Escrito por Olavo de Carvalho
«(...)
é maravilha ver S. TOMÁS, numa época e num ambiente considerados universalmente
como dogmáticos, formular em termos dubitativos as convicções mais vitais – Utrum Deus sit?, existe Deus? –,
sondá-las com argumentos pro e contra, examiná-las em seus vários
sentidos, aspectos e soluções históricas para lhes atribuir a mais adequada,
recolhendo, finalmente, as objecções sobreditas, e resolvendo-as em concordância.
Prodígio este de método, não só de investigação, mas também de exposição, sobretudo quando é servido por um estilo que nem
é uma fiada de silogismos, como costumam supor os que nunca se aproximaram das
obras do Santo Doutor, nem uma logorreia retórica, encobridora da vacuidade ou
falsidade do pensamento, senão que um estilo sóbrio, singelo e diáfano,
correspondente a uma verdade de puras linhas arquitectónicas.
Porque, na verdade, a profissão e a prática da dúvida metódica estão muito longe de conduzir S. TOMÁS àquele estado de alma tão frequente entre os doutos da antiguidade como entre os da Idade Moderna, tão bem caracterizado por S. Paulo quando fala dos homens que são “joguete de todo o vento de doutrina” (Efes., IV, 14), ou que “sempre a aprender, nunca acabam por chegar ao conhecimento da verdade” (II Timot., III, 7). Bem longe desta versatilidade mental, que espíritos superficiais consideram inseparável da crítica, a obra doutrinal de S. TOMÁS respira por toda a parte convicção sincera e profunda, e adquire até em certas ocasiões inusitado vigor de expressão, como no seu famoso opúsculo De unitate intellectus contra Averroistas, quando dirige ao seu inominado adversário – que era SIGÉRIO DE BRABANTE, o corifeu do averroísmo latino – estas palavras: “Se alguém, vangloriando-se do seu pretenso saber, quiser criticar o que escrevemos, que o não faça às escondidas nem entre meninos incapazes de formular juízo sobre questões tão difíceis, mas, se se atrever, que responda abertamente a este tratado. Encontrar-me-á contra ele e não só a mim, o último de todos, mas a muitos outros que professam o culto da verdade. Opor-nos-emos aos seus erros e daremos remédio à sua ignorância.»
João
Zaragüeta («S. Tomás de Aquino no seu tempo e agora»).
«Por duas vezes a autoridade eclesiástica denunciou o ensino do aristotelismo heterodoxo. Numa primeira vez, em 1270, o bispo de Paris, Étienne Tempier, condena treze teses (duas outras se juntarão mais tarde) das quais apenas duas ou três são especificamente “averroístas”. Uma segunda intervenção do bispo Tempier, mais radical do que a primeira, teve lugar em 7 de Março de 1277, três anos depois, contados dia a dia, do falecimento de Tomás de Aquino. Os duzentos e dezanove artigos publicados por Étienne Tempier condenam, à mistura, o De Amore de André de Chapelain, escritos de necromancia e de magia, teses autenticamente tomistas e também, é claro, as proposições que os averroístas defendiam ou eram acusados de defender.»
Édouard Jeauneau («A Filosofia Medieval»).
«Alguns anos após a morte de Tomás, a escola teológica dominicana está conquistada pela sua doutrina e defende-a com vigor contra os ataques dos conservadores. A influência do mestre defunto conquista também outros teólogos eminentes, tais como os seculares Godofredo de Fontaines e Pedro de Auvergne, Egídio de Roma, o fundador da escola dos Ermitas de Santo Agostinho, mais tarde a escola carmelita. Ainda em sua vida, o ascendente de Tomás de Aquino era marcante na Faculdade das Artes de Paris; a sua influência sobre Sigério de Brabante é hoje bem assente. O renome do ilustre pregador atingirá a sua apoteose no Paraíso da Divina Comédia, onde preside à coroa dos doze sábios no quarto céu, o da luz.
Mas se a obra de Tomás de Aquino suscitou a admiração fervorosa de numerosos discípulos, foi também vivamente contestada. Os seus adversários foram teólogos, seculares e sobretudo franciscanos, que permaneciam fiéis às tradições da faculdade de teologia e se reclamavam de Santo Agostinho. Já em 1270 Tomás tinha sido atacado publicamente pelo mestre franciscano João Peckham. Várias das suas teses filosóficas tinham sido atingidas, se não visadas, pela grande condenação de Paris de Março de 1277. Entre 1277 e 1279, o franciscano Guilherme de la Mare publica o Correctório de Frei Tomás (Correctorium fratis Thomae), no qual denuncia 117 erros encontrados nos escritos de Tomás. Teses tomistas foram censuradas em Oxford em 1277, 1284 e 1286.
A ameaça de excomunhão que acompanhava o decreto de 7 de Março de 1277 travou incontestavelmente o progresso do tomismo em Paris, pois várias das suas doutrinas pareciam suspeitas em razão do seu parentesco com as do aristotelismo heterodoxo. Foi necessária a canonização de São Tomás em 1323 para pôr fim a estes entraves.
Com a maior parte dos historiadores, penso que os receios dos teólogos conservadores não eram fundados: as doutrinas filosóficas de Tomás de Aquino não ameaçavam a ortodoxia cristã. No plano filosófico, o seu pensamento parece nitidamente superior ao dos seus adversários e marca um progresso decisivo na evolução da filosofia. Aos olhos do historiador do pensamento, Tomás de Aquino domina o seu século, pois a sua obra é o coroamento do longo esforço de reflexão provocado pela literatura nova. Sem dúvida, a escola tomista não chegará a ser maioritária na Idade Média, por razões históricas bem conhecidas, sobretudo o maremoto do nominalismo do século XIV. O valor da filosofia criada por São Tomás só mais tarde se revelará plenamente: como dizia Gilson, “este solitário não escreveu para o seu século, mas tinha o tempo a seu favor.”»
F. Van Steenberghen («O Tomismo»).
«Por
eu ter dito, em outro lugar, que o aprendizado direto, ver e ouvir um filósofo
filosofando, é condição indispensável do aprendizado da filosofia, [o pobre Sr.
Pinheiro] imaginou, sabe-se lá por que, que ao louvar as escolas catedrais eu o
estaria fazendo justamente por acreditar que nelas predominaria essa modalidade
de ensino, abandonada ou negligenciada depois. O sr. Pinheiro atribui a mim uma
bobagem de sua própria invenção. O ensino direto da filosofia jamais cessou,
nas universidades medievais ou depois; ele é mesmo a única razão de ser das
universidades. O que distingue as escolas catedrais e monacais dos séculos
X-XII não é isso: é a presença do mestre como encarnação viva das virtudes cristãs, não como
explicador de filosofia. Não se tratava de formar filósofos, mas gentis-homens.
Este foi o objetivo negligenciado nas universidades do século XIII, e por isso
julguei que o Cardeal Newman errara ao tomá-las como modelo, precisamente, de
um tipo de ensino que elas haviam abandonado.
(...) O desejo de me associar à escola perenialista, ou tradicionalista, com toda a sua parafernália de rituais iniciáticos, é mesmo uma obsessão dos srs. Lemos e Pinheiro, que, a cada linha de minha autoria que lêem, saem logo procurando um perenialista embaixo da cama. Pergunto eu o que o carisma das virtudes cristãs, exemplificado pelos professores das escolas catedrais e monacais, poderia ter de iniciático no sentido de Guénon, que reserva essa palavra para designar as práticas de organizações esotéricas em sentido estrito, distinguindo-as rigorosamente de tudo quanto seja “religioso”. Pode ter havido algum elemento iniciático nas corporações de ofícios, mas não nas escolas catedrais e monacais. Lemos e Pinheiro empregam esse termo, como também ‘esoterismo’, não porque estes sejam adequados ao tópico em discussão, mas porque sabem que eles têm conotações negativas para o público a que se dirigem e imaginam que, usando-os, podem criar uma aura de má impressão em torno da minha pessoa. O sr. Lemos, numa descarada ostentação de superioridade olímpica, montada, por involuntária ironia, com um erro de gramática que faz contraste grotesco com o pedantismo de um termo latino desnecessário, declara: “Faz muito sentido que gente vinda do jornalismo e do esoterismo, pace Olavo, confundam as bolas.” Podem dizer até que venho do comércio de amendoins em praça pública; não ligo; mas o sr. Lemos vem da advocacia, aquela profissão já amaldiçoada em Lucas 11.52, cujos praticantes, segundo uma piada célebre, só se distinguem dos urubus porque ganham certificados de milhagem.»
Olavo de Carvalho («A Filosofia e seu Inverso»).
Desde logo, a imagem que hoje temos do
esplendor escolástico é construída com base nuns quantos poucos nomes,
especialmente Sto. Alberto, Sto. Tomás, S. Boaventura e Duns Scot. Se os
apagâssemos dos registros, o escolasticismo não teria passado de um episódio
curioso na história da educação. E esses não são nomes só de filósofos, mas de
Doutores da Igreja: três santos canonizados e um bem-aventurado. Não existe o
menor motivo para supor que na vida pessoal esses homens tivessem uma conduta
mais frouxa, menos estrita, menos perfeita que a do “modelo pronto” que os anjos invejavam. Não vejo em que a dissolução do modelo pela “discussão
racional” poderia ter contribuído nem para a sua santidade, nem para o
fortalecimento do tipo especial de inteligência ao mesmo tempo filosófica e
mística que os caracteriza, o qual não cresce fora e independentemente da graça
santificante, mas decorre dela como um dom especial do Espírito.
Também é ingenuidade supor que essas
encarnações máximas do gênio escolástico fossem produtos típicos do novo meio
acadêmico, no qual, bem ao contrário, não se ajustaram confortavelmente jamais.
Sua inteligência, sua rígida idoneidade, sua compreensão superior dos mistérios
da fé e, last not least, sua coragem
intelectual faziam desses quatro mestres os alvos preferenciais das invejas,
mesquinharias e maledicências de seus colegas.
Alberto pulou como um cabrito para que a
congregação engolisse, de má vontade, suas teorias aristotélicas sobre o mundo
físico. Boaventura sofreu ataques medonhos de Guilherme de Saint-Amour, um
potentado universitário da época, no curso de uma campanha sórdida movida pelo
clero secular contra os Frades Mendicantes. Quem o defendeu foi Tomás, que
depois, também graças a intrigas de acadêmicos, foi por seu turno denunciado
como herético duas vezes (uma delas depois de morto). Duns Scot foi expulso da
universidade e teve de fugir de cidade em cidade, ameaçado de morte, por
defender doutrinas impopulares e tomar o partido do Papa na disputa com o poder
real, hegemônico entre os intelectuais na ocasião. Só cinco séculos depois da
sua morte ele foi retirado da lista dos indesejáveis, quando sua grande
doutrina da Imaculada Concepção de Maria foi finalmente aceita e se tornou
dogma da Igreja. Sua beatificação só veio ainda um século depois disso, em
1993.
No mínimo, no mínimo, o sr. Pinheiro, ao
enaltecer as vitórias intelectuais da escolástica acima das virtudes “meramente
morais” do monaquismo que a antecedeu, deveria ter tido a prudência de notar
que os quatro autores maiores daquelas vitórias, aquelas que acabo de
mencionar, não podiam de maneira alguma ser universitários típicos, pelo
simples fa[c]to de que não eram membros do clero secular que dominava as
universidades, e sim, bem ao contrário, vieram das ordens monásticas, nas quais
se conservava ainda a disciplina moral das velhas escolas. O contraste entre as
mentalidades desses dois grupos era tão pronunciado, que os professores
ofereceram uma resistência feroz ao ingresso de monges no corpo docente das
universidades (v. O episódio de Boaventura que mencionei acima). Bem, sem esse
ingresso, a universidade medieval estaria desprovida de Alberto, Tomás, Boaventura
e Duns Scot – de tudo aquilo que para nós, hoje, mais nitidamente caracteriza e
mais merecidamente enobrece a imagem da filosofia escolástica.
Sim, porca miséria, os quatro eram
monges, intrusos na comunidade universitária! Como poderiam ser típicos da
corporação que rejeitava sua presença? Longe de ser produtos característicos da
universidade da época, como o acredita o sr. Pinheiro, esses monges severos e
devotos, provindo de um meio social diferente, com hábitos e valores
contrastantes, se sobrepunham de tal modo àquele ambiente que só a duras penas
puderam ali sobreviver e, às vezes postumamente, triunfar. A magnitude de suas
realizações intelectuais deve-se menos à atmosfera universitária do que à força
de suas personalidades majestosamente centradas, firmadas na fé e na
integridade de propósitos, em contraste com a sofisticada tagarelice de seus
colegas, muitas vezes tecnicamente admirável, mas com tanta freqüência
inspirada em motivos fúteis e na sedução das novidades heréticas. Quando hoje
enxergamos a universidade medieval como um momento luminoso na história da
educação, é em grande parte porque os melhores homens que ela rejeitou projetam
retroativamente sobre ela o brilho da sua glória, e não ao inverso. E essa
glória, sem dúvida, vem mais das ordens monásticas que os formaram, que do meio
social onde ingressaram já adultos, fortes o bastante para desafiá-lo e, a
longo prazo, vencê-lo. Se, quando critico a universidade medieval, o sr.
Pinheiro entende que estou falando mal da filosofia dos grandes escolásticos,
é, em parte, por seu desconhecimento da história, em parte por seguir o
consagrado erro de ótica que coletiviza os méritos individuais e toma as
exceções como regras, como se as cátedras universitárias na época estivessem
superlotadas de homens da estatura de Tomás e Alberto, e não de técnicos,
burocratas, agitadores, doutrinários de dedinho em riste, bedéis e uma
infinidade de puxa-sacos.
Não é culpa do sr. Pinheiro, é do vício
generalizado de entender os grandes homens como “produtos do seu tempo”, quando
justamente a grandeza deles consistiu em quebrar a redoma da ideologia de época
e injetar no organismo da cultura, a um tempo e contra a resistência do
ambiente, a sabedoria esquecida de um passado remotíssimo e as mais inimagináveis
perspectivas de futuro.
No caso da filosofia escolástica, toda
ela inspirada por aberturas para a eternidade que nenhum condicionamento
histórico-social jamais poderia explicar, isso deveria ser perceptível à
primeira vista.
Só os medíocres são filhos do seu tempo.
Os sábios, os heróis e os santos inspirados são pais dele; são canais por onde
a luz da transcendência rompe as limitações do tempo e abre possibilidades que
a mente coletiva, por si, jamais poderia conceber. Se a opinião corrente não
enxerga isso, é porque o acesso de milhões de incapazes às altas esferas das
profissões universitárias obriga hoje a conceber a História sub specie mediocritatis. Que Alberto e
Tomás revivificassem uma filosofia velha de mil e setecentos anos, fazendo-a
enfim predominar sobre o rígido agostinismo dominante, e que Duns Scot, contra
vento e maré, antecipasse em cinco séculos um dogma da Igreja, são fa[c]tos que
deveriam fazer os devotos do condicionamento histórico pelo menos coçar as cabeças,
se alguma tivessem.
Mas a esse erro de perspectiva
generalizado, que se disseminou ao ponto de infectar até mesmo os manuais
escolares, o sr. Pinheiro acrescenta um outro que, se não é de sua própria
invenção, também não é compartilhado pela massa ignara, mas tão somente por uma
parte da elite profissional de filodoxos: a idéia de que só existe filosofia na
doutrina explícita, desenvolvida, organizada, publicada, racionalmente
verbalizada e argumentada até seus últimos detalhes.
A idéia tem origem ilustre. Remonta a Georg W. F. Hegel, o que, convenhamos, impõe algum respeito. Mas, como tantas outras opiniões que herdamos desse genial embrulhão, é completamente falsa. Sem mencioná-la expressamente nem citar-lhe a fonte (que talvez nem mesmo conheça), escreve o sr. Pinheiro, como se impelido mediunicamente pelo espírito de Hegel:
“O foco na relação mestre-discípulo e na sabedoria não-verbal (e que, por isso, não pode ser escrito sem ser, em alguma medida, traído) [1] nos aproxima novamente dos sonhos tradicionalistas e perenialistas, dos sistemas simbólicos esotéricos e da imersão em tradições orais.[2] Mas a Filosofia é perseguir avidamente o real; e isso é a fuga consumada... É estranho que ele [Olavo de Caravalho] e tantos de seus seguidores continuem a ter esse tipo de fantasia como ideal de vida e de formação filosófica.”
Na
galeria universal das condutas vexaminosas, poucas se comparam ao gosto
que os brasileiros têm de fazer de superiores àquilo que não entendem. Nem
todos os nossos compatriotas padecem desse vício, menos ainda são os que o
trazem do berço, mas muitos o adquirem logo no começo da vida adulta, sob o
nome de “formação universitária”.
As palavras do sr. Pinheiro, que soam
tão óbvias e inesquecíveis aos seus próprios ouvidos, contêm embutida uma
multidão de problemas cabeludos que ele nem mesmo percebe.
Desde logo, se excluirmos da área de
estudos filosóficos sérios as tradições orais, teremos de dizer adeus não só a
boa parte do platonismo, mas a todo o ensino universitário que não esteja
registrado em textos. A única razão de ser das universidades, aliás, é
justamente aquela parte do treinamento intelectual superior que não pode ser
obtida por mera leitura, mas requer o contato direto entre mestre e discípulo.
Se não fosse assim, as instituições universitárias poderiam, com vantagem, ser
fechadas e substituídas pela indústria editorial. Isso vale não só para o
aprendizado filosófico, mas também para as artes, as técnicas e as ciências. E,
em todos esses casos, falar de contato direto é incluir aí uma parcela
indispensável de comunicação não verbal. Hoje em dia não há pesquisa científica
que não exija o uso de instrumentos cujo manejo requer longa prática junto a um
técnico habilitado que pouco poderia transmitir a seus alunos só pela instrução
verbal, sem o contato visual e manual com os equipamentos e sem socorrer-se de
gestos, posturas, entonações e olhares cuja tradução em palavras seria
praticamente impossível. Se não fosse assim, qualquer um poderia formar-se
técnico em tomografia computadorizada, em microscopia estereoscópica ou em
galvanometria balística pela simples leitura de manuais de instruções. Poderia
também tornar-se cantor de ópera, pintor ou dançarino sem ter jamais
presenciado um exemplo vivo de como se canta, se pinta ou se dança.
O peso desse fator é tão crucial na
investigação científica, que negligenciá-lo pode destruir as mais belas
esperanças das ciências de constituir-se em conhecimento objetivamente
verificável. Uma verdade, em ciência, não vale nada enquanto não se transforma
numa crença coletiva subscrita pela comunidade dos cientistas profissionais,
mas, assinala Theodore M. Porter, “a prática científica diária tem tanto a ver
com a transmissão de habilidades e práticas quanto o estabelecimento de
doutrinas teóricas”. Nos anos 50 do século passado, Michael Polanyi já
enfatizava que a pesquisa científica envolve um tipo de “conhecimento tácito”
que não pode sequer ser formulado em regras. “Na prática, prossegue Porter, isso
significa que os livros e os artigos de revistas científicas são veículos
necessariamente inadequados para a comunicação desse conhecimento, uma vez que aquilo que mais interessa não pode ser
comunicado em palavras”[3]
(grifo meu). Elimine-se a transmissão não-verbal, portanto, e toda a via de
acesso à investigação científica estará fechada de uma vez por todas.
Como se vê, a investida do sr. Pinheiro
contra o não-verbal nasce da ojeriza irracional ante puros estereótipos da
cultura vulgar e não reflete nenhum exame sério da questão substantiva.
No caso específico da filosofia, o papel
do contato pessoal, dos círculos de amizade e das lealdades corporativas na
formação das escolas e correntes filosóficas, bem como na assimilação e
modelagem mental dos recém-chegados, é hoje um consenso amplamente admitido
nesse importantíssimo ramo de estudos que é a sociologia da filosofia.[4]
Importantíssimo não só para os sociólogos como para os filósofos mesmos: o
filósofo que ignore as bases sociais da sua existência profissional é como um
boneco ventríloquo limitado à triste função de fazer eco a influências que não
sabe de onde vieram nem para onde levam. Ouso dizer que na classe académica
brasileira essa ignorância é quase obrigatória.
Mais relevante ainda, sob esse aspecto,
é o estudo de como se formam e se desfazem os prestígios pessoais que marcam
indelevelmente o perfil histórico da filosofia num dado período. Como foi
possível, por exemplo, que certos filósofos (ou filodoxos) alcançassem uma audiência muito maior, nas universidades e fora delas, do que
seus contemporâneos mais habilitados produzindo linhas de influência duráveis
e verdadeiras tradições de pensamento, enquanto as obras de seus concorrentes
caíam no completo esquecimento? Seria uma ingenuidade imperdoável pensar que se
trata aí de puros “fatores externos” alheios ao “valor intrínseco” ou ao
“conteúdo filosófico propriamente dito” das obras em questão. A população
estudantil só tem acesso ao “conteúdo filosófico propriamente dito” das obras
que lê, não das que ignora – e a seleção reforça, automaticamente, as
influências intelectuais dominantes, consagrando como decretos inquestionáveis
da natureza das coisas os critérios de “valor intrínseco” que aí prevalecem e,
portanto, a visão da história da filosofia, às vezes barbaramente subjetiva e
enviesada, que aí se toma como expressão direta e óbvia da verdade dos
fa[c]tos.
Ora, quando procuramos investigar como se formam aqueles prestígios, descobrimos que o mecanismo principal que os origina são os círculos de relações pessoais, onde os interesses corporativos e as lealdades politicamente comprometidas se mesclam indissoluvelmente ao culto devoto de personalidades carismáticas envolvidas, no mais das vezes sem merecimentos objetivos que o justifiquem, numa aura de sapiência mística que separa rigidamente os iniciados e os profanos.
Estudando a carreira de quatro dos mais prestigiosos pensadores do século XX que ele denomina “os mestres malignos” – Wittgenstein, Lukács, Heidegger e Gentile –, e perguntando por que suas sombras encobriram os vultos de seus contemporâneos igualmente capazes, ou mais capazes, o filósofo australiano Harry Redner conclui:
"Em última análise, o que distinguia os
mestres malignos de seus colegas não menos capacitados era uma personalidade
carismática que acabou por fazer tantas gerações de amigos, seguidores e
estudantes prosternar-se diante deles com temor reverencial. Quase todos os que
encontraram um mestre maligno sentiram estar em presença de um gênio. Eles
tinham essa capacidade de impressionar desde o início de suas carreiras... É
difícil pensar em qualquer grande filósofo do passado que tenha sido tão
reverenciado no seu tempo como eles foram.
Os seguidores que formavam em torno de cada um dos mestres malignos têm alguns dos traços dos círculos mais estreitos e mais amplos de qualquer movimento carismático. Cada um deles esteve rodeado de círculos esotéricos e exotéricos de amigos e seguidores. Mais perto do mestre estava um grupo de discípulos ou companheiros próximos; mais à distância havia os simpatizantes e companheiros-de-viagem; e em volta desse núcleo estava a massa dos estudantes e leitores interessados".[5]
Heidegger |
Na formação desse culto não faltava
jamais a força do elemento mágico, manipulado com requintes cênicos de
sedutores profissionais. Na ascensão de Martin Heidegger, Karl Löwith destaca o
poder da sua “arte de encantamento” que “atraía personalidades mais ou menos
psicopáticas”. Nas conferências que proferia, “seu método consistia em
construir um edifício de idéias que em seguida ele mesmo desmantelava, de novo
e de novo, para desnortear os ouvintes fascinados, só para no fim deixá-los
completamente no ar”.[6]
Qualquer semelhança com os procedimentos retóricos do esoterista armênio George Ivanovitch Gurdjieff não é mera coincidência. Gurdjieff levava os seus
discípulos à mais completa impotência intelectual mediante a prática de expor
complexos sistemas cosmológicos, acompanhados das demonstrações matemáticas
mais sofisticadas e, quando a platéia se sentia diante da mais sólida verdade
científica, desmantelar tudo com refutações arrasadoras. A única diferença que
tais casos revelam entre essa pedagogia e a dos antigos monges é que estes
usavam o poder do carisma para infundir virtudes, ao passo que as celebridades
filosóficas ou esotéricas do século XX o empregam como instrumento de dominação
para instituir o culto de suas próprias pessoas.
Mas, evidentemente, a função de
convivência direta não se resume em criar ídolos. Tem também uma utilidade
menos personalizada, mas coletiva, que é a de impor a hegemonia de grupos de influência
mediante a interproteção mafiosa, a promoção mútua, o boicote dos adversários,
o rateio dos melhores empregos entre os membros do gangue e, em resultado de
tudo isso, o controle da opinião pública, especialmente em ambientes limitados
e abarcáveis como o são as universidades e as instituições de cultura.
As filosofias dos “mestres malignos”, segundo Redner, “tendiam a gravitar em direção às elites universitárias porque, na luta pelo poder acadêmico, o status de elite interessa muito para atrair discípulos e lançar movimentos de influência. Dessas posições de alto status era fácil supervisionar e dominar todos os postos nas universidades colocadas mais embaixo. Nas escolas de elite dos países dominantes, como a École Normale na França e a Ivy League na América, a filosofia podia ser cultivada como uma mística para os privilegiados e iniciados. Só aqueles que ingressavam nessas instituições e passavam por elas como estudantes e professores tinham alguma chance de adquirir o conhecimento filosófico ‘apropriado’ e de ser considerados qualificados nele. Por esses meios, umas poucas universidades foram capazes de monopolizar o ensino da filosofia e usar esse poder para colonizar o sistema acadêmico inteiro de determinados países. Uma típica relação colonialista centro-periferia se instaurou entre a elite e o resto; com isso as universidades de elite se habilitaram a perpetuar e consolidar suas exclusividades e seu status superior”.
O “conteúdo propriamente dito” das filosofias não era de maneira alguma indiferente ao papel que desempenhavam na estrutura do poder universitário:
“As filosofias que serviam a essa função de preservar o monopólio profissional tinham de ser aquelas que ninguém podia aprender por meio de livros somente. Tinham de ser aquelas que ninguém fora do quadro institucional privilegiado podia admitir, transmitir ou praticar. Elas podiam ser aprendidas somente se fossem adquiridas através dos canais corretos e recebidas das mãos apropriadas. Tais eram, de fa[c]to, as filosofias que os próprios mestres malignos e, por direito de sucessão, seus discípulos, vieram a ministrar desde as escolas de elite onde haviam conquistado posições de poder. Ninguém que não passasse pelas suas mãos podia praticar, ensinar ou mesmo discutir suas filosofias”.[7]
Um exemplo muitíssimo bem documentado de
como esse processo funciona num país em particular é dado no livro de Hervé
Hamon e Patrick Rotman, Les Intellocrates,[8]
que estuda a composição social da elite que comanda a vida universitária e a imprensa
cultural na França. Essa elite inteira mora em Paris, distribuída nuns poucos
quarteirões vizinhos, e tem na convivência pessoal constante um dos seus
mecanismos essenciais de autopreservação e crescimento.
O contato direto entre mestres,
colaboradores e discípulos, como se vê, não perdeu nada da importância
essencial que tinha nos séculos X e XII. Apenas mudou de função: de geração de
santos transmutou-se em fábrica de carreiristas, agitadores, gerentes da
indústria cultural, bajuladores e militantes. Talvez por isso mesmo tenha se
tornado menos visível a observadores desatentos como os srs. Lemos e Pinheiro:
é da natureza mesma dos círculos de poder o hábito de manter a sua existência o
mais discreta possível, de modo a fazer com que os efeitos de suas ações
apareçam como resultados acidentais e anônimos do processo histórico.
Não por coincidência, uma das correntes
filosóficas que mais vieram a se beneficiar da luta dos grupos de influência
pelo domínio monopolístico das universidades foi, precisamente, a “filosofia
científica”, ou neopositivista, que o sr. Júlio Lemos coloca tão celestialmente
acima do mundo humano.
Não há nisso, aliás, nada de estranho. O
neopositivismo é, como o próprio nome diz, continuação do positivismo, que
nasceu não como pura filosofia teorética para uso dos anjos, mas como projeto
de poder, um dos mais ambiciosos e totalitários de todos os tempos.
Quando, após a II Guerra, o crescimento
vertiginoso da economia ocidental acelerou o processo de transformação da
filosofia em profissão universitária, eliminando da cena, pouco a pouco, os “intelectuais
públicos” que antes davam o tom dos debates culturais,[9]
nem todas as filosofias se adequavam igualmente ao novo ambiente em que as
discussões filosóficas tinham de imitar o mais fielmente possível o mecanismo
altamente regulamentado e burocratizado da intercomunicação científica.
Na Europa continental, onde a discussão
filosófica estava imantada de uma carga partidária e militante consagrada por
décadas de confronto ideológico, a solução foi infundir no discurso tradicional
da esquerda uns toques de linguagem científica extraídos principalmente da
lingüística e da matemática. Daí nasceram o estruturalismo e o
desconstrucionismo, que logo ocuparam o lugar do existencialismo e da
fenomenologia nas atenções do público.
Nos países anglo-saxónicos, ao contrário, onde a tendência dominante era manter as universidades bem integradas no funcionamento geral da economia e imunizadas contra o risco das rotulações ideológicas de direita e de esquerda, esse foi o grande momento da “filosofia científica”. O processo foi bem estudado por C. Wright Mills,[10] mas, como a descrição que oferece é muito detalhada e complexa, recorro, novamente, ao indispensável Redner, que assim a resume:
“A antiga geração de filósofos, que era uma estranha mistura de advogados, bibliotecários e cientistas, foi desalojada pelos professores acadêmicos que se organizaram numa corporação profissional com suas conferências, revistas especializadas, escadas de promoção e todos os outros adornos das disciplinas acadêmicas. Nessas condições, os filósofos já não podiam ser considerados livres-pensadores ou intelectuais, como Russel Jacoby argumenta num estudo mais recente. Para esses profissionais acadêmicos, a filosofia melhor adaptada às suas exigências era uma que não dependesse de teorias, de idéias ou de nenhum fundo de conhecimentos de ciência ou das humanidades, e que não se engajasse em questões contenciosas da vida social e política. O que eles queriam era um modo de filosofar que pudesse ser praticado como uma habilidade técnica a ser aprendida pragmaticamente por meio de um treinamento no próprio ambiente profissional por meio da discussão, mais ou menos como o dos advogados.”[11]
Que é o “treinamento no próprio ambiente
profissional” senão o tão desprezível contato direto entre professor e aluno?
Afinal, por que os advogados, entre os quais o sr. Júlio Lemos, não estão
habilitados para o exercício profissional tão logo recebem seu diplominha, mas
têm de fazer estágios em escritórios de advocacia, ver com seus próprios olhos
como funcionam os tribunais, cartórios, registros de imóveis e delegacias de
polícia, aprender por experiência viva como se aborda um juiz de direito, como
se obtêm os favores de um escrivão, como se persuade um cliente a negociar com
a parte contrária? E quem não sabe que, na prática, o profissional investido
dessas habilidades levará infinita vantagem sobre o bacharel eruditíssimo sem
experiência direta.
Se a “filosofia analítica” pode prescindir
do contato direto entre mestre e discípulo, por que teria sido justamente essa
a modalidade preferencial de ensino usada para impor o prestígio dessa escola
nas universidades americanas?
Tal como a ojeriza ao não-verbal, o desprezo ao ensino direto é uma afetação, uma pose, adotada como reação irracional de momento, não como uma opinião maduramente pensada com conhecimento do assunto.
(In Olavo de Carvalho, A Filosofia e seu Inverso, VIDE
EDITORIAL, Julho de 2012, pp. 48-61).
[1] Perdoem a ruindade gramatical.
Nem o sr. Pinheiro nem o sr. Lemos são muito bons de concordância.
[2] É objetivamente estranho, mas
também significativo da mentalidade com que estamos lidando, que, após quase um
século de estudos científicos sobre o substrato não-verbal, da comunicação
verbal, que teve entre seus pioneiros o psicoterapeuta Milton Erickson
(1901-1980), a expressão não evoque, na cabeça do sr. Pinheiro, senão os
“sonhos tradicionalistas e perenialistas”, como se fossem a única referência
histórica a respeito. A obsessão de fazer de mim um perenialista, um
guénoniano, essa sim é que é um sonho: o sonho de fazer de mim uma figura
suspeita, de modo que as pessoas não ouçam o que digo e só me enxerguem através
de uma rede de prevenções bobocas tecidas em torno da minha pessoa pelos srs. Lemos
e Pinheiros.
[3]
Theodore M. Porter, Trust in Numbers. The
Pursuit of Objectivity in Science and Public Life, Princeton, NJ, Princeton
University Press, 1995, pp. 13-13.
[4]
Sobre as bases dessa disciplina, V. Randall Collins, The Sociology of Philosophies: A Global Theory of Intellectual Change,
Harvard University Press, 1998.
[5]
Harry Redner, The Malign Masters:
Gentile, Heidegger, Lukács, Wittgenstein. Philosophy and Politics in the
Twentieth Century, New York, St. Martin’s, 1997, pp. 178-9.
[6]
Karl Löwith, My Life in Germany before
and After 1933, Urbana and Chicago, University of Illinois Press, 1994, pp.
28-9.
[7] Redner, op. cit., p. 189.
[8] Hervé Hamon et Patrick Rotman, Les
Intellocrates. Expédition em Haute Intelligentsia, Paris, Ramsay, 1981.
[9] Processo eficazmente descrito por Russel Jacoby em Last Intellectuals: American Culture in the
Age of Academe, New York, Basic Books, 2000.
[10] C. Wright Mills, Sociology and
Pragmatism. The Higher Learning in America, ed. Irving Louis Horowitz, New York,
Galaxy Books, 1966.
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