quinta-feira, 21 de março de 2019

Despertar

'Escrito' por G. I. Gurdjieff





«Gurdjieff nasceu e foi criado na região montanhosa do Cáucaso, no sul da Rússia, filho de pai grego e de mãe arménia. Escreveu que passou os anos de jovem adulto à procura de conhecimento esotérico, em expedições desde a Grécia e o Egipto, através do Médio Oriente, às montanhas do Hindu Kush e Tibete. Não revelou as fontes que investigou, e apenas falou vagamente de ter estado em mosteiros cristãos e tibetanos, assim como em escolas sufis na Pérsia oriental. Realmente, divulgou poucos factos acerca das suas viagens e experiências. Contudo, demonstrou uma extraordinária desenvoltura em sobrevivência e na capacidade e no desempenho de papéis de disfarce, e era conhecido por ter viajado largamente pela Ásia Central, incluindo várias viagens ao Tibete, um país fechado a visitantes estrangeiros. Estas actividades convenceram os serviços secretos de que era um agente secreto do governo czarista.»

Notas Biográficas (in G. I. Gurdjieff, «Em Busca do Ser. O Quarto Caminho para a Consciência»).


«Georges Gurdjieff, mago russo, nascido em 1877, em Alexandria, invocava (…) "o sexo como meio de libertação na sua doutrina, que se baseava por sua vez num romance cosmogónico e num sistema educativo. Gurdjieff declarou que devia muito ao seu pai, marceneiro e bardo iluminado de que publicou os adágios, e ao seu mestre-escola, o padre Borsh. Em 1905, num café de Moscovo, Gurdjieff encontrou Ouspensky, o discípulo que o glorificaria em Fragments d'un enseignement inconnu e, no ano seguinte, o compositor Thomas de Hartmann, que relatará mais tarde a sua vida com ele. Foi em Essentonki, ao norte do Cáucaso, que Gurdjieff, denominado o Moreno ou o Grego negro pelo seu aspecto, fundou, em 1917, o seu "Instituto para o desenvolvimento harmónico do homem", onde submetia os seus alunos a exercícios ascéticos. A guerra civil que se seguiria obrigá-lo-ia a transferir-se para Tiflis e depois para Constantinopla; em 1922, em França, instalou-se numa vila chamada "o Priorado", em Avon, próximo de Fontainebleau. Katherine Mansfield, chegada a Paris em 3 de Outubro de 1922, ouve falar dele, refugiar-se aí e aí morrerá em 9 de Janeiro de 1923, em presença de John Middleton Murry.

O Instituto de Gurdjieff era uma "escola da quarta via" que abria, em vez das três vias tradicionais do faquir, do monge e do yogi, "a via do homem astucioso", levando o indivíduo a libertar-se de tudo o que fazia dele uma máquina. Os seus membros realizavam o Trabalho, actividade que comportava o trabalho para si, o trabalho para os outros e o trabalho para a escola, com o fim de alcançar "um novo nascimento". A máquina humana, determinada por 7 "centros" físicos e psíquicos que controlam "tampões" (inibições de todos os tipos) funciona com hidrogénios diversos; a "tabela dos hidrogénios" - ele distingue 12, que formam "uma escala erguida entre a terra e o céu" -, é tão importante para Gurdjieff como a associação sal-enxofre-mercúrio para Paracelso. A sexualidade consome hidrogénio si 12, o mais potente de todos: é por isso que se desprende uma energia que pode ser aproveitada para a libertação da personalidade.

Segundo Gurdjieff, o abuso do sexo é um mal que implica as piores consequências. "Mas quase nunca se compreende o que significa o abuso do sexo. Não se trata de excessos sexuais ou de perversões sexuais. Não passam de formas relativamente inofensivas de abuso do sexo. Não, é indispensável conhecer muito bem a máquina humana para compreender o que é o abuso do sexo, no verdadeiro sentido desta expressão. Ela designa o mau funcionamento dos centros no seu relacionamento com o centro sexual, ou, por outras palavras, a acção do sexo que se exerce através dos outros centros, e a acção dos outros centros que se exerce através do centro sexual." [P. D. Ouspensky, Fragments d'un enseignement inconnu, traduzido do inglês por Philippe Lavastine, p. 361 (Paris, Stock, 1949)]. O sexo tem uma dupla característica de veemência e de inutilidade que comunica ao centro intelectual, ao centro emocional e ao centro motor quando eles lhe solicitam a sua energia. Por outro lado, se o centro sexual é esgotado pelos outros centros, perde a capacidade de constituir o "delicado alimento de impressões" necessário à produção dos hidrogénios superiores. O ideal é manter o centro sexual independente dos outros centros; é preciso, pois, evitar tanto a abstinência como o deboche, já que a primeira torna o sexo dependente do espírito e o segundo o espírito dependente do sexo.

Os alunos de Gurdjieff fizeram uma demonstração de "danças sagradas", em 1923, em Paris, no Teatro dos Champs-Élysées, e, em 1924, em Nova Iorque. Aproximadamente na mesma altura, Gurdjieff começou a escrever os Récits de Belzébuth à son petit fils (publicados em 1956), onde os seus mitos se manifestaram numa explosão de glossolalia. O universo, composto de vibrações, está sujeito a 2 leis: a lei de Triamazikamo (lei de três), e a lei de Heptaparaparshinockli (lei de sete). O homem está inacabado, há diversos eus que governam à vez no seu ser, e conserva traços do "órgão Kundabuffeer" que possuiu outrora, e que provoca o "espectro de impulsões naoulonosnianas". O mau génio Lentrohamsanine perturba o mundo, mas é combatido pelo Muito Santo Ashyata Sheyimash, de quem os iniciados devem invocar o testemunho. Eles formarão a "confraria Hishtvori", que permitirá aos "seres tricerebrais do Tetarcosmos" sair do "círculo da confusão das línguas" e obstar às fantasias dos anjos imprevidentes Alguemathant e Helkguematuis. A iniciação far-se-á por "legamonismo", transmissão directa da verdade.






O Trabalho preconizado por Gurdjieff compreendia movimentos rítmicos, mas não práticas licenciosas. "Nunca vi qualquer coisa de escandaloso nos grupos", dirá um dos seus adeptos [Ver os documentos reunidos por Louis Pauwels em Monsieur Gurdjieff, p. 296 (Paris, Éditions du Seuil, 1954)]. Longe de pregar o exagero erótico de Crowley, Gurdjieff afastava dos seus ensinamentos os psicopatas sexuais, que julgava incapazes da transformação do seu corpo físico em corpo astral: "No trabalho, só as pessoas completamente normais no plano sexual têm hipóteses. Toda a espécie de 'originalidade', todos os gostos estranhos, os desejos bizarros, o medo e a acção dos 'tampões', tudo isso deve ser destruído desde o início."

A partir de 1933, depois de vender o Priorado de Avon e de renunciar ao seu Instituto, Gurdjieff visitou os Estados Unidos e terminou a sua vida em Paris, onde morreu em 1949, deixando uma autobiografia póstuma, Recontres avec des hommes remarquables (1960), onde adverte o leitor para "não tomar tudo à letra". Muitos dos seus discípulos, como C. S. Nott, Margaret Anderson e Úathryn Hulme, contaram as suas experiências com ele.»

Alexandrian («História da Filosofia Oculta»).


«Um dos nossos maiores erros é a ilusão no que respeita ao nosso "eu". O homem tal como o conhecemos - "a máquina humana" que não pode "fazer" e na qual todas as acções aparentes são simplesmente "feitas" - não pode ser um "eu" invariável e unificado. O nosso "eu" muda tão frequentemente quanto os nossos pensamentos, sentimentos e humores, e cometemos um sério engano em considerar-nos sempre a mesma pessoa, quando de facto somos sempre outra pessoa e nunca a mesma pessoa do momento anterior. O homem não tem um "eu" constante e invariável. Cada pensamento, cada humor, cada desejo, cada sensação diz "eu". E, em cada caso, assumimos que este "eu" fala pelo Todo, a pessoa toda, e que um pensamento, um desejo ou uma aversão representam a expressão deste Todo.  Na verdade, este pressuposto é inteiramente infundado. Cada pensamento e cada desejo aparecem e vivem bastante separados e independentes do Todo. E o Todo nunca se expressa realmente, pela simples razão de que ele existe como tal, apenas como uma entidade material num corpo físico e como um conceito abstracto. Na sua psique, o homem não tem um "eu" unificado, mas antes centenas de pequenos "eus" separados, que são, com muita frequência, inteiramente desconhecidos e inacessíveis entre si ou, ao contrário, hostis entre si, isto é, mutuamente exclusivos e incompatíveis. Cada minuto, cada momento, estamos a dizer ou a pensar "eu", e de cada vez o nosso "eu" é diferente. Primeiro é um pensamento, depois um desejo, depois uma sensação, depois outro pensamento e por aí fora, ad infinitum. O homem é uma pluralidade, o nome dele é Legião.»

G. I. Gurdjieff («Em Busca do Ser. O Quarto Caminho para a Consciência»).


«No período que cada um de nós viveu não à sua maneira, mas à maneira dos outros (falo do 25 de Abril), uma circunstância extraordinária fez que me visse obrigado a trabalhar em grupo pela primeira vez na minha vida. Era o maior sacrifício que me era imposto dentro do meu destino de aprendiz de filósofo. Esse trabalho prometia-me, a mim e aos outros, o conhecimento sobrenatural e como, nos longos anos em que frequentei a tertúlia de filosofia portuguesa, sempre me foi reconhecida a independência de pensar por mim próprio, não me teria submetido às novas condições de trabalho se não esperasse conseguir através dele, um mais alto grau de liberdade.

Essa circunstância extraordinária foi a seguinte. O prédio em que exercia a minha profissão de professor destacado na Direcção Geral do Ensino Básico era o mesmo em que funcionava a Fundação Calouste Gulbenkian. Foi este facto um feliz acaso para que eu pudesse, no último ano de vida de José Marinho, conviver com ele diariamente. Como se sabe, o admirável filósofo era funcionário da Fundação. Bastava-me descer no elevador para o ir encontrar quando quisesse no seu gabinete. Almoçávamos juntos no edifício em frente. Foi ele que me conduziu para o que seria uma vida inteiramente nova:

- Tive a ousadia, porque pensei que isso fosse útil para si, de lhe marcar um encontro com um austríaco que costuma vir aqui conversar connosco. É um homem que sabe, sobretudo no domínio das Ciências Ocultas. Dada a orientação nesse sentido que o António Telmo sempre imprimiu ao seu estudo da filosofia, creio que terá interesse em falar com ele. Se assim o quiser, apareça aqui amanhã às quatro horas da tarde.

Através de mim, Max Hõlzer conseguiu formar um grupo de trabalho que julgo foi o primeiro a transportar para Portugal o ensinamento operativo de Georges Ivanovich Gurdjieff.






Max Hõlzer não era o vulgar ocultista que nos fala com um ar misterioso de corpos astrais, de viagens no astral, de iniciação astral. Conversava sobre tudo, sobre isto e aquilo, com a simplicidade de um homem. Conhecia os poetas e os filósofos portugueses melhor do que eu. Não havia assunto, que se chamasse, em que não mostrasse perfeita segurança. O que me desagradava nele era aparecer-me como transmissor do pensamento esotérico de Gurdjieff. Teria preferido outra linha qualquer de iniciação, pois não conseguia deixar de ter presente no meu espírito o aviso de René Guénon:

- Fujam de Gurdjieff como da peste!

Seria, porém, completamente estúpido que me afastasse de um homem dotado de superiores predicados só porque umas palavras ocasionalmente encontradas num livro levantavam em mim a suspeita de algo terrível que ameaçava a existência da minha alma. Decidi não perder a oportunidade de aprender.

Durante os três primeiros anos fui, por assim dizer, o único discípulo daquele mestre. Embora nos reuníssemos, de quinze em quinze dias, na casa de Francisco Sottomayor, o meu trabalho era individual. O que aprendi nesse período creio que ficará para sempre ligado à minha memória permanente. É por isso que somente o confiarei àquele que possa vir a considerar o amigo da minha essência.

A expressão é dos livros escritos por Gurdjieff. Devo dizer que o contacto diário que estabeleci, por sugestão de Max Hõlzer, com a obra escrita de Gurdjieff mais me afirmou no caminho que o destino em mim decidira seguir. O Encontro com Homens Notáveis é uma das obras mais elevadas concebidas e realizadas pelo espírito humano. Ao pé dela, qualquer dos livros de René Guénon parece-nos superficial.

Ao fim de três anos, tudo corria sobre rodas. Havia uma pequena contrariedade apenas: a dos problemas de consciência que me levantava a nossa ligação simultânea a duas orientações que, à primeira vista, pareciam inconciliáveis.

Álvaro Ribeiro guardava um silêncio enigmático sobre o desvio de alguns dos seus discípulos; contávamos com a compreensão do José Marinho que, aliás, fora quem nos introduzira; de outras personalidades do grupo da filosofia portuguesa vieram teimosos ataques, que nos ajudaram a aperfeiçoar a virtude da prudência.

No que me diz respeito, Álvaro Ribeiro era para mim, e é, a filosofia portuguesa. Através dele, se mais não andei foi porque não soube seguir as indicações da Santa Filosofia. É bom que, no entanto, diga o que em mim nasceu para que pudesse encontrá-lo.

O meu pai foi o meu primeiro Mestre e envolveu o melhor da sua força na forma do filho primogénito. Com efeito, por volta dos meus quinze anos, meu irmão mais velho, que viria a tornar-se famoso como Orlando Vitorino, conheceu o José Marinho e o Álvaro Ribeiro. Por seu intermédio, fui agraciado com a leitura de um livro que decidiu de toda a minha vida espiritual: Literatura e Ocultismo de Denis Saurat.

É um estudo de poetas (William Blake, Milton, etc.), que pretende mostrar a influência na sua obra da Kabbalah. Mas o que me acordou para a ciência do mistério foram os textos do Zohar no fim do volume que o autor selecionou para ilustrar o seu ponto de vista.

Através de meu irmão, conheci mais tarde Álvaro Ribeiro. Até aos meus trinta e seis anos foi meu Mestre aparentemente só na arte de pensar. Digo aparentemente só, porque essa arte, se for bem exercida, irá transfigurar a nossa vida emocional e até a nossa vida vegetativa, dando aos nossos automatismos a forma da liberdade.

O momento mais alto do nosso convívio coincidiu com a seguinte narrativa que ele me confidenciou sobre a sua terceira iniciação:

"Quando vim com o José Marinho do Porto para Lisboa, reuníamo-nos à tarde na esplanada do Palladium com o Delfim Santos, o Cunha Leão, o Eudoro de Sousa, o Almada Negreiros e outros, entre os quais o Jorge de Sena. Vinha também um austríaco, refugiado da guerra, trazido à tertúlia pelo Delfim Santos. Naturalmente, conversávamos de filosofia, de arte, de literatura, de política. O austríaco mostrava-se senhor dos vários aspectos que nos eram sugeridos por este ou aquele tema. Nenhum dos meus companheiros de tertúlia reparou que o modo como exercia tal senhoria lhe vinha de ser um iniciado.

Acontecia que, por esse dias, eu andava completamente adormecido. Somente com a aproximação do crepúsculo, coincidentemente à hora que nos reuníamos, me sentia despertar. Numa dessas tardes, desfeita a tertúlia, fiquei sozinho com o austríaco. A partir daí, ele ensinou-me umas coisas e nunca mais me levantei da cama que não estivesse completamente acordado. É nessa data, por volta dos meus trinta e seis anos, que publico O Problema da Filosofia Portuguesa e inicio um trabalho sistemático de levantamento do meu povo."






Max Hõlzer tinha por Álvaro Ribeiro uma admiração sem limites.

- Quem sou eu - disse-me um dia - para me atrever a julgar esse homem?

Infelizmente, não tinha a mesma apreciação do valor de José Marinho e dos outros membros do grupo da filosofia portuguesa.»

António Telmo («Contos Secretos»).


«OCULTISMO E POSITIVISMO

Como se sabe, no sistema alvarino, a tradição decorre da audição. A língua, por exemplo, não se aprende tanto por se ver, mas por se ouvir. Este aspecto concitou mais interpelativa e permanente polémica no seio da "filosofia portuguesa", entre os partidários da visão (marinhistas) e os partidários da audição (alvaristas). O saber, a forma e o conteúdo, a causa material e a causa formal procedem do saber por audição. A vista fixa; o ouvido move. Quando se lhe perguntava do valor dos sentidos, relativamente aos universais, propunha, explicava e concluía: como ninguém vê a Deus, e quase todos sabem o nome de Deus, têm d'Ele a ideia do que é, ou do que não é. Já na fase de maior imersão aristotélica, em que privilegiava a função/cognitiva/medianeira dos sentidos, - tudo o que está na mente passa pelos sentidos - assertoava que também Deus por aí passava, enquanto nome ouvido.

Nos finais do decénio de 1940-1950 regressa à leitura de Bergson, de quem interpreta, por exemplo, o título La Pensée et le Mouvant; entende-o ele como La pensée est le mouvant: o Pensamento é o movente. Ingressa na reflexão escolástica, sendo-lhe particularmente grato o discurso teológico de Santo Anselmo, apesar das relações que estabelecera com os Franciscanos, já através do sábio Ilídio de Sousa Ribeiro, O.F.M., já do jovem João Ferreira, futuro administrador apostólico da Guiné, um dos primeiros religiosos a aderir à tese de Álvaro, e, por fim, por vontade própria exclaustrurado e laicizado, professor no Brasil. O que muito doeu a Álvaro Ribeiro, vivente de algum temor, quando considerava que poderia ter influenciado de forma heterodoxa o caminho de João Ferreira. Álvaro nunca desejou ser "estrada do desvio". Era uma linha recta. [??!].

Remedita Max Stirner. E Leonardo. Com a ajuda de Eudoro de Sousa progride no alemão e inicia-se em Hegel. Kant não lhe agradava. Discutia com ele a impossibilidade de uma razão pura. Razão pura seria a divina; o homem é razão impura, razão animada. Medianeiro, realista, Álvaro dificilmente aceitaria Kant, um filósofo de mãos puras. Só que (anjo?) não tinha mãos. Quem puder entender, que entenda.

Advém ao monoteísmo. Está longe do catolicismo recebido em família, mas redescobre, por determinação de Bruno, a ideia de Deus; e, por determinação de Leonardo e de Santo Anselmo, a verdade do Deus único. Aristóteles está-lhe à mão. Se o lógico o estimularia no método, o metafísico motiva-o na verdade. Já não tem dúvidas do radical e inapelante valor simbólico do termo "motor imóvel". Todavia, o seu caminho é de procura. José de Maistre e René Guénon foram leituras evidentes. Talvez acordasse nele algum resto do contacto havido com Fernando Pessoa, renovado pelo relacionamento, embora eventual e breve, com um grande amigo de Pessoa, o "Profeta Enoch", Raul Leal. Tudo junto com o sentido martinista das leituras de Bruno. Estuda quanto é ocultismo. Chega mesmo aos níveis esotéricos, como a cartomancia e o "Tarot". A geometria simbólica prende-o. O simbolismo arquitectónico domina-o. Em 1927, na Faculdade de Letras do Porto, houvera uma cerimónia de iniciação maciça na Maçonaria, sem efeito. Álvaro foi um dos iniciados, sem continuidade. De quantos peripatéticos fomos, parece que só António Telmo e Francisco Sottomayor acederam aos conhecimentos das Ciências Ocultas [??!] e, em especial, da Arte da Cabala. Mostravam eles maior inclinação para isso; e Álvaro falava, com cada um, a linguagem própria da origem de cada discípulo. Procurava entender a língua do interlocutor e, depois, conversar com o interlocutor, na língua do interlocutor. Segundo as suas categorias, sem prender ninguém.

A nosso ver, a imersão nas Ciências Ocultas serviu-lhe para compensar o peso que as leituras positivistas podiam ter na sua mente. Desejava elaborar o panorama das problemáticas filosóficas portuguesas de diante para trás, ou seja, viajar das causas presentes para as causas primeiras. O Positivismo era o fenómeno mais presente do pensamento português, sobretudo em Lisboa. Em 1951, numa edição de autor, com a chancela da Livraria Popular Francisco Franco, edita essa obra-prima da nossa historiografia filosófica, Os Positivistas, em cuja capa se imprime um símbolo não-positivista, a âncora, figura antropológica, desenhada numa díade (a barca e a cruz) que projecta o terceiro elemento do símbolo, o homem. O livro é sibilinamente dedicado à Cidade do Porto. Enigma alvarino. Como todas as dedicatórias, de todos os seus livros, porque as Dedicatórias são mensagens. Couto Viana, ao desenhar o símbolo da capa, entendeu a mensagem. O livro contém uma apologia afirmativa (os Antipositivistas). Quem são estes? Os da Escola do Porto, Bruno e Leonardo. Traçado ficava o itinerário mental que Álvaro preconizava para a filosofia portuguesa. A negação do pessimismo sebastianista. A recusa do fatalismo. "A filosofia portuguesa, longe de parecer um eco das filosofias antecedentes, manifestaria a possibilidade de anunciar algo de novo aos povos de línguas românicas. Transformar essa possibilidade em actualidade será o talent de bien faire, mas então na ordem especulativa, de um vindouro Infante de Sagres. Álvaro demonstra, mediante a carência dos primeiros princípios, dos últimos fins, e da implenitude dos factores medianeiros, que o Positivismo é uma heresia em dupla acepção: na filosófica, por ignorar o que se acha para além dos sentidos (a ideia) e na teológica, por ignorar o nome da primeira e última causa, o nome divino. A crítica das causas deficientes do Positivismo, causas essas que fizeram dele, Positivismo, uma simples ideologia vulgar, mais adequada à técnica jornalística do que à exigência epistemológica, não lhe cerceou a capacidade de entender a força, a vinculação e a influência do pensamento positivista na condição portuguesa, que, a seu ver, desde meados do século XIX, se achava sob o regime de uma ditadura positivista, diversamente expressa na Monarquia Constitucional, na República Positivista e no Estado Novo.





Os Positivistas não é uma monografia histórica; pretende constituir uma exegese crítica do Positivismo de expressão portuguesa, em contraste com o equivalente Antipositivismo. Pela antítese, concita a atenção para o método criacionista da tradição portuguesa, deixando a outros o encargo de escrever a História do Positivismo em Portugal.»

Pinharanda Gomes («A "Escola Portuense"»).


«Simplesmente, Sampaio Bruno, se condena a metafísica construída sobre as ciências matemáticas e físicas, no que atinge tanto o materialismo francês, como a metafísica dos costumes do agnosticismo alemão, receia também todas as formas de dogmatismo que infundadamente assentem em doutrinas reveladas. Ressurge o conflito iluminista entre a ciência e a religião. Os positivistas, que não querem a metafísica materialista, hão-de necessariamente procurar o equivalente numa doutrina de critério socialista.

Esta luta contra a satisfação teológica da inquietação metafísica, levada a efeito no duplo campo do agnosticismo perante tudo quanto signifique transcendência e pelo cientismo perante tudo quanto signifique imanência, foi transferida para o processo separativo da religião e da educação. Tal separação fictícia determina, ou, pelo menos, declara, uma crise na antropologia. Todo o ensino positivista consistirá em adaptar, quanto possível, a escola à classificação das ciências de Augusto Comte, mediante o artifício, suficientemente conhecido, da graduação por classes, da divisão por disciplinas e da leccionação por especialistas.

Teoriza-se o ensino enciclopédico como ideal formativo de todo o homem culto, e para o realizar funda-se um novo tipo de escola que se denomina liceu. Mas o ensino nessas escolas ministrado não é enciclopédico por fidelidade ao étimo grego ou ao ideal pedagógico de Aristóteles, - é enciclopédico porque se inspira na Enciclopédia Francesa. Como foi já notado, a obra de Augusto Comte representa uma modernização da obra de d'Alembert e dos seus colaboradores.»

Álvaro Ribeiro («Os Positivistas»).


«Todas as pessoas, de acordo com a sua individualidade, têm um reportório limitado de posturas que estão indissoluvelmente associadas a formas distintas de pensamento e sentimento. Estas formas, que podem ser designadas por posturas de pensamento e sentimento, estão tão intimamente vinculadas que não as podemos mudar sem termos mudado o nosso reportório de posturas ignoradas. Ao mesmo tempo, cada um dos nossos movimentos, voluntário ou involuntário, é uma transição inconsciente de uma postura fixada automaticamente para outra, igualmente automática. Os nossos movimentos voluntários são uma ilusão; na realidade, eles são automáticos. Os nossos pensamentos e sentimentos são igualmente automáticos. E o automatismo dos nossos pensamentos e sentimentos está definitivamente ligado com o automatismo dos nossos movimentos. Um não pode ser mudado sem o outro.»

G. I. Gurdjieff («Em Busca do Ser. O Quarto Caminho para a Consciência»).




DESPERTAR


Existe um livro de aforismos que nunca foi, e provavelmente nunca será, publicado. O livro diz: «Um homem pode ter nascido, mas para nascer ele primeiro teve de morrer, e para morrer ele tem primeiro de despertar.» Outra passagem diz: «Quando um homem desperta, ele pode morrer. Quando morre, ele pode nascer.» Qual o significado disto?

«Despertar», «morrer», «nascer» representam três estágios sucessivos de um processo. Nos Evangelhos existem muitas vezes referências à possibilidade de «nascer». São feitas várias referências à possibilidade de «morrer» e muitas à necessidade de «despertar» ou manter-se desperto, como: «Sede vigilantes, pois não sabeis nem o dia nem a hora…» Mas estas três possibilidades - despertar ou não adormecer, morrer e nascer - nunca são apresentadas como conceitos relacionados, apesar de a sua relação ser a coisa mais importante de tudo.






O «nascer» relaciona-se com o primeiro estágio do crescimento da essência, o princípio da formação da individualidade e o aparecimento de um «eu» unificado e indivisível. Mas para ser capaz de perceber isto, a pessoa tem de morrer, no sentido de se tornar livre de milhares de pequenos apegos e identificações que a mantêm onde está. Estamos apegados a tudo na vida - à nossa imaginação, à nossa estupidez e, talvez mais do que tudo o resto, ao nosso sofrimento. Temos de nos libertar destes apegos a coisas, dessa identificação com coisas, que mantêm vivos em nós milhares de «eus» inúteis. Estes «eus» têm de morrer para que um «eu» maior possa nascer. Mas como? Eles não querem morrer.

É quando a possibilidade de despertar entra em cena, ou seja, despertar para o nosso vazio. Despertar significa reconhecer o nosso completo e absoluto mecanicismo e a nossa impotência. E não é suficiente reconhecer isto intelectualmente. Precisamos de o ver em factos simples e concretos, na nossa própria vida. Quando começamos a conhecer-nos um pouco, vemos muitas coisas que estão vinculadas para nos horrorizar. Quando vemos alguma coisa que nos choca, a nossa primeira reacção é mudá-la, livrarmo-nos dela. Mas, por muito que tentemos, não importam os esforços que façamos, falhamos sempre e tudo fica na mesma. Aqui, percebemos a nossa impotência, o nosso desespero, o nosso vazio. Ou, uma vez mais, quando começamos a conhecer-nos, vemos que não temos nada que verdadeiramente nos pertença. Vemos que tudo o que nós considerávamos como nosso - as nossas opiniões, pensamentos, convicções, gostos, hábitos, mesmo os nossos defeitos e vícios - nada disto nos pertence. Tudo foi formado através da imitação ou emprestado já feito de outro lugar. Ao vermos isto, poderemos sentir o nosso vazio. E ao sentir o nosso vazio, podemos ver-nos como realmente somos, não só por um momento, mas constantemente, nunca o esquecendo.

Estarmos continuamente conscientes do nosso vazio e da nossa impotência dar-nos-á a coragem para «morrer» - não apenas mentalmente, mas de facto - renunciando eternamente a esses aspectos de nós próprios que são obstáculos desnecessários ao nosso crescimento interior. Estes obstáculos são, antes de tudo, os nossos «eus» falsos, e depois todas as ideias fantásticas sobre a nossa «individualidade», «vontade», «consciência», «capacidade de fazer», assim como os nossos poderes, iniciativa, determinação, e assim por diante.

Mas, para nos tornarmos constantemente conscientes de alguma coisa, temos primeiro de a ver, mesmo que só por um momento. Todos os novos poderes e capacidades para a realização vêm sempre na mesma forma básica. Primeiro, eles aparecem em lampejos, em momentos raros e curtos, depois, mais frequentemente e por mais tempo, e finalmente, depois de muito tempo e esforço, eles tornar-se-ão permanentes. O mesmo se aplica ao despertar. É impossível despertar completamente tudo de uma só vez. Temos primeiro de começar a despertar por momentos curtos, um momento ou dois de vez em quando. No entanto, depois de fazer um certo esforço, de superar um certo obstáculo e ter tomado certas decisões irrevogáveis, devemos morrer de uma vez e para sempre. Isto seria muito difícil, ou mesmo impossível, se não fosse precedido de um processo gradual de despertar.

Existem, no entanto, milhares de coisas que nos impedem de acordar, que nos mantêm no poder dos nossos sonhos. Para que possamos actuar conscientemente para despertar, temos de conhecer a natureza das forças que nos mantêm num estado de sono. É preciso perceber que o sono no qual existimos não é como o sono comum, é antes uma espécie de hipnose, um estado hipnótico que é continuamente mantido e reforçado. Este aspecto poderia levar-nos a pensar que existem forças que retiram alguma utilidade ao manter-nos num estado hipnótico e impedindo-nos de ver a verdade e compreender a nossa posição.

Existe uma parábola oriental sobre um mágico rico que tinha muitas ovelhas. Ele era também muito sovina e recusava-se a contratar pastores ou pagar por uma cerca à volta da sua pastagem. Então, as ovelhas deambulavam frequentemente pela floresta e caíam pelas ravinas. E, acima de tudo, fugiam, pois sabiam que o mágico queria as suas peles e carne, e elas não gostavam disto.

Por fim, o mágico encontrou uma solução: hipnotizou as ovelhas. Primeiro, fê-las pensar que eram imortais e que nenhum mal lhes podia acontecer quando fossem esfoladas. Segundo, sugeriu que era um «Bom Senhor» que amava tanto o seu rebanho que faria qualquer coisa no mundo por ele. Em terceiro lugar, sugeriu que se alguma coisa lhes acontecesse, não seria de imediato, ou pelo menos não nesse dia, e por isso não havia razão para pensarem nisso. Finalmente, o mágico fez as suas ovelhas pensarem que não eram de todo ovelhas. Sugeriu a algumas que eram leões ou elefantes ou águias, a outras homens, e a outras que elas eram mágicos. Depois disto, ele nunca mais teve de se preocupar com as suas ovelhas. Elas nunca fugiam, mas esperavam pacientemente pelo dia em que o mágico pedisse as suas peles e a sua carne.










Esta parábola é uma boa ilustração do posicionamento do homem. Pudéssemos realmente ver e compreender o horror da nossa verdadeira situação, seríamos incapazes de a suportar, mesmo por um só segundo. Começaríamos imediatamente a tentar encontrar uma saída e rapidamente teríamos êxito, porque existe uma saída. A única razão porque não a vemos é porque estamos hipnotizados. «Despertar» para o homem significa «despertar da hipnose». Essa é a razão pela qual isso é possível mas, ao mesmo tempo, difícil. Não existe nenhuma razão orgânica para estarmos adormecidos. Podemos acordar, pelo menos em teoria. Mas na prática é quase impossível. Logo que acordarmos por um momento e abrirmos os olhos, todas as forças que nos causaram o adormecimento se tornam dez vezes mais poderosas. Nós voltamos a adormecer imediatamente, sonhando o tempo todo que ainda estamos a acordar ou mesmo despertos.

No nosso sono comum acontece frequentemente querermos acordar, mas não conseguirmos. Por vezes, pensamos que estamos acordados, mas na verdade estamos ainda a dormir, e isto pode acontecer muitas vezes antes de finalmente acordarmos. No sono comum, no entanto, uma vez que estamos acordados, estamos num estado diferente. Este não é o caso com o sono hipnótico. Não existe caminho seguro para dizer se realmente acordámos, pelos menos à primeira. Não podemos beliscar-nos a nós próprios para ter a certeza de que não estamos a dormir. E se, Deus me livre, soubermos que existe uma forma de saber se estamos a dormir, a nossa fantasia prontamente transforma isso num sonho (in Em Busca do Ser. O Quarto Caminho para a Consciência, Marcador, 2016, pp. 153-156).










Um comentário: