que sente sobre si o imenso azul do céu de Itália, a sua
alma estremece ao pensar na escuridão que procede das nuvens, dos anfiteatros
universitários, da igreja e do quartel; os seus pulmões, os seus nervos
atmosféricos já não podem suportar nada do Norte, nada de germânico, nada de
excesso, já não pode viver de janelas fechadas, com as portas cerradas na
penumbra, num crepúsculo ou entre neblinas intelectuais. Ser sincero é, desde
esse momento, ser claro, ver em todas as direcções e traçar contornos no
infinito; e, desde que divinizou, com toda a embriaguez do seu sangue, esta luz
aguda, incisiva e penetrante do Sul, renunciou para sempre ao “génio ou ao
diabo propriamente alemão, o demónio da escuridão”. A sua sensibilidade quase
gastronómica, agora que vive no “estrangeiro”, no Sul, vê em tudo o que é
alemão uma alimentação demasiado pesada para o seu gosto refinado, uma espécie
de “indigestão”, uma necessidade de não terminar com os problemas, um deixar
arrastar a vida pelo rolo compressor da alma: o alemão já não é e nunca mais
será para ele bastante livre e bastante “ligeiro”.
Até as obras que, antes, o deleitavam,
causam-lhe agora uma espécie de peso de estômago intelectual; sente esse peso
nos Mestres Cantores; esta obra
desagrada-lhe, considera-a barroca e de uma serenidade forçada; em
Schopenhauer, nota sensação de secura; em Kant, descobre um ressaibo de hipocrisia,
de um moralismo oficial; em Goethe, excesso de peso causado pelas suas funções
oficiais e pelos horizontes voluntariamente limitados. Tudo o que é alemão é
para ele crepúsculo, penumbra, escuridão, sombras do passado, excesso de
história; um fardo resulta demasiado pesado para o seu novo “eu”, que é algo
cheio de possibilidade, mas nada claro: uma interrogação contínua, um desejo
ininterrupto de procurar uma perene transformação dolorosa, uma oscilação
perpétua entre o “sim” e o “não”. Mas não se trata somente de uma intranquilidade
intelectual perante a estrutura espiritual da nova Alemanha de então, que tinha
chegado realmente ao seu ponto extremo; não se trata só de um descontentamento
político causado pelo “Império” e por todos os que sacrificaram a ideia alemã ao ideal do cânone; não é só uma antipatia estética em relação à Alemanha dos
móveis de pelúcia, de Berlim e das Colunas da Victória.
A nova doutrina do Sul, que é a de Nietzsche, exige, em toda a atitude de vida, a vida inteira, toda a espécie de problemas, e não só problemas nacionais; reclama a vida inteira, pura e clara como o Sol, “luz e só luz”, embora ilumine coisas más. Uma clareza livremente que brota, “luz, simplesmente luz”, a mais alta voluptuosidade para a mais alta limpidez – uma gaya scienza e não o didactismo pedagógico, tragicamente enfadonho da “condição escolar”, essa erudição paciente, gravemente profissional, dos alemães que cheira a gabinete e a sala de aula. A sua renúncia definitiva ao Norte não procede do seu espírito, do seu intelecto, mas dos seus nervos, do coração, do sentimento, das suas próprias entranhas; é um grito dos seus pulmões que, por fim, encontram ar livre; é a alegria de alguém que, finalmente, encontrou o “clima apropriado à sua alma”, à liberdade; daí esse grito de alegria íntima: “Dei o salto!”».
Stefan
Zweig («Nietzsche: O Combate com o Demónio»).
«(...)
para Heidegger, a metafísica chega à sua conclusão no pensamento de Nietzsche.
(...) A metafísica chega ao seu termo com
Nietzsche na medida em que este se apresenta como o primeiro niilista
verdadeiro; e a essência mais profunda da metafísica é precisamente o niilismo:
“A essência do niilismo é a história em que do ser já não fica mais nada”, e
essa história é justamente a história da metafísica como “esquecimento cada vez
mais petrificado do ser”.
Visto que a metafísica não é algo que diga respeito só ao pensamento, mas também ao próprio ser, o “não ficar já nada” do ser torna-se no sentido mais literal: O ser não só é esquecido como ele próprio se oculta ou desaparece; o Ocidente é a terra da metafísica como terra do ocaso do crepúsculo do ser.»
Gianni
Vattimo («Introdução a Heidegger»).
Por que sou uma fatalidade
1. Conheço
o meu destino. Dia virá em que apareça ligado ao meu nome memória de alguma
coisa de formidável – de uma crise tal como jamais houve outra sobre a terra,
do mais profundo choque de consciências, de um juízo proferido contra tudo
quanto até hoje foi motivo de fé, de tudo quanto se exigiu, se santificou. Não
sou homem, sou dinamite. Contudo, nada há em mim de um fundador de uma religião. Religiões são coisa do populacho, e eu tenho
sempre de lavar as mãos depois de estar em contacto com religiosos... Nada quero
com «crentes», suponho ser demasiado astuto para tal, nem sequer creio em mim
próprio. Nunca falo às massas... Sinto um medo espantoso de que um dia me
canonizem. E é fácil compreender por que dou a público este livro: ele deve
evitar que se sirvam de mim como motivo de escândalo... Não, não quero que me
tomem por santo, preferiria que me tomassem por arlequim... E talvez eu seja um
arlequim... Apesar disso – não, não apesar disso, pois até hoje nada houve mais
mentiroso do que um santo – apesar disso, a verdade fala pela minha boca. Mas a
minha verdade é aterradora, porque até hoje chamou-se verdade à mentira.
Transmutação de todos os valores, eis a fórmula para aquele acto decisivo da humanidade a si própria, que em mim se fez carne e génio. Quer o meu destino que eu seja o primeiro homem sincero, quer que me ponha em contradição com milhares de anos... Eu, primeiro entre todos, descobri a verdade, pelo facto de ser o primeiro a considerar a mentira como mentira e a senti-la como tal. O meu génio está no meu olfacto... Protesto como nunca se protestou, e sou no entanto o oposto de um espírito negador. Sou um alegre mensageiro, tal como jamais se viu, conheço tarefas tais, tão altas, que até agora nem sequer existiu a mínima noção delas. Só desde que vim houve outra vez a esperança. Com tudo isso, sou também, necessariamente, o homem da fatalidade. Pois quando a verdade entrar em luta com a mentira milenária, teremos tremores de terra como nunca, teremos em série movimentos tectónicos, deslocações de vales e montanhas tais como jamais ninguém sonhou. A ideia política será então completamente absorvida pela luta de espíritos, todas as relações de poderes da velha sociedade irão ao ar – porque estão todas fundadas na mentira. Haverá guerras tais como nenhumas houve na terra. Só depois de mim haverá no mundo a «grande política».
2. Pretender-se-á a fórmula para tal, a
expressão do destino feito homem? Encontra-se no meu Zaratustra:
«E aquele que quer ser criador no bem
como no mal deverá em primeiro lugar destruir e despedaçar valores».
Assim, o sumo mal faz parte do sumo bem:
aí o segredo, do que autenticamente cria.
Sou, de longe, o homem mais terrível que houve: o que não impede vir a ser o mais benéfico. Conheço a alegria de destruir em grau equivalente ao meu poder de destruição. Obedeço em ambos os casos à minha natureza dionisíaca, incapaz de separar acção negativa e afirmação. Sou o primeiro imoralista: e assim sou o destruidor por excelência.
3. Nunca me perguntaram como deviam, qual é, na minha boca, na boca do primeiro imoralista, o significado de Zaratustra: pois bem, o que constitui o carácter grandioso e singular deste persa na história, é precisamente o contrário do que pode observar-se em mim. Zaratustra foi o primeiro a ter a luta do bem e do mal como mola essencial no jogo das coisas – a transposição da moral em metafísica, da moral apreendida como força, causa e fim em si, eis a sua obra. Mas no fundo da própria pergunta estaria já incluída a resposta. Zaratustra criou este erro cheio de fatais consequências que é a moral, deve ser por conseguinte o primeiro a reconhecer o erro. Não só possui aqui experiência mais ampla e profunda do que outros pensadores – a história, em sua totalidade, outra coisa não é senão a refutação experimental das proposições da pretensa «ordem moral» – mas, observação mais importante, Zaratustra é mais verídico do que qualquer outro pensador. A sua doutrina, e só ela, considera a veracidade como superior virtude – e isso significa a oposição à cobardia dos «idealistas» que fogem perante a realidade; Zaratustra tem mais coragem que todos os pensadores juntos. Dizer a verdade, saber disparar o arco, é a virtude persa. Compreendem-me? A vitória da moral sobre si própria, a vitória do moralista sobre si próprio, para vir terminar no seu contrário, ou seja, «em mim», eis o que significa na minha boca Zaratustra.
4. São no fundo duas negações que a
palavra «imoralista», para mim, implica. Nego, por um lado, o tipo de homem que
até agora era valorizado como superior, o homem «bom», «benévolo», «caridoso»;
nego, por outro lado, a espécie de moral, que, como moral, em si, se tornou
relevante e dominadora – a moral da decadência, e, de maneira mais precisa, a
moral cristã. Será lícito considerar, como mais decisiva, a segunda
contradição, visto que o demasiado alto apreço pela bondade me aparece já, de maneira geral, como
resultado de decadência, como sintoma de fraqueza, como incompatível com uma
vida elevada e afirmativa: pois que a condição de afirmar está na ciência de
negar e destruir.
Vou deter-me, primeiramente, na psicologia do
homem bom. Para apreciar o valor de um tipo humano, requer-se calcular o preço
da sua conservação, – requer-se conhecer as suas condições de existência. A
condição de existência do bom é a mentira: exprimindo de outra maneira, é a
recusa obstinada, e a todo o preço, de ver como é constituída a realidade. Ora, ela não é constituída de modo a
solicitar constantemente os instintos benévolos, e menos ainda a permitir a
intervenção de mãos néscias e bondosas. Considerar em geral as desgraças de
toda a espécie como simples embaraço, como coisa a suprimir, é a necessidade
por excelência, necessidade que pode provocar verdadeiras catástrofes. Se se
olham as coisas de alto, essa atitude aparece como fatalidade da estupidez – e
estupidez quase tamanha como seria pretender, por exemplo, suprimir as
intempéries por amor aos pobres...
Na grande economia do Todo, os terríveis golpes da realidade (na ambição, nas paixões, na vontade de poder) são necessários em grau inapreciável, muito mais que a forma medíocre de ser feliz que se chama «bondade». É preciso até ser indulgente para conceder lugar a esta última, visto que ela tem por condição a mentira dos instintos. Terei já ocasião de mostrar as consequências perturbantes e incomensuráveis que pôde ter, para toda a história, o optimismo, essa criação dos «homines optimi». Zaratustra compreendeu antes de ninguém que o optimista é tão decadente como o pessimista, e talvez mais nocivo. Eis as suas palavras:
«Os homens bons nunca dizem a verdade. Os homens bons ensinam a falsidade na maneira de agir e de pensar. Vós nascestes e fostes educado nas mentiras dos bons. Tudo foi desde o fundo deformado e pervertido pelos bons.»
O mundo não está felizmente para
corresponder aos instintos em que o animal de rebanho encontra a felicidade. Exigir
que todos os «homens bons» tenham olhos azuis, sejam bondosos, tenham uma «bela
alma» – ou, como quer o senhor Herbert Spencer, se tornem «altruístas» – seria
retirar à existência a sua característica primacial, seria castrar a humanidade
e fazê-la descer às mais mesquinha chinezice. – E foi isso mesmo que se
tentou!... isso mesmo se denominou moral!... Neste sentido chamava Zaratustra
aos bons, ora «os últimos homens», ora o «começo do fim»; antes de tudo os
considera ele como a mais perigosa espécie de homens, visto que levam adiante a
sua forma de experiência tanto à custa da verdade como do porvir.
«Os bons não podem criar, são sempre o
começo do fim.
Crucificam aquele que inscreve valores
novos em novas tábuas; sacrificam o porvir a si próprios, crucificam todo o
porvir dos homens!
Os bons foram sempre o começo do fim... E qualquer que seja o prejuízo que ocasionam os caluniadores do mundo, é maior o dano ocasionado pelos «bons».
5. Zaratustra, primeiro psicólogo dos homens bons, é por conseguinte um amigo do mal. Quando uma espécie decadente de homens ascende ao mais alto nível, só pode consegui-lo agindo em prejuízo da espécie adversa, a espécie dos homens fortes e seguros de si. Quando o animal de rebanho aparece nimbado de mais pura virtude, o homem de excepção sente-se forçosamente relegado para plano inferior: o do mal. Quando a mentira, a todo o custo «adopta a palavra verdade para a fazer entrar na sua óptica, vê-se o homem verídico designado nos piores termos. Zaratustra não deixa lugar a dúvidas: diz que foi o conhecimento dos homens bons, dos «melhores», que propriamente lhe inspirou o horror dos homens; e desta repugnância lhe nasceram asas «para voar para os longes de um remoto porvir». Não esconde que o seu tipo de homem, tipo relativamente sobre-humano, é sobre-humano precisamente em relação aos homens bons; pois que os bons e os justos chamariam demónio ao seu «super-homem».
«Homens superiores que os meus olhos encontram, eis a dúvida e o secreto riso que me inspirais: adivinho o que chamarei ao meu super-homem: demónio. Tão alheios sois no fundo da vossa alma à grandeza, que o super-homem se vos afigura terrível em sua mesma bondade»...
Deve ter-se em conta este passo e outros
análogos para compreender o que pretende Zaratustra. A espécie de homens que
visiona tem força bastante para poder conceber a realidade «tal qual é». A
realidade não lhe aparece como estranha e remota, ela mantém-se semelhante a si
mesma, encerra em si própria tudo quanto o existir e o ser têm de terrível e de
problemático, porque «só nessa condição pode o homem alcançar a grandeza».
6. Com outro intento escolhi a palavra
imoralista: como sinal e insígnia de mim próprio. Sinto-me orgulhoso de usar
essa designação que me põe em contraste com a humanidade inteira. Ninguém ainda
considerou a moral cristã como alguma coisa de inferior a si próprio: isso
requer elevação, golpe de vista para o porvir e profundidade psicológica tais
quais nunca se viram. Foi até hoje a moral cristã a Circe de todos os
pensadores – todos eles se puseram ao seu serviço.
Quem desceu então antes de mim àquelas cavernas de onde provém o sopro pestilento desta espécie de ideal – o ideal dos caluniadores do mundo? Quem foi, antes de mim, e entre os filósofos, um «psicólogo», e não o oposto do psicólogo, um «charlatão superior», um «idealista»? Antes de mim, não houve, a sério, psicologia.
Vir, neste ponto, primeiro, pode ser maldição, e é, de qualquer modo, uma fatalidade: pois é também enquanto primeiro que se despreza... O «nojo» do homem, eis o meu perigo.
7. Acaso me compreenderam? – O que me situa à parte de todo o resto da
humanidade, é ter descoberto a moral cristã. Eis porque eu carecia de palavra
que em si abrangesse o sentido de um desafio lançado a todos e a cada um dos
homens. E não ter aberto mais cedo os olhos neste ponto resulta para mim a
maior indecência de que a humanidade é responsável. Vejo nisso a ilusão sobre
si própria tornada modo natural de ser, a vontade de ignorar sistematicamente
tudo quanto acontece, toda a causa, toda a realidade, espécie de moeda falsa em
matéria psicológica que chega a ir até ao crime. A cegueira perante o
cristianismo, eis o crime por excelência – o crime contra a vida. As
civilizações milenárias, os povos, tanto os primeiros como os últimos, os
filósofos e as beatas – com excepção de cinco ou seis momentos da história, eu
sou o sétimo – são neste ponto dignos uns dos outros. O cristão foi até agora o
«ser essencialmente moral», singularidade sem exemplo, e, enquanto ser moral,
foi mais absurdo, mais vaidoso, mais frívolo e prejudicou-se mais a si próprio
do que poderia imaginar, até em sonho, o homem que mais desprezasse a
humanidade. A moral cristã – a forma maldosa de querer de que foi capaz a
mentira – é a Circe da humanidade, e foi quem a corrompeu.
E
diante deste espectáculo, não é o erro enquanto erro que me aterra, não é a
falta de «autêntica vontade», que dura há milhares de anos, a falta de
disciplina, de decência, de valentia nas coisas do espírito, que se surpreendem
entre os motivos da vitória desta moral; é a falta de naturalidade, o facto
espantoso de a própria «contra-natureza» receber as mais altas honras sob o
nome de moral, ficando suspensa, por cima da cabeça da humanidade, como sua
lei, seu imperativo categórico!...
Haverá ainda alguém que se equivoque a
tal ponto, não como indivíduo, não como povo, mas como humanidade?...
Ensinou-se a desprezar os instintos primordiais; imaginou-se também
enganadoramente a existência de uma «alma», de um «espírito», para se fazer
perecer o corpo; ensinou-se a ver nas condições primeiras da vida, na
sexualidade, qualquer coisa de impuro; na mais profunda necessidade de
crescimento, no obsessivo amor de si próprio (já a palavra por si é
insultuosa!) procurou-se denunciar um mau princípio; pelo contrário, no sinal
típico da degenerescência e da contradição dos instintos, no «desinteresse», na
perda de pontos de apoio na impersonalidade e no amor do próximo, vê-se o valor
superior, que digo? o valor por
excelência... Como? Estaria a própria humanidade em decadência? Esteve-o
sempre? Certo é que com o nome de valores superiores só lhe apresentaram valores de
decadência. A moral da renúncia é essencialmente moral da degenerescência. Ela
consiste na afirmação: «Vou perecer» – traduzida neste imperativo: «Vós todos
deveis perecer» – e não só traduzido em imperativo... Esta moral, única que até
hoje se ensinou, moral da renúncia, vontade de aniquilamento, nega até aos mais
remotos fundamentos da vida.
Aqui permanece aberta a possibilidade de
não ser a humanidade que está em degenerescência, mas apenas uma espécie de
parasita de homens, a dos «padres», que, conseguindo o lugar de árbitros dos
valores morais, se serviam da moral cristã para se apoderarem do poder. E de
facto, a minha convicção é esta: os mestres, os condutores da humanidade foram
todos teólogos e todos decadentes: nasce daqui o triunfo de todos os valores em
oposição contra a vida, nasce daqui a moral... Definição da moral: Moral – a
idiossincrasia do decadente, com a intenção secreta de se vingar da vida –
intenção essa que resultou. Atribuo valor a esta definição.
8. Compreenderam-me? Não disse aí uma palavra que não tivesse já dito há cinco anos pela boca de Zaratustra. – A descoberta da moral cristã aparece como acontecimento sem par, como verdadeira catástrofe. Aquele que a põe a nu é uma força potente, uma fatalidade – divide a história da humanidade em duas partes: a dos que viveram antes, a dos que viverão depois... O raio da verdade caiu sobre tudo quanto até agora estivera no estádio mais sublime: e quem for capaz de compreender o que lá se destruiu, veja se lhe ficou ainda alguma coisa nas mãos. Tudo quanto até hoje se chamou verdade foi desmascarado como forma da mentira mais perigosa, mais pérfida, mais subterrânea; o pretexto sagrado de «tornar os homens melhores» revela-se astúcia para esgotar a própria vida, para torná-la anémica sugando-lhe o sangue. A moral como «vampirismo»... O que descobre a moral, descobre com ela a transmutação de todos os valores, o não-valor de todos os valores em que se acreditava; já nada vê digno de veneração nos tipos mais venerados da humanidade, naqueles mesmos que foram canonizados, vê neles a forma mais fatal dos seres malogrados, fatal porque «fascinante»... A ideia de «Deus» foi composta, foi investida como ideia contrária à vida – nela, em simbiose estupenda, se resume tudo quanto é nocivo, venenoso, caluniador, todo o ódio mortal contra a vida. A ideia do «além», do «mundo verdade», foi inventada apenas para depreciar o único mundo que existe – para destituir a nossa realidade terrestre de todo o fim, razão e propósito! A ideia de «alma», de «espírito» e, ao fim e ao cabo, ainda a de «alma imortal», foi inventada para desprezar o corpo, para o tornar doente – «sagrado» – para tratar todas as coisas que merecem atenção na vida – as questões de alimentação, habitação, regime intelectual, cuidados com os doentes, higiene, temperatura – com a mais espantosa incúria! Em vez de saúde, «salvação da alma» – quer dizer uma loucura circular que vai das convulsões da penitência à histeria da redenção! A ideia de «pecado» foi inventada com o complementar instrumento de tortura, o «livre-arbítrio», para extraviar os instintos, para fazer da desconfiança para com os instintos uma segunda natureza! Na noção de «desinteresse», de «renúncia», encontra-se o verdadeiro sinal de decadência. A atracção que exerce tudo quanto é maléfico, a incapacidade de discernir o próprio interesse, a destruição de si próprio, tornaram-se qualidades, e são o «dever», a «santidade», a «divindade» no homem! Enfim – e é o que há de mais terrível – na ideia do homem bom, torna-se partido por tudo quanto é débil, doente, malogrado, por tudo quanto sofre da própria imperfeição, por tudo quanto deve perecer – a lei de selecção é contrariada, constituindo-se um ideal de oposição ao homem altivo e bem logrado, ao homem afirmativo pelo qual se garante o porvir. Este homem torna-se o «homem mau...» E em tudo isso, sob o nome de «moral», se acreditou! Écrasez l’infâme![1]
9. Compreenderam-me – Diónisos que defronta o Crucificado...
(In
Frederico Nietzsche, ECCE HOMO,
Tradução e Prefácio de José Marinho, Lisboa, Guimarães Editores, 6.ª edição,
1990, pp. 157-169).
[1] Ecce Homo, como, aliás, grande parte da obra de Nietzsche, tem frequentes expressões francesas ou termos de origem francesa. Entendemos dever aqui deixar na língua original a violenta expressão de Voltaire que Nietzsche adoptou.
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